segunda-feira, 16 jul 2012
Gugu Liberato e Luciano Huck são respectivamente os
apresentadores dos quadros
Sonhar Mais Um
Sonho e
Lar Doce Lar, ambos
praticamente iguais. Eles consistem em
selecionar a casa de uma família, geralmente muito pobre e que tenha uma
história de muito sofrimento, demolir, e construir uma nova, moderna, com tudo
que existe do bom e do melhor. Tudo isso
em uma ou duas semanas, período esse em que a produção do programa leva a
família para uma viagem de férias. A
produção também presenteia as famílias com cursos, maquinário de trabalho e às
vezes até novos empregos.
Estes quadros
são versões brasileiras do programa da TV americana
Extreme Makeover: Home Edition, que
foi ao ar de 2003 a 2012. Nele, o
apresentador Ty Pennington comandava as reconstruções das casas de famílias
americanas, também pobres e sofridas. A
diferença é que, devido ao fato de os EUA serem um país que vivenciou um longo
período de grande liberdade econômica, a acumulação de capital lá, ou seja, a
riqueza, é muito maior, ao passo que os pobres daqui são muito mais miseráveis
do que os de lá. Mas a fórmula do
programa é sempre a mesma, e já se espalhou com sucesso por diversos países.
Eu já me considerava fã do programa americano que era
exibido no Brasil na TV a cabo, e passei a acompanhar suas versões brasileiras
sempre que posso. Não só pelas
emocionantes histórias, mas também até pelas ótimas dicas de reforma e
decoração — foi lá que fiquei sabendo da existência de coisas como a torneira que abre e fecha com
um toque. Porém, analisando o show a
partir da ótica praxeológica, podemos ver as maravilhas que ocorrem ali: uma família, vivendo uma vida dura e morando
em condições pra lá de precárias, sem nenhuma perspectiva de melhora, faz uma
viagem de férias (muitas delas pela primeira vez na vida) e, quando retorna
para o mesmo endereço poucos dias depois, tem não só uma casa incrível e
confortável, como também novas e melhores oportunidades de trabalho. Tudo isso sem a família gastar nem um
tostão. Isto é ou não é o que podemos
chamar de milagre?
E como todo milagre, ninguém sabe bem como acontece. Como é possível que algo assim ocorra? De onde surgem essas casas? Para alguém ganhar uma casa sem esforço,
outro alguém deve ter perdido uma casa, ou o valor correspondente, não é mesmo?
A primeira impressão é a de que as redes de televisão
abriram mão das casas. Ou, como muitos
contemplados parecem acreditar, que o apresentador arcou com todos os custos —
em uma entrega de casa ao vivo, uma senhora até deixou o Gugu sem graça, pois chegou a se ajoelhar diante dele
em
agradecimento. Mas,
obviamente, nem a rede de TV e nem o apresentador perdem nada; ao contrário,
eles ganham muito dinheiro com o programa.
Todo o material usado na construção e na decoração é doado
pelas empresas que os fabricam e os comercializam. Em troca, eles têm suas marcas anunciadas
durante os programas. E nos intervalos
outras empresas pagam muito dinheiro para aparecerem. Então são os anunciantes que estão sendo
subtraídas dos valores referentes às casas, certo? Muito menos!
As empresas que anunciam em televisão fazem fortunas em decorrência destes
anúncios. Seus produtos passam a ser —
ou se mantêm sendo — vendidos em larga escala, proporcionando altíssimos
lucros.
Então agora tudo ficou claro. Só podem ser os consumidores destas empresas
que juntos perdem uma casa para a família ganhar uma casa. Cada um deles deve arcar com uma fração do
custo das casas, ao pagarem mais caro pelos produtos dos anunciantes do
programa. Errado novamente. Estes consumidores não perdem nada, apenas
ganham. Ao comprar os produtos dos anunciantes,
estes consumidores trocam aquilo que valorizam menos — seu dinheiro — por
algo que valorizam mais — o produto.
Muitas vezes, se não fosse pelos anúncios, os consumidores não tomariam
conhecimento dos produtos, e acabariam trocando seu dinheiro por um produto
menos valorizado por eles do que o anunciado.
Não resta mais ninguém nessa cadeia de envolvidos no
processo. Espere! Já sei a resposta. São os trabalhadores dessas empresas, que são
explorados pelos patrões, recebendo um salário menor do que merecem, e a
diferença vai para cobrir os custos das casas.
Não. Os empregados não perdem
nada, só ganham. Eles trocam seu
trabalho por salário no presente, em vez de terem o valor total do produto
produzido num futuro incerto. E alguns
destes trabalhadores ainda devem o emprego à expansão de vendas gerada pela
participação da empresa no programa que presenteia as famílias com as
casas.
Não consigo pensar em mais ninguém. O que aconteceu afinal? Ninguém teve de perder nada para as famílias
ganharem as casas? Não foi nem sequer um
ato de caridade, no qual o doador teria ao menos de abrir mão do valor de uma
casa para doar uma casa? Uma família
morando em condições deploráveis, ganha uma casa nova e ainda todos os
envolvidos no processo também ganham algo?
Está querendo me dizer que isso é realmente algum tipo de milagre? Sim, estou.
E este milagre chama-se livre-mercado.
Livre mercado nada mais é do que o que foi descrito acima: trocas
voluntárias de títulos de propriedade. E
para uma troca voluntária ocorrer, necessariamente ambas as partes envolvidas
devem ganhar. É somente quando a coerção
entra na equação que uma parte perde para outra ganhar. Ou então as duas partes perdem e o agente
coercitivo não envolvido na troca, ganha.
. . . o livre mercado "maximiza" a utilidade social, já
que todos ganham em utilidade. A intervenção coercitiva, por outro lado, significa per se que um ou mais indivíduos
coagidos não teriam feito o que fazem no momento, não fosse pela
intervenção. O indivíduo que é coagido a
dizer ou não alguma coisa, a fazer ou não uma troca com o interventor ou outra
pessoa, tem suas ações modificadas por uma ameaça de violência. O resultado da intervenção é que o indivíduo
coagido perde em utilidade, pois sua ação foi alterada pelo impacto
coercitivo. Qualquer intervenção, seja
autística, binária ou triangular, leva os sujeitos a perderem em utilidade. Na intervenção autística ou
binária, cada indivíduo perde em utilidade; na intervenção triangular, ambos ou
pelo menos um dos possíveis permutadores perde em utilidade.[1]
Na sociedade atual, o principal agente coercitivo é o
estado. Vamos agora analisar como o
estado atua a partir do seguinte episódio
do quadro Sonhar Mais Um Sonho:
Em primeiro lugar o governo proíbe que uma casa seja
construída em uma ou duas semanas. Nesse
período, não é nem sequer possível dar entrada com os papéis que ele exige para
autorizar uma simples reforma. E o tempo
mínimo que se leva para se obter um alvará de uma obra é de 30 dias. Sem o tal do alvará, homens armados do estado
proíbem que uma obra se inicie. É a
primeira de inúmeras intervenções coercitivas do estado sobre o livre
mercado, quebrando a cadeia em que todos ganham, fazendo com que partes passem
a perder para outras ganharem. E como
ganham! Em São Paulo, o responsável
pela "liberação" de obras particulares ganhou
em sete anos mais de 120 apartamentos, no valor de R$50 milhões. O conceito de se "liberar" é absurdo. Uma obra é uma troca voluntária de livre
mercado entre duas partes. O estado
intervém coercitivamente e proíbe a troca, exigindo pagamentos e cumprimento de
requerimentos para "liberar" a troca.
Neste caso de pagamento de propinas em São Paulo, o interventor
coercitivo ainda foi 'menos pior' do que um que não aceitasse o suborno,
deixando o mercado agir com uma obstrução menor. Estes programas de televisão são contemplados
com uma exceção a esta regra nefanda, que prejudica todo o resto da
população.
Agora voltemos ao episódio.
Já no primeiro minuto, descobrimos que se trata da família da Lucinéia,
a "Tia dos Doces". O governo entra nesse
ponto com a facínora agência Anvisa, que transforma a
atividade que sustenta essa humilde família em crime. Fabricar cocada em casa e
vender para consumidores voluntários, sem atender às especificações de
fabricação, transporte e conservação dos agentes coercitivos da Anvisa é
proibido. Isso sem contar que Lucinéia
não "emite nota fiscal", não paga nenhum imposto — ou seja, consegue fugir do
assalto dos agentes coercitivos da Receita Federal, Estadual e Municipal. Se estes bandidos da Anvisa ou da Receita a
pegarem, ela teria seus doces confiscados e poderia sofrer agressões ainda
maiores. Olhando as condições de vida
dessa família é impossível não enxergar a maldade
em que consiste a função destes funcionários públicos.
No minuto 8:00, ficamos sabendo que a família está tentando
construir com muito esforço a "casa" em que moram há mais de 5 anos — e não
conseguiram fazer quase nada! Nesse
momento, lembramos que os impostos diretos sobre os materiais de construção são
de 32,80%. Se não fossem por estes
impostos diretos, esta família
poderia ter construído mais 1/3 do que conseguiram até então. A intervenção coercitiva dos impostos sozinha
fez com que eles perdessem 1/3 do pouco que tinham! E o que não foi construído é o que Bastiat
chamou de o que não
se vê. O mal que os impostos causam é hediondo.
E quando chegamos ao minuto 9:15, eu considero que já
podemos encerrar os exemplos das incontáveis intervenções coercitivas
malévolas, pois esta chega a um nível de maldade que dispensa
continuarmos. Neste ponto, Lucinéia
revela que a casa não possui chuveiro.
Ela precisa esquentar água num fogão à lenha para a família conseguir
tomar banho. E logo depois, no minuto 12:00,
ela nos mostra o banheiro sem o chuveiro.
Você, leitor, tem alguma noção do que é não ter um chuveiro? Obviamente, não é por opção voluntária que
eles não têm chuveiro. Eles não possuem
chuveiro porque não têm dinheiro para comprar chuveiro. Um chuveiro é caro demais para eles! Um chuveiro elétrico do modelo mais barato
custa por volta de R$50[2] e, até o dia da visita do Gugu, eles não conseguiram
fazer sobrar este valor para comprar um chuveiro. E é aí que podemos ver mais uma imensa
maldade gerada pela intervenção coercitiva do estado, que, com os impostos,
encarece o preço do chuveiro e impossibilita o acesso a esse produto para os
mais pobres, como a família da Lucinéia.
A formação de um preço no livre mercado se dá no encontro do
vendedor marginal com o comprador marginal.
Você que está lendo este texto provavelmente não deve ser um comprador
marginal de chuveiro elétrico. Se
morasse em uma casa sem chuveiro, pagaria R$75, R$100, R$150 e até R$300 por um
chuveiro elétrico quando o inverno chegasse, caso estes fossem os preços dos
chuveiros. Muitos certamente trocariam
mais de R$1.000 por um chuveiro. Mas o
comprador marginal atual é aquele que paga R$50; e se o preço fosse R$51, ele
não teria o chuveiro.
O potencial comprador que pagaria R$49, não tem o
chuveiro. Lucinéia estava abaixo da
margem. Ela não tinha o chuveiro. Um imposto de 30% que faz com que o preço do
chuveiro vá de R$38 para R$50, faz com que os compradores marginais aos preços
de R$39, R$40, R$41 até R$49 fiquem sem chuveiro. E funcionários públicos cobradores de
impostos fizeram isso com a família da Tia do Doce, e estão fazendo isso com os
mais pobres. Esta intervenção coercitiva
pode receber um nome diferente de maldade
pura? Podemos somar aí todos os
impostos indiretos, todas as barreiras alfandegárias que impedem a entrada de
chuveiros importados ainda mais baratos, as regulamentações que encarecem a
produção e inibem o surgimento de produtores concorrentes etc. De fato, o estado inclusive já interveio
coercitivamente no mercado de chuveiro com a declarada
intenção de apenas aumentar seu preço e impedir que mais pessoas o
comprassem.[3]
É isso. Enquanto
Gugu, Huck e os outros apresentadores orquestram uma sinfonia verdadeiramente
milagrosa, na qual pessoas agindo voluntariamente no livre mercado ganham com
suas ações, que resultam em uma família miserável recebendo uma linda casa de
presente, as intervenções coercitivas dos agentes estatais enredam um filme
sádico de terror. São as ações
cotidianas de fiscais da Receita, de policiais federais nas alfândegas, de
funcionários das aduaneiras portuárias e de toda e qualquer pessoa que obstrui
ou impede violentamente o livre mercado que personificam a pura maldade que
vemos no banheiro da Lucinéia.
[1]
Governo & Mercado, Murray N.
Rothbard. Livro que será publicado em
breve pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil
[2] Uma leitora informa que comprou recentemente um chuveiro elétrico por apenas R$25. E, de fato, podemos encontrar chuveiros por até menos que isso, como este por R$23,90. Isto torna o artigo duas vezes mais estarrecedor.
[3] Os impostos sobre a conta de luz e outras intervenções coercitivas no mercado de geração e distribuição de energia, como regulamentações e proibição de concorrência (monopólio), contribuem ainda mais para que as famílias mais pobres não possam ter chuveiros elétricos, encarecendo muito o seu uso.