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Economia

A Alemanha só é rei porque vive em um vale de cegos

10/07/2012

A Alemanha só é rei porque vive em um vale de cegos

No atual debate sobre a crise do euro, a Alemanha é frequentemente retratada como um modelo de robustez econômica, a boia luminosa da prudência fiscal e uma ferrenha defensora de reformas estruturais.  Seus recursos parecem ser infinitos e os títulos da dívida de seu governo são um indiscutível 'porto seguro'.  Se ao menos a Alemanha compartilhasse seu poderio e seus recursos mais generosamente, a crise da dívida da zona do euro poderia ser resolvida. 

Mas tudo isso é uma mera ilusão de ótica.  Cedo ou tarde, os mercados irão acordar para a realidade e finalmente se dar conta das fundamentais deficiências do país e de seus graves desafios.

Ao longo dos 13 anos de vida do euro, a Alemanha acumulou uma dívida pública adicional de €900 bilhões.  A dívida pública total subiu de €1,2 trilhão no início de 1999 para €2,1 trilhão no final de 2011 -- isto é, de 61 para 81% do PIB.  Lembrem-se de que foi a Alemanha quem mais pressionou para que todos os países da zona do euro adotassem os critérios de Maastricht, dentre os quais uma relação dívida/PIB de não mais do que 60%.  A Alemanha (mal) conseguiu cumprir este referencial em apenas 3 dos 13 anos do euro.  E, atualmente, são muito poucas as chances de que consiga repetir este feito.  Somente em 4 destes 13 anos o déficit orçamentário da Alemanha se manteve dentro do limite de 1% recomendado pelo Tratado de Maastricht, sendo que em 7 ocasiões ele excedeu o 'máximo permitido' de 3%.

Sim, é verdade que o déficit orçamentário de 1% registrado ano passado parece muito respeitável quando comparado à maioria dos países da zona do euro ou à Grã-Bretanha (8,4%) ou aos EUA (8,7%).  Porém, este pequeno déficit foi alcançado após dois anos de crescimento econômico de 3%, em que os juros sobre sua dívida pública estiveram em níveis historicamente baixos e a taxa de desemprego foi a menor em 20 anos.  Ainda assim, com todos estes fatores a seu favor, o governo alemão não conseguiu equilibrar seu orçamento.  E este cenário róseo certamente não irá durar muito tempo.  Como em todos os outros lugares, taxas de juros artificialmente baixas estão, por enquanto, sustentando uma ilusão de lucratividade e prosperidade em vários setores da economia alemã, em particular no setor financeiro.

Ainda mais importante é o fato de que a Alemanha está sentada sobre uma bomba-relógio de cunho fiscal, e nada foi feito nos últimos anos para tentar desarmá-la.  Durante as últimas quatro décadas, a Alemanha ampliou e prolongou várias promessas assistencialistas para sua população, promessas generosas para as quais simplesmente não há receitas, principalmente nas áreas da previdência, da saúde pública e do seguro-saúde estatal para os mais velhos, esta última uma criação onerosa do último governo 'conservador' de Helmut Kohl, mentor de Merkel.  Estes compromissos constituem um 'implícito' endividamento estatal de mais de 200% do PIB, no mínimo.

Os alemães gostam de seu estado assistencialista, e seu apetite por reformas é estritamente limitado.  As modestas, porém importantes, medidas adotadas anos atrás para uma maior liberalização do mercado de trabalho -- as quais o atual governo alemão sente darem a ele o direito de sair dando lições aos outros países sobre a necessidade reformas estruturais -- foram todas feitas durante o segundo mandato de Gerhard Schroeder, dez anos atrás.  Nada foi feito no governo Merkel.  Não é de se surpreender que tais reformas tenham custado a reeleição de Schroeder. 

A Alemanha não é nenhuma exceção.  Assim como a maioria das 'social democracias modernas', a Alemanha está lentamente, porém resolutamente, indo à bancarrota.  Suas diferenças para a Grécia e Espanha são de velocidade e de intensidade apenas, não de direção.  Trata-se de uma total imprudência o país ter assumido para si o papel de sustentáculo de todo o continente.  Tão logo a Espanha entrar oficialmente na lista dos falecidos, 80% dos fundos do Fundo Europeu de Estabilização Financeira terão de vir de apenas 3 países: Alemanha, França e Itália.  Isto significa uma conta imediata de mais de €200 bilhões para a Alemanha, mais de 8% do seu PIB.  Porém, dado que a Itália ou os setores bancários de vários outros países podem ser os próximos da fila, as demandas por mais dinheiro alemão são praticamente ilimitadas.

Os bancos dos países periféricos da zona do euro estão sofrendo uma hemorragia de depósitos, os quais estão fluindo consideravelmente para a Alemanha.  Em nível dos bancos centrais nacionais, estas transferências não estão sendo compensadas.  Isto permite que o sistema bancário dos países periféricos possa substituir o dinheiro que foi retirado por fundos oriundos do Banco Central Europeu.  Isso, por conseguinte, reduz a necessidade de bancos gregos e espanhóis terem de vender ativos e restringir passivos, o que levaria a uma forte contração de sua oferta monetária.  Tal arranjo coloca o Bundesbank na desconfortável posição de ser um genuíno devedor dos outros bancos centrais.  Ao final de maio, os saldos Target 2 (dívida para com o BCE) do Bundesbank estavam em €700 bilhões, aproximadamente 27% do PIB alemão.

A Alemanha pode muito bem ser o 'último sobrevivente' do drama do euro, mas isso significa apenas que não sobrará ninguém para socorrê-la.  Os títulos da dívida alemã desfrutarem a condição de 'porto seguro' são sintomas evidentes de mais uma bolha prestes a explodir.  A Alemanha só é rei porque vive em um vale de cegos.


Sobre o autor

Detlev Schlichter

É formado em administração e economia. Trabalhou 19 anos no mercado financeiro, como corretor de derivativos e, mais tarde, como gerente de portfolio. Nesse meio tempo, conheceu a Escola Austríaca de Economia

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