1. Introdução: o sistema monetário ideal
Os
seguidores da Escola Austríaca já dedicaram esforços consideráveis para tentar
elucidar o sistema monetário ideal para uma economia de mercado. Em nível teórico, eles desenvolveram toda uma
teoria sobre ciclos econômicos, a qual explica como uma expansão do crédito
orquestrada pelos bancos centrais e intensificada pelo sistema bancário de
reservas fracionárias — ou seja, uma expansão creditícia não baseada em uma
poupança real — continuamente gera ciclos econômicos.
Em
nível histórico, eles descreveram como o dinheiro surgiu espontaneamente no
mercado — por meio da opção voluntária dos indivíduos — e como a coerciva
intervenção do estado na economia, estimulada por poderosos grupos de
interesse, corrompeu a evolução natural das instituições bancárias,
afastando-as de um arranjo de livre mercado.
Em
nível ético, eles revelaram quais são os requerimentos gerais legais e os
princípios do direito de propriedade concernentes aos contratos bancários,
princípios estes que surgem da própria economia de mercado e que, por sua vez,
são essenciais para o seu funcionamento adequado.
Todas
as análises teóricas supracitadas levam a três conclusões: o atual sistema
monetário e bancário é incompatível com uma verdadeira economia de livre
mercado; ele contém todos os defeitos identificados pelo teorema da impossibilidade
do socialismo; e ele é uma contínua fonte de instabilidade financeira e de
desordem econômica. Donde se conclui que
é indispensável fazer uma profunda reestruturação do sistema financeiro e
monetário mundial, atacando a raiz dos problemas que nos afligem e
solucioná-los em definitivo.
Tal
empreendimento deve ser baseado nas três seguintes reformas: (a) a abolição do
sistema de reservas fracionárias, restabelecendo a exigência de 100% de
reservas para todos os depósitos em conta-corrente e seus equivalentes — um
princípio essencial do direito de propriedade; (b) a abolição de todos os
bancos centrais (os quais se tornam desnecessários como emprestadores de última
instância caso a reforma (a) acima seja implementada, e os quais, como
verdadeiras agências de planejamento central financeiro, são uma constante
fonte de instabilidade) e a revogação das leis de curso forçado, bem como todo
o emaranhado de regulações governamentais gerado por elas; e (c) um retorno a
um padrão-ouro clássico, o único padrão monetário mundial capaz de fornecer uma
oferta monetária que as autoridades políticas não poderiam manipular e de
restringir e disciplinar os anseios inflacionários de todos os diferentes tipos
de agentes econômicos.
Como
já afirmado, as recomendações acima nos permitiriam solucionar todos os nossos
problemas bancários e monetários desde sua raiz, ao mesmo tempo em que
promoveriam um desenvolvimento econômico e social como jamais visto na
história. Adicionalmente, tais medidas
podem não apenas indicar quais reformas incrementais seriam um passo na direção
correta, como também permitir um julgamento mais sensato sobre as diferentes opções
de política econômica existentes no mundo real.
E é desta perspectiva estritamente circunstancial e possibilística que o
leitor deve entender minha análise austríaca em relativo "apoio" ao euro que
tentarei desenvolver no presente artigo.
2. A tradição austríaca de defender taxas
de câmbio fixa em oposição ao nacionalismo monetário e taxas de câmbio
flexíveis
Tradicionalmente,
os membros da Escola Austríaca de economia sempre sentiram que, enquanto o
sistema monetário ideal não fosse atingido, vários economistas, especialmente
aquelas da Escola de Chicago, cometiam um grave erro de teoria econômica e de
ação política ao defenderem taxas de câmbio flexíveis e um nacionalismo
monetário, como se ambos fossem mais condizentes a uma economia de
mercado.
Em
contraste, os austríacos acreditam que, até que os bancos centrais sejam abolidos
e o padrão-ouro clássico seja restabelecido em conjunto com um sistema bancário
que pratique reservas de 100% para os depósitos em conta-corrente, devemos
tentar de todos os modos levar o sistema monetário para o mais perto possível
deste ideal, tanto em termos de operação quanto de resultados. Isto significa limitar o nacionalismo
monetário ao máximo possível, eliminando toda e qualquer possibilidade de que
cada país possa criar e desenvolver sua própria política monetária, e
restringindo o tanto quanto possível políticas inflacionárias de expansão de
crédito, criando-se um arranjo monetário que discipline rigorosamente os
agentes econômicos, políticos, sociais e, especialmente, sindicatos e outros
grupos de interesse, políticos e bancos centrais.
É
somente dentro deste contexto que devemos interpretar a posição de eminentes
economistas austríacos (e distintos membros da Mont Pèlerin Society) como Mises e
Hayek. Por exemplo, há a extraordinária
e devastadora análise contra o nacionalismo monetário e contra taxas de câmbio
flexíveis que Hayek começou a desenvolver em 1937 em seu particularmente
excelente livro Monetary
Nationalism and International Stability.[1] Neste livro, Hayek demonstra que taxas de
câmbio flexíveis impossibilitam uma alocação eficiente de recursos em nível
internacional, uma vez que taxas de câmbio flexíveis imediatamente obstruem e
distorcem os fluxos de consumo e investimento.
Adicionalmente, elas fazem com que, em vez de necessárias reduções reais
de custos, haja um aumento em todos os preços nominais, em um caótico ambiente
de contínuas desvalorizações cambiais, expansão de crédito e inflação. Tal política também estimula e sustenta todos
os tipos de comportamento irresponsável dos sindicatos, pois incita contínuas
exigências salariais e trabalhistas que só poderão ser satisfeitas sem produzir
desemprego se a inflação monetária for continuamente elevada. Trinta e oito anos depois, Hayek sintetizou
seu argumento da seguinte maneira:
É inegável, creio eu, que a demanda por taxas de câmbio
flexíveis surgiu, em sua totalidade, em nações como a Grã-Bretanha, cujos
economistas queriam uma margem mais ampla de expansão inflacionária (chamada de
"política de pleno emprego"). Estes
economistas, infelizmente, receberam pouco tempo depois o apoio de outros
economistas[2] que,
embora não fossem propriamente tomados pelo desejo de mais inflação, pareciam
ignorar o mais forte dos argumentos em
defesa de taxas de câmbio fixas: elas restringem de modo praticamente
insubstituível os políticos e as autoridades monetárias submetidas a eles, ajudando
a manter a moeda estável [ênfase minha].
Para
esclarecer ainda mais seu argumento, Hayek acrescenta:
Manter o valor da moeda e evitar a inflação monetária são
atitudes que sempre irão exigir do político medidas extremamente
impopulares. O político só poderá
justificar tais medidas perante as pessoas desfavoravelmente afetadas por elas
caso ele consiga mostrar que o governo é obrigado a tomar estas medidas. Somente enquanto a preservação do valor
internacional da moeda nacional for considerada uma necessidade indiscutível,
como ocorre quando as taxas de câmbio são fixas, é que os políticos poderão
resistir às constantes demandas por crédito barato, pela não subida das taxas
de juros, por mais gastos com obras públicas e por aí vai. Com taxas de câmbio fixas, uma queda no valor
externo da moeda ou uma fuga de ouro ou de reservas internacionais do país
atuam como um sinal de alerta que requer imediata ação do governo.[3] Com taxas de câmbio flexíveis, o efeito de um
aumento na quantidade de dinheiro sobre o nível interno de preços é muito lento
para ser notado por todos, o que permite que os responsáveis não sejam
devidamente acusados. Ademais, a
inflação de preços é geralmente precedida de uma bem-vinda redução no
desemprego. Ela pode, portanto, ser até
mesmo saudada, pois seus efeitos perniciosos só serão notados bem mais tarde.
Hayek
conclui:
Não creio que seja possível estabelecermos um sistema de
estabilidade internacional sem que retornemos a um sistema de taxas de câmbio
fixas, as quais impõem restrições essenciais sobre os bancos centrais
nacionais, fazendo com que eles exitosamente resistam às pressões dos
entusiastas da inflação em seus respectivos países — dentre os quais,
geralmente, os ministros da fazenda (Hayek 1979 [1975], 9-10).
Com
relação a Ludwig von Mises, é bem sabido que ele se distanciou de seu estimado
discípulo Fritz Machlup por este ter, em 1961, começado a defender taxas de
câmbio flexíveis nos encontros da Mont Pèlerin Society. Com
efeito, de acordo com R.M. Hartwell, que foi o historiador oficial da Mont Pèlerin Society,
Machlup defender taxas de câmbio flexíveis fez com que
Mises deixasse de conversar com ele por aproximadamente três anos (Hartwell 1995, 119).
Mises
até conseguia entender por que macroeconomistas sem nenhum treino acadêmico em
teoria do capital — como Friedman e seus colegas de Chicago, e também
keynesianos em geral — defendiam taxas de câmbio flexíveis e todo o
inflacionismo invariavelmente implícito nelas, mas ele não estava disposto a
ignorar o erro de alguém que, como Machlup, havia sido seu discípulo — e,
portanto, realmente entendia de economia — e ainda assim havia se deixado
levar pelo pragmatismo e pelos modismos passageiros do politicamente correto. Com efeito, Mises chegou até mesmo a explicar
para sua mulher por que ele era incapaz de perdoar Machlup:
Ele participava de meus seminários em Viena; ele entende e
sabe de tudo. Ele sabe muito mais do que
a maioria deles e sabe exatamente o que está fazendo (Margit von Mises 1984, 146).
A
defesa de Mises das taxas de câmbio fixas é comparável à sua defesa do
padrão-ouro como o sistema monetário ideal em nível internacional. Por exemplo, em 1944, em seu livro Omnipotent Government, Mises escreveu:
O padrão-ouro restringia os planos do governo de criar
crédito barato. Era impossível ceder ao
desejo de fazer uma expansão creditícia e, ao mesmo tempo, manter a paridade da
moeda com o ouro fixada por lei. Os
governos tinham de escolher entre o padrão-ouro ou uma — desastrosa no longo
prazo — política de expansão de crédito.
O padrão-ouro nunca entrou em colapso; foram os governos que o
destruíram. Assim como o livre comércio,
o padrão-ouro era incompatível com o estatismo.
Os governos abandonaram o padrão-ouro porque eles estavam ávidos para
que os preços domésticos e os salários subissem acima dos níveis praticados
pelo mercado mundial, e também porque eles queriam estimular as exportações e
coibir as importações. A estabilidade das taxas de câmbio era, a
seu ver, não um benefício, mas sim uma perda.
Esta é exatamente a essência dos ensinamentos monetários de Lord
Keynes. A escola keynesiana defende calorosamente
a instabilidade das taxas de câmbio [ênfase minha].[4]
Adicionalmente,
não é surpresa alguma que Mises tenha desdenhado os teóricos de Chicago, tanto nesta
área quanto em outras, por eles terem se deixado levar pelo mais grosseiro tipo
de keynesianismo. Ademais, Mises
afirmava que seria relativamente simples restabelecer o padrão-ouro e retornar
às taxas de câmbio fixas:
A única condição necessária é o abandono das políticas de
crédito fácil e dos esforços para se combater as importações por meio da
desvalorização cambial.
Além
disso, Mises afirmava que apenas um câmbio fixo é compatível com uma genuína
democracia, e que todo o inflacionismo livremente permitido pelo câmbio
flexível é essencialmente antidemocrático:
A inflação é essencialmente antidemocrática. Controle democrático significa que a
população tem o controle do orçamento do governo. O governo tem apenas uma fonte de receita —
impostos. Nenhuma tributação é legítima
sem o consentimento da população. Mas se
o governo criar para si outras fontes de renda, ele poderá se livrar do
controle da população (Mises
1969, 251-253).
Somente
quando a taxa de câmbio é fixa os governos são obrigados a dizer a verdade para
os cidadãos. Por isso, a tentação de recorrer
à inflação e ao câmbio flexível para evitar o custo político dos sempre
impopulares aumentos de impostos é tão forte e destrutiva. Consequentemente, mesmo que não haja um
padrão-ouro, uma taxa de câmbio fixa restringe e disciplina a arbitrariedade
dos políticos:
Mesmo na ausência de um padrão-ouro puro, taxas de câmbio
fixas propiciam alguma blindagem contra a inflação, algo que não ocorre em um
sistema de câmbio flexível. Com um
câmbio fixo, se um país inflacionar sua oferta monetária, os preços internos
irão subir e, como o câmbio é fixo, haverá um forte aumento das importações,
causando uma saída de moeda estrangeira.
O país será, portanto, vítima de uma crise no balanço de pagamentos,
causada por uma moeda sobrevalorizada.
Caso o nível das reservas internacionais caia muito, o governo terá de
desvalorizar sua taxa de câmbio, um processo relativamente difícil, repleto de riscos para os líderes políticos
envolvidos. Por outro lado, com uma
taxa de câmbio flexível, uma inflação monetária não gera nenhuma crise no
balanço de pagamentos, tampouco qualquer necessidade de desvalorizações
cambiais politicamente constrangedoras.
Ao contrário, há uma relativamente indolor depreciação da moeda nacional
em relação às moedas estrangeiras (Block 1999, 19, ênfase minha).
3. O euro como um "substituto" do
padrão-ouro — ou, por que os defensores da livre iniciativa e do livre mercado
deveriam defender o euro, uma vez que a única alternativa é um retorno ao nacionalismo
monetário
Como
vimos, economistas seguidores da Escola Austríaca defendem o padrão-ouro porque
ele coíbe e limita as decisões arbitrárias de políticos e burocratas. Ele disciplina o comportamento de todos os
agentes que participam do processo democrático.
Ele promove hábitos morais de comportamento humano. Em suma, ele restringe as mentiras e a
demagogia, e facilita e amplia a transparência e a verdade nas relações
sociais. Nem mais e nem menos. Talvez Ludwig von Mises tenha colocado da
melhor maneira:
O padrão-ouro faz com que a determinação do poder
aquisitivo da moeda seja independente das ambições e doutrinas dos partidos
políticos e dos grupos de pressão. Isto não é um defeito do padrão-ouro; é a
sua principal virtude (Mises
1966, 474).
A
introdução do euro em 1999 e sua culminação no início de 2002 significou o
desaparecimento do nacionalismo monetário e das taxas de câmbio flexíveis na
maior parte do continente europeu. Mais
ao final analisaremos os erros cometidos pelo Banco Central Europeu. Por ora, o que nos interessa é constatar que
as várias nações-membro da união monetária abandonaram e perderam sua autonomia
monetária, isto é, a possibilidade de manipular sua moeda nacional de acordo
com as necessidades políticas de cada momento.
Neste sentido, pelo menos em relação aos países da zona do euro, o euro
começou a agir e continua agindo muito semelhantemente ao funcionamento de um
padrão-ouro. Sendo assim, temos de enxergar
o euro como um passo claro e genuíno, ainda que imperfeito, rumo ao
padrão-ouro.
Adicionalmente,
o evento da Grande Recessão de 2008 revelou com ainda maior nitidez a natureza
disciplinadora do euro: pela primeira vez, os países da união monetária tiveram
de enfrentar uma profunda recessão econômica sem poder recorrer a políticas
monetárias autônomas. Antes da adoção do
euro, sempre que surgia uma crise, os governos e seus bancos centrais
invariavelmente agiam da mesma maneira: eles imprimiam dinheiro e injetavam
toda a liquidez necessária em suas economias, faziam com que suas moedas se
desvalorizassem em relação às outras e postergavam indefinidamente as dolorosas
reformas estruturais necessárias, as quais englobam liberalização econômica,
desregulamentação, maior flexibilidade nos preços e nos mercados (especialmente
nos preços dos salários e no mercado de trabalho), redução nos gastos públicos
e desmantelamento do poder dos sindicatos e do estado de bem-estar social. Com o euro, não obstante todos os erros,
fraquezas e concessões que iremos discutir mais abaixo, este tipo de protelação
e comportamento inconsequente deixou de ser possível.
Por
exemplo: na Espanha, em apenas um ano, dois diferentes governos foram
literalmente forçados a adotar uma série de medidas que, embora ainda bastante
insuficientes, seriam outrora consideradas politicamente impossíveis e
utópicas, até mesmo pelo mais otimista dos observadores:
- O artigo 135 da
Constituição espanhola recebeu uma emenda que inclui o princípio anti-keynesiano
da estabilidade e do equilíbrio orçamentário para o governo central, para
as comunidades autônomas e para os municípios;
- Todos os projetos que
implicam aumentos nos gastos públicos, favorecimento eleitoral e subsídios
— projetos sobre os quais os políticos regularmente baseavam suas ações e
popularidade — foram repentinamente suspensos;
- Os salários de todos os
funcionários públicos foram reduzidos em 5% e subsequentemente congelados,
enquanto seus cronogramas de trabalho foram expandidos;
- Os reajustes da Previdência
foram genuinamente congelados;
- A idade de aposentadoria
foi elevada uniformemente de 65 para 67 anos;
- Os gastos públicos totais
programados foram reduzidos em 15%; e
- Significativas
liberalizações foram feitas no mercado de trabalho, na jornada de trabalho
e, de maneira geral, em todo o emaranhado de regulamentações.[5]
Ademais,
isso que ocorreu na Espanha também está ocorrendo na Irlanda, em Portugal, na
Itália e até mesmo em países que, como a Grécia, até hoje representavam o paradigma
da frouxidão social, da falta de rigor orçamentário e da demagogia política.
Pela
primeira vez, e graças ao euro, a Grécia está enfrentando os desafios impostos
pelo seu próprio futuro. Pela primeira
vez, o tradicionalmente corrupto e falido governo grego adotou medidas
drásticas. Em dois anos (2010-2011), o
déficit público caiu 8 pontos percentuais; os salários dos funcionários
públicos foram cortados inicialmente em 15% e posteriormente em mais 20%, e a
quantidade deles foi reduzida em aproximadamente 80.000 empregados; o número de
câmaras municipais foi cortado à metade; a idade de aposentadoria foi elevada;
o salário mínimo foi reduzido. Esta
"heróica" reconstrução contrasta com a decomposição social e econômica da
Argentina, que tomou a estrada oposta (keynesiana e monetarista) rumo ao
nacionalismo monetário, à desvalorização e à inflação.[6]
No
que mais, os líderes políticos destes cinco países (Irlanda, Portugal, Espanha,
Itália e Grécia), que agora não mais podem manipular a política monetária com o
intuito de enganar seus cidadãos quanto ao verdadeiro custo de suas políticas,
foram sumariamente ejetados de seus respectivos cargos. E nações que até então pareciam imunes e
impassíveis à necessidade de reformas, como a Bélgica e principalmente a Holanda
e França, estão também começando a ser obrigadas a reconsiderar o volume total
de seus gastos públicos, bem como a estrutura de seus extremamente inchados
programas assistencialistas.
Tudo
isto inegavelmente se deve ao novo arranjo monetário criado pela introdução do
euro, o qual, exatamente por isso, deve ser visto com auspicioso regozijo por
todos os defensores da economia baseada na livre iniciativa e na limitação dos
poderes do governo. É muito difícil
imaginar qualquer uma destas medidas sendo adotada em um contexto de moedas
nacionais e taxas de câmbio flexíveis: sempre que puderem, políticos irão
evitar reformas impopulares, e os cidadãos, qualquer medida que requeira
sacrifício e disciplina. Por
conseguinte, na ausência do euro, as autoridades teriam novamente incorrido
naquele velho caminho de sempre: adiar o processo de correção recorrendo à
inflação monetária para desvalorizar a moeda e com isso recuperar o "pleno
emprego" e ganhar competitividade no curto prazo (com os políticos se resguardando
das responsabilidades e ocultando a grave responsabilidade dos sindicatos como
os reais causadores do alto desemprego).
Em suma, a protelação indefinida das reformas estruturais necessárias.
(Neste ponto, vale a pena um parênteses para
chamar a atenção para um fenômeno semelhante ocorrido no Brasil: o único
momento de nossa história recente em que o governo se viu compelido a adotar
reformas mais liberais foi justamente quando estávamos sob um câmbio semi-fixo,
entre 1995 e 1999. Além de reformas na
política salarial do setor público, na Previdência, na política de salário
mínimo, e das privatizações da Vale e da telefonia, havia rumores de intenção de
privatização da Petrobras, da Eletrobras e do BNDES, privatizações essas que
foram completamente abandonadas com a adoção do câmbio flexível em 1999. Desde então, não mais houve qualquer esforço
de contenção do crescimento do estado.)
Outro
ponto essencial a ser observado é que abandonar o euro é muito mais difícil do
que foi sair do padrão-ouro. Com efeito,
as moedas ancoradas ao ouro mantiveram sua denominação local (o franco, a
libra, o dólar etc.), o que tornava relativamente fácil, ao longo da década
de1930, desatrelá-las do ouro. Como
ensinado pelo teorema da regressão monetária formulado por Mises em 1912 (Mises 2009 [1912], 111-123),
os agentes econômicos puderam simplesmente continuar utilizando sem nenhuma
interrupção a moeda nacional — a qual não mais era conversível em ouro — baseando-se
no poder de compra que a moeda possuía imediatamente antes da reforma. Hoje, esta possibilidade não existe para
aqueles países que desejarem, ou forem obrigados, a abandonar o euro.
Dado
que o euro é a única unidade monetária compartilhada por todos os países da
união monetária, seu abandono requer a introdução de uma nova moeda nacional,
com poder de compra desconhecido e muito menor que o do euro. Adicionalmente, não podemos ignorar os
imensos distúrbios que tal mudança acarretaria para todos os agentes econômicos
do mercado: devedores, credores, investidores, empreendedores e
trabalhadores. Pelo menos nesta questão
específica, e do ponto de vista da teoria austríaca, temos de admitir que o
euro é superior ao padrão-ouro, e que teria sido extremamente útil para a
humanidade se, na década de 1930, todos os diferentes países houvessem sido
obrigados a permanecer no padrão-ouro, sabendo que, como ocorre hoje com o
euro, qualquer outra alternativa seria praticamente impossível de ser colocada
em prática, e teria afetado os cidadãos de uma maneira muito mais danosa,
dolorosa e óbvia.
Logo,
até certo ponto não deixa de ser cômico (e também patético) notar que aqueles engenheiros
sociais e políticos intervencionistas que, liderados à época por Jacques
Delors, criaram a moeda única com o intuito de fazer com que ela fosse apenas
mais uma ferramenta a ser utilizada em seu grandioso projeto de alcançar uma
união política europeia, hoje constatam com total desespero aquilo que não
foram capaz de prever: que o euro acabou funcionando como um padrão-ouro
genuíno, disciplinando cidadãos, políticos e autoridades, amarrando as mãos de
demagogos, expondo grupos de interesse (liderados pelos eternamente
privilegiados sindicatos), e até mesmo questionando a sustentabilidade dos
fundamentos essenciais do estado de bem-estar social.[7]
De
acordo com a Escola Austríaca, esta é precisamente a principal vantagem
comparativa do euro como padrão monetário em geral e contra o nacionalismo
monetário em particular, e não
aqueles argumentos mais prosaicos, como "redução dos custos de transação" ou
"eliminação dos riscos cambiais", os quais foram apresentados à época pelos
invariavelmente tacanhos e imediatistas engenheiros sociais do momento.
Agora,
consideremos a diferença entre o euro e um sistema de taxas de câmbio fixas no
que concerne ao processo de reajuste que ocorre quando diferentes graus de
expansão do crédito e intervencionismo surgem entre os diferentes países. Obviamente, em um sistema de câmbio fixo,
estas diferenças se manifestam em consideráveis tensões cambiais que, no final,
irão culminar em explícitas desvalorizações e em altos custos em termos de
prestígio perdido, os quais, felizmente, recaem sobre as correspondentes
autoridades políticas. No caso de uma
moeda única, como o euro, tais tensões se manifestam em uma perda generalizada
de competitividade, a qual só poderá ser recuperada com a introdução das
reformas estruturais necessárias para garantir mais flexibilidade de mercado,
com a desregulamentação de todos os setores da economia e com as reduções e
reajustes necessários na estrutura de preços relativos.
Adicionalmente,
tais medidas acabam afetando as receitas do setor público, e consequentemente
os riscos de crédito da cada país. Com
efeito, sob as atuais circunstâncias, na zona do euro, o valor atual da dívida
pública soberana de cada país nos mercados financeiros passou a refletir as
tensões que antes se transformavam apenas em crises cambiais, quando as taxas
de câmbio eram relativamente fixadas em um ambiente de nacionalismo monetário. Por isso, atualmente, o papel principal da
fiscalização dos governos não está sendo desempenhado por especuladores de
moedas estrangeiras, mas sim pelas agências de classificação de risco, e
especialmente por investidores internacionais, os quais, ao decidirem se
compram ou não títulos da dívida soberana, estão saudavelmente determinando o
ritmo das reformas ao mesmo tempo em que também disciplinam e determinam o
destino de cada país.
Este
processo tende a ser considerado "não-democrático", mas a realidade é
exatamente oposta. No passado, a
democracia sofria cronicamente e era corrompida por ações políticas
irresponsáveis baseadas em manipulações monetárias e inflação, um tributo real
de consequências devastadoras, o qual é imposto desde fora do parlamento sobre
todos os cidadãos de maneira gradual, insidiosa e sorrateira. Hoje, com o euro, o recurso ao imposto
inflacionário foi bloqueado, ao menos em nível local para cada país, e os
políticos foram repentinamente expostos e têm sido obrigados a dizer a verdade
e a aceitar a correspondente perda de apoio que tal medida acarreta.
Se
é para haver democracia, e se quiserem que ela funcione, tal arranjo requer um
arcabouço que discipline os agentes que participam dela. E hoje, na Europa Continental, esta função
está sendo exercida pelo euro.
Consequentemente, as sucessivas quedas dos governos da Irlanda, da
Grécia, de Portugal, da Itália, da Espanha e da França, longe de revelarem uma
falta de democracia, revelam na verdade um crescente grau de rigor, de transparência
orçamentária e de saúde democrática que o euro está estimulando em suas
respectivas sociedades.
4. A diversa e heterogênea "coalizão
anti-euro"
Por
ser interessante e de valor altamente ilustrativo, façamos agora, de maneira
sucienta, alguns comentários sobre o diverso e heterogêneo amálgama formado
pelos inimigos do euro. Este grupo
inclui em suas fileiras elementos díspares como doutrinários de
extrema-esquerda e extrema-direita, keynesianos nostálgicos ou inflexíveis como
Krugman e Stiglitz, monetaristas dogmáticos defensores de taxas de câmbio
flexíveis, como Barro e outros, defensores ingênuos da teoria de Robert Mundell
sobre áreas monetárias ótimas, chauvinistas apavorados com o futuro do dólar (e
da libra), e, por fim, toda a legião de confusos derrotistas que "face ao
iminente desaparecimento do euro" propõem a "solução" de explodir tudo e abolir
a moeda o mais rápido possível.[8]
Talvez
a mais clara ilustração (ou, melhor ainda, a mais convincente evidência) do
fato de que Mises estava totalmente correto em sua análise sobre os efeitos
disciplinadores das taxas de câmbio fixas, e especialmente do padrão-ouro,
sobre a demagogia de políticos e sindicatos jaz na maneira como os líderes de
partidos políticos de esquerda, membros de sindicatos, formadores de opinião
"progressistas", espanhóis do movimento indignados,
políticos nacionalistas e, no geral, todos os fãs de gastos públicos
descontroladas, de subsídios estatais e de intervencionismo se revoltam aberta
e diretamente contra a disciplina imposta pelo euro, e especificamente contra a
perda de autonomia na política monetária de cada país e tudo o que isso
implica: a tão ultrajante dependência dos mercados, dos especuladores e dos
investidores internacionais, os quais agora decidem se irão ou não comprar os títulos
da crescente dívida soberana destes países, decisão esta essencial para o
financiamento dos contínuos déficits públicos.
Basta
apenas dar uma olhada nos editoriais da maioria dos jornais de esquerda[9],
ou ler as declarações dos políticos mais demagogos[10],
ou dos mais proeminentes sindicalistas, para se constatar esta realidade. Nos dias atuais, assim como na década de 1930
sob o padrão-ouro, os inimigos do mercado e os defensores do socialismo, do
estado assistencialista e da demagogia sindicalista estão protestando em
uníssono, tanto em público quanto em privado, contra "a rígida disciplina que o
euro e os mercados financeiros estão impondo sobre nós", e estão exigindo a
imediata monetização de toda a dívida pública necessária, sem oferecer qualquer
contramedida na forma de austeridade financeira ou de reformas que estimulem a
competitividade.
Já
na esfera mais acadêmica, mas que também goza de ampla cobertura da mídia,
teóricos contemporâneos do keynesianismo estão montando uma grande ofensiva
contra o euro, com uma beligerância comparável àquela que o próprio Keynes
havia demonstrado contra o padrão-ouro nos anos 1930. Especialmente paradigmático é o caso de
Krugman[11],
que, como colunista nacional, conta semanalmente exatamente a mesma e antiga
cantilena sobre como o euro significa uma "camisa-de-força" para a recuperação
do emprego, indo ainda mais longe a ponto de criticar o perdulário governo
americano por não ser expansionista o suficiente e por não ter aumentado ainda
mais seu (enorme) pacote de estímulos fiscais.[12] Um pouco mais inteligente e erudita, mas não
menos enganada, é a opinião de Skidelsky, dado que ele ao menos explica que a
teoria austríaca dos ciclos econômicos[13]
oferece a única alternativa ao seu adorado Keynes e claramente reconhece que a
atual situação de fato envolve uma repetição do duelo entre Hayek e Keynes
durante a década de 1930.[14]
Ainda
mais estranha é a posição em relação a taxas de câmbio flexíveis assumida por
teóricos neoclássicos em geral e por monetaristas e membros da Escola de
Chicago em particular.[15] Tudo indica que o interesse deste grupo em
taxas de câmbio flexíveis e em nacionalismo monetário predomina sobre seu
(presumo que seja sincero) desejo de estimular reformas econômicas
liberalizantes. Com efeito, seu objetivo
principal é manter a autonomia da política monetária e poder desvalorizar (ou
depreciar) a moeda local para "recuperar a competitividade" e absorver o
desemprego o mais rápido possível, e então, somente então, eles passam a se
concentrar em tentar estimular reformas de livre mercado. Sua ingenuidade é extrema, e nos referimos a
ela em nossa discussão sobre as razões da discordância entre Mises, do lado da
Escola Austríaca, e Friedman, do lado dos teóricos de Chicago, no debate sobre
taxas de câmbio fixas versus flexíveis.
Mises
sempre entendeu claramente que políticos não têm nenhuma propensão a tomar
medidas na direção correta caso são sejam literalmente obrigados a fazer isso,
e que taxas de câmbio flexíveis e nacionalismo monetário removem praticamente
todos os incentivos capazes de disciplinar políticos, de abolir a "rigidez para
baixo" dos salários (rigidez esta que se torna uma espécie de suposição
auto-realizável que monetaristas e keynesianos aceitam animadamente) e de
acabar com os privilégios usufruídos pelos sindicatos e por todos os outros
grupos de interesse. Mises também
observou que, em decorrência de tudo isso, no longo prazo, monetaristas acabam
se tornando seguidores das velhas
doutrinas keynesianas: tão logo a "competitividade" da economia é "recuperada"
em decorrência da desvalorização da moeda, as reformas são postergadas; e o que
é ainda pior, sindicalistas se tornam acostumados a ver os efeitos destrutivos
de suas políticas restritivas sendo continuamente mascarados por sucessivas
desvalorizações.
Esta
latente contradição entre defender o livre mercado e apoiar o nacionalismo
monetário e a manipulação da moeda por meio de taxas de câmbio "flexíveis" é
também evidente em vários seguidores daquela que é a mais difundida
interpretação da teoria das "áreas monetárias ótimas" de Robert A. Mundell.[16] Segundo esta teoria, uma área monetária ótima
é aquela na qual todos os fatores de produção têm mobilidade perfeita; caso não
haja esta mobilidade perfeita, então, segundo a teoria, seria melhor subdividir
esta área em regiões ainda menores, cada uma com sua própria moeda, de modo que
elas possam aplicar uma política monetária autônoma caso haja algum "choque
externo". No entanto, temos de fazer a
pergunta: este raciocínio é sensato? Nem
um pouco. A principal fonte de rigidez
nos mercados de trabalho e de fatores de produção está na intervenção e na regulação
estatal dos mercados, de modo que é absurdo pensar que estados e seus governos
irão voluntariamente cometer harakiri e abrir mão voluntariamente de seus
poderes e trair sua clientela política com o intuito de adotar uma moeda comum
após tudo isso. Em vez disso, a verdade
é exatamente oposta: somente quando um país aderiu a uma moeda comum (no caso
da Europa, o euro) é que seus políticos foram forçados a implementar reformas
que, até muito recentemente, teriam sido inconcebíveis. Nas palavras de Walter Block:
O governo é a principal ou a única causa da imobilidade de
fatores de produção. O estado, com suas
regulamentações ... é a principal razão por que os fatores de produção
apresentam menos mobilidade do que poderiam apresentar. Em outras épocas, os custos de transporte seriam
a principal explicação; porém, com todo o progresso tecnológico alcançado, tal
quesito se tornou muito menos importante no mundo moderno. Sendo assim, sob um genuíno capitalismo
laissez-faire, não haveria praticamente nenhuma imobilidade de fatores. Mesmo considerando que estas suposições sejam
apenas aproximadamente verdadeiras, a região mundelliana seria todo o globo —
exatamente como ocorreria sob um padrão-ouro.[17]
Esta
conclusão de Block é igualmente aplicável à zona do euro, no sentido de que o
euro age, como já indicado, como um "substituto" do padrão-ouro que disciplina
e limita o poder arbitrário dos políticos e das nações-membro.
Nunca
é demais enfatizar que keynesianos, monetaristas e mundellianos estão
coletivamente errados porque raciocinam exclusivamente em termos de agregados
macroeconômicos. Daí proporem, com
pequenas diferenças de método, o mesmo tipo de ajuste via manipulações
monetárias e fiscais, "ajuste fino" e taxas de câmbio flexíveis. Eles acreditam que todo o esforço necessário
para se superar uma crise deve ser guiado por modelos macroeconômicos e por
mais engenharia social. Sendo assim,
eles desconsideram por completo as profundas distorções macroeconômicas que as
manipulações monetárias (e fiscais) geram na estrutura dos preços relativos e
na estrutura de bens de capital. Eles
imaginam que uma desvalorização forçada da moeda é uma solução do tipo "uma medida
serve para tudo", no sentido de que ela gerará um aumento percentual linear no
preço dos bens de consumo, dos serviços e dos fatores de produção, um aumento
que será o mesmo para todos. Embora, no
curto prazo, isto dê a impressão de uma intensa recuperação da atividade
econômica e de uma rápida absorção do desemprego, o que se está fazendo na
verdade é distorcer completamente a estrutura dos preços relativos (dado que, sem
manipulações monetárias, alguns preços cairiam mais, outros cairiam menos,
outros não cairiam e outros até mesmo poderiam aumentar), o que acaba levando a
uma alocação errônea e insustentável de recursos produtivos e causando um
grande desajuste que qualquer economia levaria anos para processar, absorver e
se recuperar.[18] Esta é a análise microeconômica centrada nos
preços relativos e na estrutura produtiva, a qual os economistas austríacos
desenvolveram de maneira distinta[19] e
a qual, em contraste, está totalmente ausente do ferramental analítico dos
teóricos econômicos que se opõem ao euro.
Finalmente,
fora da esfera puramente acadêmica, a enfadonha insistência com que
economistas, investidores e analistas financeiros anglo-saxões tentam
desacreditar o euro profetizando os cenários mais sombrios possíveis é, de
certa forma, um tanto suspeitoso. Tal
impressão é reforçada pela posição hipócrita dos diferentes governos americanos
(e também, em um grau menor, do governo britânico) em desejar (de maneira indiferente)
que a zona do euro "coloque sua economia em ordem" e, não obstante, deixando de
mencionar, por interesse próprio, que a crise financeira começou do outro lado
do Atlântico, isto é, com as políticas negligentes expansionistas implantadas
pelo Federal Reserva durante anos, cujos efeitos se espalharam para o resto do
mundo por meio do dólar, que ainda é a moeda utilizada como reserva
internacional. Adicionalmente, há uma
pressão quase que irresistível para que a zona do euro introduza políticas monetárias
pelo menos tão expansionistas e irresponsáveis ("afrouxamento quantitativo" —
QE) quanto aquelas adotadas pelos EUA, e esta pressão é duplamente hipócrita porque
tal ocorrência iria, sem dúvida nenhuma, desfechar o golpe de misericórdia na
moeda única europeia.
Seria
desarrazoado dizer que esta postura do mundo político, econômico e financeiro
anglo-saxão estaria camuflando algum temor de que o futuro do dólar como moeda
internacional de troca possa estar ameaçado caso o euro sobreviva e seja capaz de
efetivamente competir com o dólar em um futuro não muito distante? Todos os indicadores sugerem que esta questão
está se tornando cada vez mais pertinente, e embora hoje não seja muito
politicamente correto dizer isso, o fato é que tal questão está jogando sal na
ferida mais dolorosa dos analistas e das autoridades do mundo anglo-saxão: o
euro está surgindo como um potencial e enormemente poderoso rival para o dólar
em nível internacional.[20]
Como
podemos ver, a coalizão anti-euro reúne interesses bastante variados e
poderosos. Cada um deles receia o euro
por motivos distintos. No entanto, todos
eles compartilham um mesmo denominador comum: os argumentos que formam a base
de sua oposição ao euro seriam exatamente os mesmos — e eles inclusive
poderiam repeti-los ainda mais enfaticamente — se eles tivessem de lidar com o
padrão-ouro clássico caso este fosse o sistema monetário internacional. Com efeito, há um enorme grau de semelhança
entre as forças que se aliaram em 1930 para incitar o abandono do padrão-ouro e
as forças que hoje buscam (até agora, sem sucesso) reintroduzir o velho e
superado nacionalismo monetário na Europa.
Como
já indicado, era tecnicamente muito mais fácil abandonar o padrão-ouro do que é
hoje para um país abandonar a união monetária.
Neste contexto, não deveria ser surpresa alguma que os membros da
coalizão anti-euro frequentemente recaiam no mais desavergonhado derrotismo:
primeiro eles preveem um desastre e a impossibilidade de se manter a união
monetária; e então, logo em seguida, eles propõem a "solução" de desmantelar
tudo imediatamente. Eles inclusive
chegam ao ridículo de promover competições internacionais (na Inglaterra, é
claro, lar de Keynes e do nacionalismo monetário) nas quais centenas de
"especialistas" e doidivanas fornecem suas propostas para a melhor e mais
inócua maneira de se aniquilar a união monetária europeia.[21]
Em
suma, já está muito claro que os defensores da concorrência entre moedas
deveriam direcionar seus esforços contra o monopólio do dólar (por exemplo,
apoiando o euro) em vez de defender a reintrodução de, e a competição entre,
"pequenas moedas locais" de pequena importância (o dracma, o escudo, a peseta,
a lira, a libra e até mesmo o marco).
5. Os verdadeiros pecados cardinais da
Europa e o erro fatal do Banco Central Europeu[22]
Ninguém
pode negar que a União Europeia sofre cronicamente de vários e sérios problemas
econômicos e sociais. No entanto, o tão
difamado euro não representa nenhum deles.
Muito pelo contrário: o euro está agindo como um poderoso catalisador
capaz de revelar a severidade dos reais problemas da Europa e, com isso,
acelerar ou "precipitar" a implementação das medidas necessárias para
solucioná-los. Com efeito, hoje, o euro
está ajudando a difundir, mais do que nunca, a conscientização de que o inchado
estado assistencialista europeu é insustentável e tem de ser substancialmente
reformado.[23]
O mesmo
pode ser dito sobre os programas universais de auxílios e subsídios, dentre os
quais a Política Agrícola Comum ocupa uma posição destacada, tanto em termos de
seus efeitos economicamente danosos quanto em termos de sua total falta de
racionalidade econômica.[24] Acima de tudo, o mesmo pode ser dito da
cultura de engenharia social e das regulamentações opressivas, a qual, sob o
pretexto de harmonizar a legislação dos diferentes países, paralisa o mercado
único europeu e o impede de ser um genuíno livre mercado.[25] Hoje, mais do que nunca, os reais custos de
todas estas falhas estruturais estão se tornando aparentes na zona do euro: sem
possuírem uma política monetária autônoma, os diferentes governos estão
literalmente sendo forçados a reconsiderar (e, quando necessário, a reduzir)
seus gastos públicos em todas as áreas, e a tentar recuperar e ganhar
competitividade internacional por meio de desregulamentações, aumentando o
máximo possível a flexibilidade de seus mercados (especialmente o mercado de
trabalho, o qual tradicionalmente sempre foi muito rígido em vários dos países
da união monetária.)
Além dos
supracitados pecados cardinais da economia europeia, faz-se necessário
acrescentar mais um, o qual talvez seja ainda mais grave devido à sua natureza
peculiar e sorrateira. Estamos nos
referindo à grande facilidade com que as instituições europeias — muitas vezes
por falta de visão, de liderança ou de convicção quanto ao seu próprio projeto
— se permitem enroscar em um emaranhado de políticas que, no longo prazo, são
incompatíveis com as exigências impostas por uma moeda única e por um mercado
único e genuinamente livre.
Primeiro, é
surpreendente observar a crescente regularidade com que novas, fartas e
opressivas medidas regulatórias — inventadas pelo mundo político e acadêmico
anglo-saxão, especificamente nos EUA[26] — são
introduzidas na Europa, e quase sempre quando tais medidas já se comprovaram
ineficazes ou extremamente destruidoras.
Esta perniciosa influência é uma tradição há muito estabelecida. (Lembremo-nos que os subsídios agrícolas, as
legislações antitruste e as regulamentações voltadas para a "responsabilidade
social corporativa" foram inventadas, assim como vários outros
intervencionismos fracassados, nos EUA.)
Atualmente, na Europa, estas medidas regulatórias surgem recorrentemente
e são impingidas em todos os níveis — por exemplo, com respeito ao chamado
"valor de mercado justo" e ao resto do Padrão Internacional de Contabilidade,
ou às (até o momento, felizmente fracassadas) tentativas de implementar os
chamados acordos de Basileia III para o setor bancário e Solvência II para o
setor de seguros, ambos os quais sofrem de intransponíveis e fundamentais
deficiências teóricas, bem como de sérios problemas com relação à sua aplicação
prática.[27]
Um segundo
exemplo da perniciosa influência anglo-saxã pode ser encontrado no Plano de
Recuperação Econômica da Europa, que a Comissão Europeia lançou ao final de
2008 sob os auspícios da Reunião de Cúpula de Washington, sob a liderança de
políticos keynesianos como Barack Obama e Gordon Brown, e sob os conselhos de
teóricos econômicos que são inimigos do euro, como Krugman e outros.[28] O plano recomendava aos países adotantes do
euro um aumento dos gastos públicos em aproximadamente 1,5% do PIB (algo em
torno de 200 bilhões de euros em nível agregado). Embora alguns países, como a Espanha, tenham
cometido o erro de expandir seus orçamentos, o plano, graças a Deus e ao euro,
e para o total desespero dos keynesianos e de seus acólitos[29],
rapidamente se esvaiu tão logo se tornou claro que ele servia apenas para
aumentar os déficits, impossibilitar a consecução dos objetivos do Tratado de
Maastricht, e desestabilizar severamente os mercados da dívida soberana dos
países da zona do euro. Mais uma vez, o
euro impôs um arcabouço disciplinador e uma precoce restrição aos déficits, em
contraste à negligência orçamentária de países vítimas do nacionalismo
monetário, especificamente EUA e Inglaterra, que fecharam o ano de 2010 com um
déficit público de 10,1% do PIB e o de 2011 com um de 8,8% — os quais, em
escala mundial, só são superados por Grécia e Egito. Não obstante déficits tão inchados e pacotes de
estímulos fiscais tão agigantados, o desemprego na Inglaterra e nos EUA
permanece em níveis recordes, e suas respectivas economias simplesmente não
saem do chão.
Terceiro e
principal: há uma crescente pressão para uma completa união política
europeia,
a qual, sugerem alguns, seria a única "solução" que possibilitaria a
sobrevivência do euro no longo prazo. Além
dos "eurofanáticos", que sempre defendem qualquer desculpa que possa
justificar
mais poder e centralismo para Bruxelas, dois outros grupos coincidem em
seu
apoio à união política. Um grupo é
formado, paradoxalmente, pelos inimigos do euro, particularmente aqueles
de
origem anglo-saxã: há os americanos, que, deslumbrados pelo poder
centralizador
de Washington e cientes de que ele não tem como ser duplicado na Europa,
sabem
que, com sua proposta, estarão injetando um vírus desagregador e mortal
ao
euro; e há os britânicos, que fazem do euro um (injustificável) bode
expiatório
sobre o qual descarregam suas (totalmente justificáveis) frustrações em
vista
do crescente intervencionismo de Bruxelas.
O outro grupo é formado por todos aqueles teóricos e intelectuais que
creem que somente a disciplina imposta por uma agência governamental
centralizadora pode garantir o cumprimento dos objetivos estabelecidos
por
Maastricht quanto aos déficits e ao endividamento público. Trata-se de
uma crença errônea. O próprio mecanismo inerente à união
monetária garante, assim como o padrão-ouro, que aqueles países que
abandonarem
o rigor orçamentário e a estabilidade verão sua solvência colocada em
risco e serão
forçados a adotar medidas urgentes para restabelecer a sustentabilidade
de suas
finanças públicas caso não queiram ser forçados a decretar moratória.
Não
obstante tudo o que foi dito acima, o mais sério problema não jaz na ameaça de
uma impossível união política, mas sim no inquestionável fato de que uma
política de expansão de crédito mantida de maneira contínua pelo Banco Central
Europeu durante um período de aparente prosperidade econômica é capaz de
cancelar, pelo menos temporariamente, os efeitos disciplinadores exercidos pelo
euro sobre os agentes econômicos da cada país.
Assim, o erro fato do Banco
Central Europeu consiste em não ter conseguido isolar e proteger a Europa da
grande expansão do crédito orquestrada em escala mundial pelo Banco Central
americano, o Federal Reserve, que começou em 2001.
Ao longo de
vários anos, em flagrante desacato ao Tratado de Maastricht, o Banco Central
Europeu permitiu que o M3 crescesse a uma taxa maior que 9% ao ano, a qual
excede em muito a meta de 4,5% de crescimento da oferta monetária, meta esta
originalmente estipulada pelo próprio BCE.[30] Adicionalmente, embora este aumento fosse
consideravelmente menor do que aquele provocado pelo Banco Central dos EUA, o
dinheiro não foi uniformemente distribuído entre os países da união monetária,
gerando assim um impacto desproporcional sobre os países periféricos (Espanha,
Portugal, Irlanda e Grécia), os quais viram seus agregados monetários crescer a
um ritmo bem mais rápido, de três a quatro vezes mais rápido do que na França
ou na Alemanha. Várias razões podem ser
fornecidas para se explicar este fenômeno, desde a pressão aplicada pela França
e pela Alemanha — ambos os quais queriam uma política monetária que, durante
aqueles anos, não fosse muito restritiva para eles —, até a extrema miopia dos
países periféricos, que não queriam admitir que estavam vivenciando uma bolha
especulativa, como foi o caso da Espanha, e com isso foram incapazes de dar
instruções categóricas para seus representantes no conselho do BCE para chamar
a atenção quanto à importância de a instituição obedecer estritamente às metas
de crescimento da oferta monetária estabelecidas pelo próprio Banco Central
Europeu.
Com efeito,
durante os anos anteriores à crise, todos estes países, exceto a Grécia[31],
observaram com sobras o limite de 3% para seus déficits orçamentários; e
alguns, como a Espanha e a Irlanda, até mesmo apresentaram grandes superávits
em suas contas[32]. Daí, embora o núcleo da União Europeia houvesse
se mantido longe do processo americano de exuberância irracional, este processo
foi repetido com intensa virulência nos países da periferia europeia, e muito
poucas pessoas diagnosticaram corretamente o grave perigo de tudo o que estava
acontecendo[33].
Se, em vez
de utilizarem ferramentas analíticas macroeconômicas e monetaristas importadas
do mundo anglo-saxão, os acadêmicos e as autoridades políticas tanto dos países
afetados quanto do Banco Central Europeu houvessem utilizado a teoria austríaca
dos ciclos econômicos[34] — a qual,
afinal, é um produto do mais genuíno pensamento econômico do continente europeu
—, eles teriam sido capazes de detectar a tempo a natureza amplamente
artificial da prosperidade daqueles anos, a insustentabilidade de vários dos investimentos
(especialmente no que diz respeito ao mercado imobiliário) que estavam sendo
lançados em decorrência da grande facilidade de crédito e, principalmente, que
o surpreendente aumento das recitas do governo seriam de duração extremamente
curta.
Ainda
assim, felizmente — embora no mais recente ciclo o Banco Central Europeu tenha
falhado em cumprir os padrões que os cidadãos europeus tinham o direito de
exigir que ele cumprisse, e por isso possamos classificar sua política de "uma
grave tragédia" —, a lógica do euro como moeda única prevaleceu, expondo
claramente os erros cometidos pelos políticos e obrigando todos a retornarem ao
caminho do controle e da austeridade. Na
próxima seção, iremos sucintamente abordar a maneira específica como o Banco Central
Europeu formulou sua política durante a crise e como e em quais pontos essa
política se difere daquela seguida pelos bancos centrais dos EUA e do Reino
Unido.
6. O euro versus o dólar (e a libra) e a
Alemanha versus os EUA (e o Reino Unido)
Uma das
mais marcantes características do último ciclo, que terminou na Grande Recessão
de 2008, foi sem dúvida o comportamento divergente entre as políticas
monetárias e fiscais das áreas anglo-saxãs, baseadas em um nacionalismo
monetário, e aquelas seguidas pelos países-membros da união monetária europeia. Com efeito, desde o momento em que a crise
financeira e a recessão se manifestaram em 2007-2008, tanto o Federal Reserve
quanto o Banco da Inglaterra adotaram políticas monetárias que se resumiam a
reduzir as taxas básicas de juros para quase zero, injetar enormes quantias de
dinheiro na economia (política eufemisticamente chamada de "afrouxamento
quantitativo"), e monetizar de maneira contínua, direta e descarada a dívida
pública soberana em escala maciça.[35] A esta extremamente frouxa política monetária
(com a qual monetaristas e keynesianos concordam) foi acrescentado um forte
estímulo fiscal que, tanto nos EUA quanto na Inglaterra, gerou déficits
orçamentários da ordem de 10% de seus respectivos PIBs (os quais, não obstante
seu gigantismo, alguns keynesianos mais recalcitrantes, como Krugman e outros,
não consideram nem sequer perto do suficiente).
Em
contraste com a situação do dólar e da libra, na zona do euro, felizmente, o
dinheiro não pode ser tão facilmente injetado na economia, tampouco uma
imprudência fiscal pode ser mantida indefinidamente e impunemente. Ao menos em teoria, o Banco Central Europeu
não possui autoridade para monetizar a dívida pública europeia, e embora ele
tenha aceitado títulos da dívida pública como colateral em troca de vultosos
empréstimos para o sistema bancário, e em meados de 2010 tenha esporadicamente
comprado diretamente títulos dos mais ameaçados países da periferia (Grécia,
Portugal, Irlanda, Itália e Espanha), há certamente uma diferença econômica
fundamental entre o comportamento dos EUA e do Reino Unido e a política da
Europa continental: ao passo que a expansão monetária e a imprudência
orçamentária são feitas de maneira deliberada, descarada e sem nenhuma reserva
no mundo anglo-saxão, na Europa tais políticas são feitas de maneira relutante,
e em muitos casos após numerosas, consecutivas e intermináveis "reuniões de
cúpula". Elas são o resultado de longas
e difíceis negociações entre os vários lados, negociações nas quais países com
interesses bastante distintos têm de chegar a um acordo.
Adicionalmente,
e o que é ainda mais importante: quando o
dinheiro é injetado na economia, dando apoio às dívidas dos países em
dificuldade, tais medidas são sempre contrabalançadas por, e implementadas em
troca de, reformas baseadas em austeridade orçamentária (e não por pacotes de
estímulos fiscais) e na introdução de políticas que estimulam a liberalização
do mercado e a competitividade.[36] Ademais, embora teria sido melhor caso tudo houvesse
acontecido bem antes, a suspensão "de facto" do governo grego dos pagamentos de
sua dívida — cujo valor foi reduzido ("haircut") em aproximadamente 75% para
os investidores privados que portavam essa dívida e que erroneamente confiaram
na sustentabilidade da dívida soberana da Grécia —, sinalizou claramente aos
mercados que outros países em apuros não têm outra alternativa senão
implementar de maneira firme, rigorosa e sem demoras todas as reformas
necessárias. Como já vimos, até mesmo
estados como a França, que até hoje pareciam intocáveis e confortavelmente aninhados
em um intumescido estado assistencialista, perderam a ótima classificação de
risco de sua dívida, viram seu diferencial de juros em relação aos títulos
alemães subir, e se descobriram crescentemente condenados a introduzir
austeridade e reformas liberalizantes para evitar pôr em risco sua até
então indiscutível filiação à linha dura do euro.[37]
Do
ponto de vista político, é bastante óbvio que a Alemanha (e particularmente a
chanceler Angela Merkel) possui o papel principal em exortar a continuidade de
todo este processo de restauração e austeridade (e de se opor a todos os tipos
de propostas inadequadas que, assim como a emissão de "títulos europeus",
removeriam todos os incentivos que os diferentes países têm hoje para agir com
rigor). Por vários momentos, a Alemanha
terá de nadar contra a correnteza. De um
lado, há uma constante pressão política internacional por medidas de estímulo
fiscal, pressão esta oriunda especialmente do governo americano, que está
utilizando a" crise do euro" como uma cortina de fumaça para ocultar os
monumentais fracassos de suas próprias políticas. E, de outro lado, a Alemanha tem de lidar com
a rejeição e uma falta de compreensão de todos aqueles países que desejam
permanecer no euro unicamente por causa das vantagens que este lhes oferece, mas
que, ao mesmo tempo, violentamente se rebelam contra a amarga disciplina que a
moeda única europeia impõe sobre todos, e especialmente sobre os políticos mais
demagogos e sobre os mais irresponsavelmente privilegiados grupos de interesse.
Em
todo caso, e como uma ilustração que compreensivelmente irá exasperar
keynesianos e monetaristas, temos de ressaltar os resultados bastante desiguais
que até agora foram conseguidos pelas políticas americanas de estímulos fiscais
e de "afrouxamento quantitativo" monetário e pelas políticas alemãs de
austeridade fiscal dentro do ambiente monetário do euro: déficit público, na Alemanha, de 1%; nos EUA,
de mais de 8,20%. Desemprego, na
Alemanha, de 5,9%; nos EUA, perto de 9%.
Inflação de preços, na Alemanha, de 2,5%; nos EUA, de 3,17%. Crescimento econômico, na Alemanha, de 3%;
nos EUA, de 1,7%. (Os valores para o
Reino Unido são ainda piores do que estes dos EUA). O conflito de paradigmas e contraste nos
resultados não poderia ser mais impressionante.[38]
7. Conclusão: Hayek versus Keynes
Assim
como ocorreu com o padrão-ouro em sua época, hoje uma legião de pessoas critica
e menospreza o euro justamente por aquela que é a sua principal virtude: sua
capacidade de disciplinar políticos extravagantes e grupos de interesse. Para deixar claro, o euro de maneira alguma constitui o padrão monetário ideal, o
qual, como vimos na primeira seção, pode ser encontrado apenas no padrão-ouro
clássico, com 100% de reservas sobre depósitos em conta-corrente e com a
abolição do banco central. Logo, é
bastante possível que, tão logo um determinado espaço de tempo tenha se passado
e a memória histórica dos recentes eventos monetários e financeiros tenha se
apagado, o Banco Central Europeu volte a cometer os graves erros do passado, e
a promover e acomodar uma nova bolha causada pela expansão de crédito.[39] No entanto, lembremo-nos de que os pecados
cometidos pelo Federal Reserve e pelo Banco Central da Inglaterra foram ainda
muito piores e que, ao menos na Europa continental, o euro acabou com o
nacionalismo monetário, e que, para os estados da união monetária, ele está
atuando, mesmo que apenas muito timidamente, como um "substituto" do
padrão-ouro, impondo rigor orçamentário e reformas para estimular a
competitividade, e colocando um freio nos abusos do estado assistencialista e
da demagogia política.
Em
todo caso, temos de reconhecer que chegamos a uma encruzilhada histórica.[40] O euro terá de sobreviver caso toda a Europa
queira internalizar e adotar como sendo sua a tradicional estabilidade
monetária alemã, a qual, na prática, é a única e essencial estrutura
disciplinadora por meio da qual, no curto e no médio prazo, a competitividade e
o crescimento da União Europeia poderão ser estimulados. Em escala mundial, a sobrevivência e a
consolidação do euro irão permitir, pela primeira vez desde a Segunda Guerra
Mundial, o surgimento de uma moeda capaz de efetivamente concorrer com o
monopólio do dólar como moeda internacional de troca, e portanto capaz de
disciplinar a capacidade americana de provocar crises financeiras sistêmicas recorrentes,
as quais, como a de 2007, ameaçam perigosamente a ordem econômica mundial.
Apenas
oitenta anos atrás, em um contexto histórico muito similar ao atual, o mundo
estava dividido entre manter o padrão-ouro, e com ele a austeridade
orçamentária, a flexibilidade do mercado de trabalho, e o comércio livre e
pacífico; ou abandonar o padrão-ouro e, assim, difundir mundialmente o nacionalismo
monetário, as políticas inflacionistas, a rigidez trabalhista, o
intervencionismo, o "fascismo econômico", e o protecionismo no comércio
internacional. Hayek e os teóricos
austríacos liderados por Mises incorreram no titânico esforço intelectual de
analisar, explicar e defender as vantagens do padrão-ouro e do livre comércio,
em oposição aos teóricos que, liderados por Keynes e pelos monetaristas,
optaram por abolir as fundações monetárias e fiscais da economia laissez-faire,
a qual, até então, havia gerado a Revolução Industrial e o progresso da
civilização.
Naquela
ocasião, o pensamento econômico acabou tomando um caminho muito diferente
daquele defendido por Mises e Hayek, e todos nós estamos bem familiarizados com
as consequências econômicas, políticas e sociais que advieram desta
decisão. Como resultado, hoje, já bem
avançados no século XXI, inacreditavelmente o mundo ainda segue sendo
atormentado por instabilidades financeiras, falta de rigor orçamentário e
demagogia política. Por todas estas
razões, mas principalmente porque a economia mundial urgentemente necessita
disso, nesta nova ocasião[41],
Mises e Hayek merecem finalmente triunfar, e o euro (ao menos provisoriamente,
e até ele ser finalmente substituído de uma vez por todas pelo padrão-ouro)
merece sobreviver.[42]
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[1] F.A.
Hayek 1971 [1937].
[2] Embora
Hayek não os mencione explicitamente, ele está se referindo aos teóricos da
Escola de Chicago, liderados por Milton Friedman, que nessa e em outras áreas
andavam de mãos dadas com os keynesianos.
[3] Mais
abaixo veremos que, com uma moeda única como o euro, a função disciplinadora da
taxa de câmbio fixa é assumida pelo valor de mercado das dívidas soberana e
corporativa de cada país.
[4] Para
salientar ainda mais o argumento de Mises, devo esclarecer que de modo algum é
correto atribuir ao padrão-ouro o erro cometido por Churchill, após a
Primeira-Guerra, quando ele estipulou a paridade do ouro com a libra sem levar
em conta a enorme quantidade de cédulas de libra esterlina que haviam sido
emitidas para financiar a guerra. Este
evento nada tem a ver com a atual situação do euro, cujo valor flutua
livremente nos mercados internacionais, e nem tampouco com os problemas que
afligem os países da periferia da zona do euro, cujas causas estão na perda de
competitividade real sofrida por suas economia durante a bolha (Huerta de Soto
2012 [1998], 447, 622-623 na edição em inglês).
[5] Na
Espanha, diferentes economistas austríacos, inclusive eu, vinham há décadas
clamando, sem nenhum êxito, pela introdução destas (e de várias outras)
reformas que, somente agora, se tornaram politicamente exequíveis, de maneira
súbita e com surpreendente urgência. E
tudo por causa do euro. Duas
observações: primeiro, estas medidas que constituem um passo na direção correta
foram maculadas pelo aumento nos impostos implementados pelo novo governo
espanhol, principalmente nos impostos sobre a renda, sobre ganhos de capital e
sobre a riqueza (veja o manifesto
contra o aumento de impostos que eu e mais cinquenta outros acadêmicos
assinamos em fevereiro de 2012); segundo, os princípios do equilíbrio e da
estabilidade orçamentária são uma condição necessária, porém insuficiente, para
o país voltar ao caminho do crescimento econômico sustentável, uma vez que,
caso haja um novo episódio de expansão creditícia, somente um enorme superávit
orçamentário durante os anos de prosperidade tornaria possível, tão logo a
recessão se instalasse, evitar os graves problemas que hoje atingem a Espanha.
[6] Talvez o
mais trivial exemplo contemporâneo que os keynesianos e monetaristas têm a
oferecer para ilustrar os "méritos" de uma desvalorização e abandono do câmbio
fixo é o da Argentina após o congelamento dos saques bancários (o "corralito")
que ocorreu no início de dezembro de 2001.
Este exemplo é seriamente incorreto por dois motivos. Primeiro, no máximo, o congelamento das
contas bancárias é simplesmente uma ilustração do fato de que um sistema
bancário de reservas fracionárias não funciona sem um emprestador de última
instância. Segundo, imediatamente após
esta tão aclamada desvalorização cambial, o PIB per capita da Argentina caiu de
US$7.726 em 2000 para US$2.767 em 2002, o que significa uma perda de dois
terços do seu valor. Esta queda de 65%
na renda e na riqueza argentina deveria seriamente fazer com que todos aqueles
que hoje estão grosseira e violentamente protestando na Grécia refletissem melhor,
dado que eles estão protestando contra sacrifícios e reduções de preços —
medidas estas exigidas pela saudável e inevitável disciplina imposta pelo euro
— relativamente muito menores.
Ademais, toda a arenga a respeito das
"impressionantes" taxas de crescimento da Argentina, de mais de 8% ao ano desde
2003, não deveria realmente impressionar ninguém se consideramos a base de
cálculo extremamente baixa após a desvalorização do peso, bem como a pobreza, a
paralisia e a natureza caótica da economia argentina, na qual um terço da
população tornou-se necessitada de subsídios e auxílios do governo, a taxa real
de inflação excede os 30%, e restrições, escassezes, regulamentações,
demagogia, ausência de reformas e controles totalitários (bem como medidas
temerárias) do governo se tornaram rotina.
Nesta mesma linha de raciocínio, Pierpaolo Barbieri declarou: "É
realmente inacreditável que comentaristas sérios como Nouriel Roubini estejam
oferecendo a Argentina como exemplo a ser seguido pela Grécia" (Barbieri 2012).
[7] Até
mesmo o presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, foi obrigado a
admitir explicitamente que o "modelo social do continente já era" (Blackstone, Karnitschnig, and
Thomson 2012).
[8] Não
incluo aqui a análise de meu estimado discípulo e colega Philipp Bagus (
A Tragédia do Euro,
Instituto Mises Brasil, 2012), dado que, do ponto de vista da Alemanha, a
manipulação à qual o Banco Central Europeu está submetendo o euro ameaça a
estabilidade monetária que a Alemanha tradicionalmente sempre desfrutou sob o
marco. Não obstante, seu argumento de
que o euro estimulou políticas irresponsáveis por meio de um típico efeito da "
tragédia dos comuns" me
parece um tanto fraco, pois, durante a formação da bolha, a maioria dos países
que hoje está tendo problemas, com a única possível exceção da Grécia, estava
apresentando superávits em seus orçamentos (ou apresentavam resultados muito
próximos de um superávit). Assim, creio
que Bagus teria sido mais acurado caso houvesse intitulado seu excelente livro
como A
Tragédia do Banco Central Europeu
(e não do euro), particularmente à luz dos graves erros cometidos pelo BCE
durante os estágios de formação do bolha, erros que destacaremos nas últimas
seções deste artigo.
[9] A linha
editorial do extinto jornal espanhol Público
era paradigmática neste sentido. (Ver também, por exemplo, o caso de Estafanía
2011 e de sua crítica à supracitada reforma do artigo 135 da Constituição
espanhola para estabelecer o anti-keynesiano princípio da estabilidade e do
equilíbrio orçamentário.)
[10] Ver,
por exemplo, as declarações do novo presidente socialista francês, para quem "o
caminho da austeridade é ineficaz, mortal e perigoso" (Hollande 2012), ou as
declarações da candidata nacionalista Marine Le Pen, que acredita que os
franceses "deveriam voltar ao franco e finalizar de uma vez por todas com o
domínio do euro" (Martín Ferrand 2012).
[11] Um
exemplo dentre vários artigos é Krugman 2012; ver também Stiglitz 2012.
[12] O
déficit público americano tem permanecido entre 8,2% e 10% do PIB nos últimos três
anos, e acentuado contraste ao déficit alemão, que foi de apenas 1% em 2011.
[13] Uma
explicação atualizada da TACE pode ser encontrada em Huerta de Soto 2012
[1998], capítulo 5.
[14] Skidelsky
2011.
[15] Uma
legião de economistas pertence a este grupo, e a maioria deles (surpresa,
surpresa!) advém da região do dólar e da libra.
Dentre todos, poderia mencionar, por exemplo, Robert Barro (2012),
Martin Feldstein (2011), e o conselheiro de Barack Obama, Austan Goolsbee (2011). Na Espanha, embora por diferentes razões,
devo citar economistas eminentes como Pedro Schwartz, Francisco Cabrillo e
Alberto Recarte.
[16] Mundell
1961.
[17] Block
1999, 21.
[18] Ver a
excelente análise de Whyte (2011) a respeito dos sérios danos que a
desvalorização da libra está causando ao Reino Unido; e com relação aos EUA,
ver Laperriere 2012.
[19] Huerta
de Soto 2012 [1998].
[20] "O
euro, como a moeda de uma área econômica que exporta mais do que os Estados
Unidos, que possui um mercado financeiro muito bem desenvolvido, e que é
apoiada por um banco central de primeiro mundo, é em vários aspectos a óbvia
alternativa ao dólar. Embora atualmente
esteja na moda formular todas as discussões sobre o euro em termos sinistros e
soturnos, o fato é que o euro representa 37% de todo o mercado cambial internacional,
31% de todas as emissões de títulos internacionais e 28% das reservas
internacionais totais em posse dos bancos centrais mundiais" (Eichengreen 2011, 130). Guy Sorman, por sua vez, comentou sobre "a
ambígua atitude dos especialistas financeiros e agentes de mercado dos
EUA. Eles nunca gostaram do euro porque,
por definição, o euro concorre com o dólar: obedecendo ordens, os
'especialistas' americanos nos explicam recorrentemente que o euro não
sobreviveria sem um governo econômico centralizado e sem um sistema fiscal
único" (Sorman 2011).
[21] O mais
recente e famoso exemplo foi o torneio realizado no Reino Unido por Lord
Wolfson, proprietário da rede de lojas Next.
Até o momento, esta competição já atraiu nada menos que 650
"especialistas" e malucos. Não fosse
pela obtusidade e óbvia hipocrisia envolvida em tais iniciativas, as quais
sempre são realizadas fora da zona do euro (e principalmente no mundo
anglo-saxão, por aqueles que temem, odeiam e desdenham o euro), poderíamos até
elogiar o grande esforço e interesse que tais pessoas veem demonstrando pelo
destino de uma moeda que, afinal, não é utilizada por eles.
[22] Vale
notar que o autor destas linhas é um "eurocético" que afirma que a função da
União Europeia deveria ser limitada exclusivamente
a garantir a livre circulação de pessoas, de capitais e de bens dentro do
contexto de uma moeda única (se possível, o padrão-ouro).
[23] Já
mencionei, por exemplo, as recentes mudanças legislativas aprovadas com o
intuito de aumentar a idade de aposentadoria para 67 anos (e até mesmo
indexá-la de acordo com as tendências futuras da expectativa de vida), mudanças
estas já introduzidas ou a caminho na Alemanha, na França, na Itália, na
Espanha, em Portugal e na Grécia.
Poderia também citar a criação de um sistema de "co-pagamento", bem como
crescentes áreas de privatização, no sistema de saúde. São medidas pequenas na direção correta, mas
que, por causa de seu alto custo político, jamais teriam sido implementadas sem
o euro. Elas também contrastam com a
tendência oposta demonstrada pelo plano de reforma do sistema de saúde de
Barack Obama, e com a óbvia resistência a mudanças que surge quando se trata da
inevitável reforma do Serviço Nacional de Saúde Britânico.
[24] O'Caithnia 2011.
[25] Booth
2011.
[26] Ver, por
exemplo, "United States' Economy: Over-regulated America: The home of
laissez-faire is being suffocated by excessive and badly written
regulation," The Economist, 18 de fevereiro de 2012, p. 8, e os
exemplos lá citados.
[27] Huerta
de Soto 2003 e 2009.
[28] Sobre o
histérico apoio aos pomposos pacotes de estímulos fiscais deste período, ver
Fernando Ulrich 2011.
[29] Krugman
2012, Stiglitz 2012.
[30]
Especificamente, o aumento médio do M3 na zona do euro, de 2000 a 2011, excedeu
6,3%, e devemos ressaltar os aumentos ocorridos durante os anos do auge da
bolha: 2005 (de 7 a 8%), 2006 (de 8 a 10%), e 2007 (de 10 a 12%). Os dados acima mostram que, como já indicado,
a meta de um déficit zero, embora louvável, é uma necessária, mas não
suficiente condição para a estabilidade: durante a fase expansionista de um ciclo
iniciado pela expansão do crédito, compromissos de gastos públicos tendem a ser
feitos baseando-se na falsa tranquilidade gerada pelos superávits; no entanto,
mais tarde, quando a inevitável recessão se impõe, estes compromissos se
revelam completamente insustentáveis.
Isso demonstra que ter como objetivo um déficit zero é algo que também
requer uma economia que não esteja sujeita aos altos e baixos da expansão de
crédito; ou que pelo menos os orçamentos sejam fechados com superávits muito
mais altos durante os anos expansionistas.
[31]
Portanto, a Grécia seria o único caso em que poderíamos aplicar o argumento da tragédia dos
comuns que Bagus (2010) desenvolve em relação ao euro. À luz do raciocínio apresentado neste artigo,
e como já mencionado acima, creio que um título mais correto para o notável
livro de Bagus, A
Tragédia do Euro, teria sido A
Tragédia do Banco Central Europeu.
[32] Os
superávits na Espanha foram os seguintes: 0,96%, 2,02% e 1,90% em 2005, 2006 e
2007, respectivamente. Os da Irlanda
foram 0,42%, 1,40%, 1,64%, 2,90% e 0,67% em 2003, 2004, 2005, 2006 e 2007,
respectivamente.
[33] O autor
destas linhas poderia ser citado como uma exceção (Huerta de Soto 2012 [1998],
xxxvii).
[34] Ibid.
[35] Neste
período (2011-2012), o Federal Reserve está comprando diretamente pelo menos
40% de toda a dívida americana que está sendo emitida. Algo similar vem sendo feito pelo Banco
Central da Inglaterra, que é o detentor direto de 25% de toda a dívida pública
do Reino Unido. Comparada a estes
números, a monetização (direta e indireta) empreendida pelo Banco Central
Europeu parece uma inocente "brincadeira de criança."
[36] Também
altamente significativo é "Um Plano para o Crescimento da Europa", o qual foi
apresentado em 20 de fevereiro de 2012 pelos líderes de doze países da União
Europeia (dentre eles Itália, Espanha, Holanda, Finlândia e Polônia), plano
esse que apresenta apenas políticas do lado da oferta e não menciona nenhum
tipo de estímulo fiscal. Há também o
manifesto "Iniciativa para uma Europa Livre e Próspera" assinado em Bratislava
em janeiro de 2012 por, entre outros, o autor destas linhas. Em suma, uma mudança de modelos parece uma
prioridade em países que, como a Espanha, têm de abandonar sua atual economia
baseada na especulação e na expansão do crédito em prol de uma economia baseada
na competitividade. Com efeito, assim
que os preços declinarem ("deflação interna") e a estrutura de preços relativos
for reajustada em um ambiente de liberalização econômica e reformas estruturais,
várias oportunidades para lucros empreendedoriais surgirão em investimentos
sólidos, os quais, em uma área monetária tão ampla quanto a área do euro,
certamente atrairão financiamento. Esta
é a maneira correta de se viabilizar a necessária restauração econômica e
garantir uma recuperação mais sólida nas economias, recuperação esta que,
enfatizando, tem de ser baseada na competitividade e não em expansão do crédito
e em especulações.
[37] Dentro
deste contexto, e como já explicado na seção "A diversa e heterogênea "coalizão
anti-euro"", não deveríamos nos surpreender com as declarações dos candidatos à
presidência da França, as quais foram mencionadas na nota número 10.
[38] Dados
estimados em 31 de dezembro de 2011.
[39] Em
outras ocasiões, mencionei as reformas incrementais que, assim como a radical
separação entre bancos comerciais e bancos de investimentos, poderia
aperfeiçoar o euro de certa forma. Ao
mesmo tempo, é no Reino Unido que, paradoxalmente (ou não, à luz da dos
devastadores estragos sociais resultantes de sua crise bancária), minhas propostas
geraram o maior interesse, ao ponto em que um projeto de lei chegou até mesmo a
ser apresentado no Parlamento Britânico para completar o Peel's Bank Charter Act de 1844 (curiosamente, ainda em vigor),
ampliando a exigência de 100% de reservas para os depósitos à vista. O consenso atingido naquele país, de que se
deve separar bancos comerciais de bancos de investimento é algo que deve ser
considerado uma medida (ainda muito pequena) na direção correta (Huerta de Soto 2010 and 2011).
[40] Meu tio
torto, o empreendedor Javier Vidal Sario, de Navarra, que, aos 93 anos de idade
continua perfeitamente lúcido e ativo, me assegura que, em toda a sua vida, nem
mesmo durante os anos do Plano de Estabilização de 1959, ele jamais testemunhou
na Espanha um esforço coletivo para se alcançar uma disciplina institucional e
orçamentária, bem como uma restauração econômica, comparável ao atual. Também historicamente significativo é o fato
de que este esforço não está ocorrendo em apenas um país (por exemplo, a
Espanha), e tampouco em relação apenas à moeda local (por exemplo, a velha
peseta), mas está difundido por toda a Europa, e está sendo feito por
centenas de milhões de pessoas dentro da estrutura de uma unidade monetária
comum (o euro).
[41]
Adicionalmente, esta histórica situação está sendo agora repetida, e em toda a
sua severidade, na China, cuja economia está neste momento à beira de um
colapso expansionista e inflacionário.
Ver "Keynes versus Hayek in China," The Economist, 30 de
dezembro de 2011.
[42] Como já
vimos, Mises, o grande defensor do padrão-ouro e de um sistema bancário livre e
com 100% de reservas para depósitos à vista, colidiu de frente, na década de
1960, com teóricos que, liderados pro Friedman, defendiam taxas de câmbio
flutuantes. Mises condenou o
comportamento de seu discípulo Machlup por este ter abandonado sua defesa das
taxas de câmbio fixas. Agora, cinquenta
anos depois e por causa do euro, a história está se repetindo. Naquela ocasião, os defensores do
nacionalismo monetário e da instabilidade das taxas de câmbio venceram, gerando
consequências com as quais todos estamos familiarizados. Desta vez, resta-nos torcer para que a lição
tenha sido aprendida e que as ideias de Mises possam prevalecer. O mundo necessita disso e merece isso.