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Economia

Estamos ficando sem comida?

22/07/2008

Estamos ficando sem comida?

Paul Krugman escreveu no The New York Times, de 7 de abril, que há uma escassez de comida no mundo, acompanhada de preços galopantes. Por causa disso, as pessoas pobres da África e de outros lugares estão famintas. Ele sugere que isso aconteceu principalmente pelas seguintes razões:

  • nova demanda por comida por parte da China
  • alta do preço do petróleo
  • tempo ruim em importantes áreas agrícolas (principalmente na Austrália)
  • redução de terras cultiváveis disponíveis para o plantio de alimentos - em prol do cultivo de biocombustíveis, com o propósito de fornecer fontes alternativas e (dizem) ambientalmente limpas, como o etanol

A solução que Krugman aponta para esses problemas é que entreguemos mais do nosso dinheiro para o governo, para que assim ele possa resolver o problema que o mercado é aparentemente incapaz de solucionar.

Agora, vamos ver o verdadeiro cenário:

Independente de alguém achar que os fatores listados acima têm um papel importante na escassez mundial de alimentos, existem de fato dois fatores de primordial importância relacionados aos custos e à escassez de alimentos, e Krugman não os menciona e talvez nem saiba deles.

Primeiro: a causa essencial de qualquer escassez é a ausência de um livre mercado, já que uma verdadeira escassez não tem como surgir em um ambiente de genuíno livre mercado. Ao contrário, mesmo que os preços dos bens aumentassem quando a oferta começasse a se reduzir, ainda assim esses bens em questão estariam sempre disponíveis a algum preço - e quanto mais alto fosse esse preço, mais a oferta aumentaria para se igualar à demanda, o que iria obviamente reduzir os preços. Se tivéssemos um livre mercado mundial, os alimentos seriam exportados de alguns países, como os EUA e a Europa, onde a comida é abundante, para os países onde ela está em falta. Isso aconteceria porque seria lucrativo enviar bens para áreas necessitadas como a África, onde escassezes estariam fazendo os preços subir.

O fato de isso não estar acontecendo agora só pode ser resultado de controles de preços feitos pelo governo (o que impede os preços de subirem nos países necessitados), de restrições comerciais, ou de alguma outra barreira governamental que impede as pessoas de conseguir o que elas querem. O Banco Mundial citou uma lista de 21 países que adotam controle de preços sobre artigos básicos. Todos nós nos lembramos das histórias sobre pessoas famintas na Etiópia na década de 1980, quando 3 milhões de pessoas estavam sofrendo de inanição. O que ninguém falou era que havia 60 milhões de pessoas na Etiópia na mesma época que não foram afetadas pela fome. O transporte de comida de uma parte do país, onde ela era abundante, para outra parte, afetada pela seca, foi impedida por um conflito entre o governo e grupos rebeldes perto da área castigada pela seca. Os incentivos econômicos foram inibidos por várias ações governamentais, como a retenção forçada de suprimentos de comida (para que os soldados rebeldes não tivessem acesso aos suprimentos), o controle de preços, o banimento em grande parte do país da venda de grãos por atacado, e a proibição da venda privada de produtos ou maquinarias agrícolas. Uma situação similar ocorreu no Zimbábue no início da década de 2000. O economista indiano Amartya Sen ganhou o Prêmio Nobel ao demonstrar que a maioria dos casos de fome é causada não pela escassez de comida, mas pelas intromissões imprudentes dos governos no funcionamento dos mercados.

O segundo fator que Krugman não menciona é que os altos preços dos alimentos são uma manifestação da atual inflação mundial de preços. Os governos de todos os países vêm imprimindo dinheiro a taxas muito altas nessa década. Enquanto que os EUA vêm expandindo sua oferta monetária a "apenas" 10-15% ao ano, muitos países têm impresso dinheiro a taxas que excedem 50 por cento ao ano. Esse dinheiro criado do nada, que até então estava em grande parte contido no mercado de ações, agora se espalhou para o mercado de commodities, de onde se derivam os preços dos alimentos. Dessa forma, como o dinheiro está agora sendo criado mais rapidamente do que alguns bens, os preços estão subindo.

Como outro exemplo desse fenômeno do aumento de dinheiro exceder o aumento da oferta de bens, podemos citar o aumento do preço do petróleo. Apesar de a imprensa e outros fóruns públicos atribuírem esse fenômeno à especulação, à ganância das empresas petrolíferas e ao aumento da demanda por petróleo por parte da China, a verdadeira causa é a crescente disparidade entre o dinheiro disponível e o petróleo disponível. Seguindo esse raciocínio, o aumento abrupto e generalizado dos preços - como o aumento dos preços dos imóveis, das ações e títulos, do petróleo, do ouro, das commodities, dos alimentos, etc. que vimos nessa década - seria matematicamente impossível caso não tivesse havido um aumento da oferta de dinheiro circulando na economia mundial. De fato, se a oferta de bens estivesse aumentando, como de fato está, e se ao mesmo tempo a quantidade de dinheiro tivesse permanecido estável, os preços obrigatoriamente iriam cair.

Mas não tenha dúvidas: por várias razões fundamentais ligadas à produção, à oferta e à demanda, há uma carência na oferta de algumas commodities em relação ao aumento da demanda real por elas. Ainda assim, essa carência de oferta não é a causa nem da ocorrência de escassezes nem do aumento extremado do preço mundial dos alimentos (mais de 80 por cento em três anos). Ademais, apesar de a produção de muitas commodities, como o trigo, estar estagnada ou mesmo declinante ao longo dos últimos anos, outras commodities tiveram aumentos contínuos em sua produção; outros grupos alimentícios como cereais, frutas, semoventes, peixes e frutos do mar tiveram sua oferta aumentada. Dados da The Food and Agriculture Organization, órgão da ONU, mostram que tanto a produção agrícola como a produção alimentícia per capita aumentaram continuamente desde 1990, e permaneceram estáveis desde 2000.[1] Em comparação, os preços das commodities estão subindo desde 1999.

Agora, de volta ao artigo de Krugman, podemos ver que as razões que ele cita para a escassez de alimentos e para o aumento de preços são ilógicas. Por exemplo, "nova demanda" por comida por parte da China teria necessariamente resultado não apenas nos próprios chineses produzindo mais comida para satisfazer esta demanda, mas também no resto do mundo fazendo o mesmo. (Na realidade, a China aumentou sua produção agrícola per capita em 22 por cento desde 2000). Dá realmente para imaginar que produtores mundiais de comida não teriam percebido essa demanda e tentado obter lucros satisfazendo-a? De fato, eles perceberam essa demanda e, desde então, vêm produzindo mais comida. A população chinesa está aumentando em apenas meio por cento ao ano. Como, então, poderiam os chineses repentinamente passar a necessitar 30 por cento a mais de comida por ano, em anos recentes? Mais ainda: como eles poderiam pagar por ela, mesmo se eles de fato tivessem esse desejo de mais comida?

Como um conceito, a palavra "demanda" é propensa a uma má interpretação porque usamo-la de várias maneiras diferentes. Eu posso ter uma demanda (desejo) por uma casa no sul da França para poder ter um lugar para ancorar o iate que eu também demando (desejo). Nesse caso, "demanda" é algo sem conseqüência porque eu não tenho os meios pelos quais pagar por esses itens. Uma demanda real pode afetar os preços apenas se houver um verdadeiro poder de compra, na forma de dinheiro, para apoiar essa demanda. Os consumidores chineses não podem demandar e, logo, pagar por um aumento do consumo de comida se não tiverem mais dinheiro, que só pode chegar ao bolso deles após ter sido impresso pelo seu banco central. Eles podem, de fato, ter um aumento efetivo da demanda real se produzirem mais bens e utilizá-los para pagar por mais comida, mas isso faria reduzir os preços, não aumentá-los.

Para ser claro, não são as empresas para as quais as pessoas trabalham que estão produzindo o dinheiro, pois as empresas não produzem o dinheiro com o qual elas pagam os salários de seus funcionários; elas produzem apenas bens. Para que as empresas tenham mais dinheiro (isto é, vender seus bens a preços maiores do que os do último ano) e possam, assim, pagar mais em termos salariais para seus funcionários, mais dinheiro deve ser criado pelo seu governo na forma de expansão creditícia.

Portanto, se houvesse de fato toda essa nova demanda por comida na China, como Krugman alega - e supondo-se que a quantidade de dinheiro circulando na economia fosse constante -, teria de haver necessariamente uma redução na demanda e nos preços de outros bens. Portanto, os chineses poderiam muito bem estar consumindo mais comida, mas esse aumento do consumo não seria o responsável pelo aumento (absoluto) dos preços e da escassez.

O que falar, então, sobre o tempo ruim? Não há dúvidas que condições meteorológicas adversas podem ter um papel importante no curto prazo. Mas, no longo prazo, se a Austrália sofre com um tempo ruim, mesmo que por cinco anos seguidos, outros países poderiam e iriam acelerar sua produção e aumentar a oferta. Como um exemplo, mais terra nos EUA seria convertida em plantações agrícolas. Uma escassez de comida em um país iria causar um aumento mundial nos preços temporariamente; mas o resultado disso, em uma situação de livre comércio, seria um aumento na produção e na oferta em outros países, o que iria derrubar novamente os preços. É possível que a ausência de um livre mercado tenha impedido isso de acontecer, mas é certo que a livre oferta e demanda iria impedir a possibilidade de uma emergência global.

Se houvesse condições meteorológicas ruins na maioria das regiões do mundo ao mesmo tempo, a oferta de comida iria de fato declinar, e os preços aumentariam. Mas em um livre mercado ainda assim não haveria escassez. E em um mundo onde a oferta de dinheiro é imutável, esse efeito seria temporário, já que os preços cairiam quando a oferta posteriormente aumentasse. Novamente, assim que o preço dos alimentos subisse, o preço de outros bens teria de cair. Um aumento sustentável dos preços de todos os bens só é possível quando há dinheiro novo sendo injetado na economia mundial.[2]

Quanto ao último argumento de Krugman, o de que as terras cultiváveis estão agora sendo usadas para o cultivo de matéria-prima para os biocombustíveis, trata-se de um ponto de interrogação. Em um livre mercado, se houvesse uma escassez de alimentos e se os inerentemente altos preços desses alimentos escassos enviassem um sinal ao mercado, a terra que estivesse sendo usada para qualquer outro item - biocombustíveis, estacionamentos, salas de cinema, casas, ou o que seja - seria convertida para usos agrícolas.

Se tivéssemos uma escassez sustentada de alimentos nos EUA, por exemplo, isso é o que iria ocorrer. De fato, a agricultura costumava representar 50 por cento do PIB no início do último século, mas hoje ela representa menos de um por cento. O uso da terra foi alterado para poder satisfazer mudanças na demanda. Mas se precisássemos de comida, poderíamos e iríamos expandir a agricultura novamente para aquele nível de 50 por cento. Em uma escala mundial, à medida que os preços dos alimentos subissem, a terra seria convertida para o uso mais lucrativo do plantio de alimentos ao invés do menos lucrativo cultivo de matéria-prima para biocombustíveis.

Apenas se os subsídios governamentais fossem altos o bastante para obscurecer esses sinais de mercado, ou se o governo obrigasse as companhias de energia a comprar matéria-prima (sendo que ambos esses casos ocorrem nos EUA), apenas assim a estrutura da produção agrícola poderia ser deformada de tal modo que não pudesse haver essa resposta de mercado. Similarmente, se o desenvolvimento de áreas agrícolas se tornou difícil por causa de regulamentações governamentais - como, por exemplo, para se proteger os atuais agricultores, que têm um lobby poderoso -, um aumento da produção torna-se algo bem mais problemático.

Em suma, a real causa do contínuo aumento dos preços dos alimentos é a impressão de dinheiro por parte dos governos por todo o mundo. E a real causa da atual escassez de alimentos é o impedimento do lucrativo comércio global de alimentos por causa das imprudentes políticas governamentais dos governos dessas mesmas pessoas que hoje estão famintas. Quaisquer outros motivos que expliquem uma redução da oferta a um nível maior do que o temporário só existem porque os governos impedem os mercados de funcionar.

Ignorar esses principais determinantes da atual escassez alimentícia do mundo significa propositadamente repudiar a lógica econômica - ou simplesmente ser ignorante em relação a ela.

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Notas

[1] Os dados vão até 2006.

[2] Alguém poderia argumentar que o fato de os preços dos alimentos estarem subindo mais rapidamente do que os preços de outros bens é uma revelação dessa exata ocorrência nesse nosso mundo de quantidades crescentes de dinheiro. Ou seja, isso refletiria diferenças relativas de preços. Esse efeito da diferença relativa de preços provavelmente está lá, mas este autor argumentaria que esse efeito explicaria apenas uma pequena porção da diferença relativa de preços. O efeito de um boom creditício ser canalizado para os mercados de commodities em geral será provavelmente o efeito predominante das diferenças de preço. Dizer que o efeito da diferença de preços relativos explica grande parte, ou toda a diferença de preços, requereria uma explicação de como os preços das ações e os preços imobiliários podem aumentar tão desproporcionalmente mais rápido do que outros bens normais por causa de uma redução na oferta, quando na verdade os preços aumentaram e a oferta sempre foi abundante. Em outras palavras, um aumento de preços acontece a todo o momento em outras áreas onde a oferta não é limitada.

Sobre o autor

Kel Kelly

Foi, durante 13 anos, corretor de Wall Street, analista de finanças e diretor de pesquisa para uma empresa de consultoria de organização listada na Fortune 500.

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