Algumas
correntes de internet estão divulgando um comparativo entre os preços dos
carros no Brasil e os preços desses mesmos carros em outros países. Como era de se esperar, as diferenças de
preços são gritantes e até mesmo revoltantes, com alguns modelos chegando a
custar o triplo do preço aqui no Brasil.
Particularmente
chamativo foi o caso do Honda City.
Segue um trecho de uma reportagem:
As montadoras têm uma margem de lucro muito maior no Brasil
do que em outros países. Uma pesquisa feita pelo banco de investimento Morgan
Stanley, da Inglaterra, mostrou que algumas montadoras instaladas no Brasil são
responsáveis por boa parte do lucro mundial das suas matrizes [...] O analista
Adam Jonas, responsável pela pesquisa, concluiu que, no geral, a margem de
lucro das montadoras no Brasil chega a ser três vezes maior que a de outros
países.
O Honda City é um bom exemplo do que ocorre com o preço do
carro no Brasil. Fabricado em Sumaré, no interior de São Paulo, ele é vendido
no México por R$ 25,8 mil (versão LX). Neste preço está incluído o frete, de R$
3,5 mil, e a margem de lucro da revenda, em torno de R$ 2 mil. Restam, portanto
R$ 20,3 mil.
Adicionando os custos de impostos e distribuição aos R$
20,3 mil, teremos R$ 16.413,32 de carga tributária (de 29,2%) e R$ 3.979,66 de
margem de lucro das concessionárias (10%). A soma dá R$ 40.692,00. Considerando
que nos R$ 20,3 mil faturados para o México a montadora já tem a sua margem de
lucro, o "Lucro Brasil" (adicional) é de R$ 15.518,00: R$ 56.210,00 (preço
vendido no Brasil) menos R$ 40.692,00.
Será possível que a montadora tenha um lucro adicional
de R$ 15,5 mil num carro desses? O que a Honda fala sobre isso? Nada.
Consultada, a montadora apenas diz que a empresa "não fala sobre o assunto".
O
jornalista faz um salseiro com os números, deixando tudo bastante confuso. Vou tentar clarear um pouco o que ele
escreveu.
O
Honda City sai da montadora em Sumaré a R$ 20.300. A concessionária mexicana o revende por R$
25.800. A diferença de R$ 5.500 é
explicada pelo preço do frete pago pela concessionária mexicana e pela margem
de lucro dela.
Até
aí, tudo certo. No entanto, a coisa fica
mais animada quando se descobre que esse mesmo carro que sai da montadora a R$
20.300 é revendido pelas concessionárias ao consumidor brasileiro por R$
56.210. O que explica esse
encarecimento?
Para
entender esse processo, muito antes de xingar as montadoras de "gananciosas"
por quererem altos lucros (todo mundo sabe que gananciosos são só os outros;
nós nunca somos), é preciso olhar como funciona a carga tributária no Brasil.
O
assunto é extremamente aborrecido e não é minha intenção entrar em detalhes
aqui. Basta dizer apenas que, por
exemplo, o IPI recai sobre o preço do veículo que a montadora venderá para a
concessionária brasileira, mas não para a concessionária mexicana, pois o IPI
não se aplica a produtos exportados. O
mesmo ocorre com o ICMS, que não incide sobre produtos industrializados
destinados à exportação. Já a COFINS
recai sobre a receita bruta da montadora, o mesmo ocorrendo com o PIS.
Ou
seja: suponha que você inicialmente queira vender um produto a $100 aqui no
Brasil. Imediatamente você terá de
acrescer uns $13 só de IPI (a alíquota é de 13% para automóveis com motor de
até 2,0 litros). Além do IPI, tem o ICMS (de 18% para São Paulo, estado onde o
Honda City é fabricado), cuja base de cálculo é $100. Ou seja, você vendeu por
$113, deu $13 para o governo federal e mais $18 para o governo estadual. Sobre a sua receita bruta, ainda vão incidir
7,6% de COFINS e 1,65% de PIS. E depois,
sobre o lucro, ainda vai ter o imposto de renda de pessoa jurídica, que pode
chegar a 25%.
Se
quiser fazer os cálculos, vá em
frente. Eu tenho até
medo...
Assim,
utilizando-se os próprios dados contidos na reportagem, temos a seguinte
sequência:
Preços
Preço
de fábrica: R$ 20.300
Preço
vendido para a concessionária: R$ 52.231,22
Preço da concessionária para o consumidor
final: R$ 56.210
Lucros
Lucro
da montadora: R$ 15.518,00
Lucro
da concessionária: R$ 3.979,66
Carga tributária: R$ 16.413,22
Observe
que a carga tributária é maior que o lucro da montadora e mais de 4 vezes maior
que o lucro da concessionária. É curioso
notar que os brasileiros condenam o lucro da montadora, que ao menos está lhes
oferecendo um bem, e dão passe livre para o esbulho do governo, que em troca
lhes dá dois tipos de estradas: as pedagiadas e as esburacadas.
Não
estou dizendo que as montadoras são inocentes.
Seria grande ingenuidade dizer isso.
Por exemplo, sobre a importação de carros, algo que traria grande
concorrência para o setor, incide um imposto que está na faixa dos 35%. Trata-se de um imposto criado justamente para
atender aos interesses das montadoras nacionais. Sem esse imposto, o preço dos importados
ficaria muito menor, a concorrência seria maior, os preços dos carros nacionais
teriam de ser diminuídos e, consequentemente, o lucro das montadoras (já que é
com isso que o brasileiro se revolta) seria sensivelmente reduzido.
No
extremo, se não houvesse essa enxurrada impostos (IPI, ICMS, PIS e COFINS) e
não houvesse também o imposto sobre importação, tanto aqueles R$ 16.413,22 de
carga tributária quanto o lucro de R$ 15.518 da montadora certamente seriam
acentuadamente menores, o que traria o preço final para perto do preço
mexicano. Quando há concorrência,
especialmente de importados, não dá pra colocar os preços nas alturas.
Poucos
se lembram, mas logo no início do Plano Real, uma das medidas para conter o
aumento de preços foi a brusca redução do imposto de importação. Para os automóveis, as alíquotas caíram de
50% para 20% em setembro de 1994. Essa
redução vigorou até março de 1995, quando o governo voltou a elevá-las, desta
vez dando uma pancada para 70%. Aquele
curto período de redução foi suficiente não apenas para atemorizar as
montadoras nacionais, que repentinamente viram seus confortáveis lucros evaporaram,
como também para trazer um impressionante revigoramento à frota nacional. Os importados tornaram-se comuns principalmente
nas ruas de São Paulo, onde desfilavam Rolls-Royces, Corvettes, BMWs,
Mitsubishi Lancers, Audis, Alfa Romeos 164, Subarus e Mercedes-Benz C 180, coisa
rara no Brasil da época. No Rio de
Janeiro, na Avenida das Américas, surgiram nada menos que 20 importadoras de
carros se acotovelando para disputar clientes, algo até então inédito. Mas toda essa farra foi interrompida pelo
governo em março de 1995, para júbilo das montadoras nacionais, que voltaram a
operar sossegadas em seu oligopólio protegido pelo estado.
Mas
além dos impostos e do protecionismo, há também um terceiro fator que explica
os altos preços dos automóveis no Brasil: a subjetividade dos
consumidores. O preço de um carro no
Brasil não depende apenas de custos de produção, impostos, investimentos e
margens de lucro; depende também, e isso é algo bem acentuado no Brasil, de
quanto o consumidor está disposto a pagar pelo produto.
Por
algum motivo — talvez histórico, talvez cultural —, o brasileiro sempre
considerou carro um sinal de status.
Quanto mais chique e caro, melhor ele acha que será avaliado o seu
posicionamento social. Isso não é uma
crítica, mas apenas uma constatação de um traço peculiar do brasileiro. Aqui, quando um indivíduo ascende
socialmente, uma de suas primeiras providências é trocar de carro (isso vale
tanto para porteiros quanto para jogadores de futebol). Ele está muito preocupado com o julgamento das
outras pessoas. Quanto mais caro o
carro, melhor ele pensa que será visto pelos outros. É aquele fenômeno conhecido como "novos
ricos", que faz a alegria não só do mercado de automóveis, mas também do
mercado de restaurantes chiques e do mercado imobiliário.
Sendo
assim, a aquisição de um carro passa a ser guiada mais pelo seu preço do que
pela real conveniência que o carro trará ao novo-rico — o que dá margem para
as montadoras colocarem os preços muito acima dos preços que vigoram em outros
países; e, como se vê, mesmo assim não faltam consumidores, haja vista os
seguidos recordes de vendas.
(Com
efeito, se a preocupação fosse unicamente uma locomoção confortável, qualquer
Mille ou Gol com ar condicionado daria conta do recado para uma família de 4
pessoas.)
Na
há necessariamente nada de errado nesse comportamento novo-rico, mas é fato que
ele ajuda a deixar os preços dos carros em níveis mais altos do que estariam
caso o brasileiro fosse mais frugal (e ele não é). É uma simples questão de oferta e demanda.
Portanto,
três fatores explicam os preços dos carros no Brasil: carga tributária,
protecionismo e o fenômeno brasileiro dos emergentes, um pessoal que não sabe
bem o que comprar mas acha que está comprando bem porque está pagando caro.
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ATUALIZAÇÃO
EM 01/07
Algumas
pessoas ficaram revoltadas e outras demonstraram discórdia em relação a este
terceiro item (comportamento dos consumidores).
Curiosamente, este é exatamente o item mais óbvio de todos — ou o menos
controverso —, e pode ser compreendido por qualquer pessoa sem nenhum
conhecimento econômico. A lógica é
simples:
Qualquer
empresa — seja uma montadora ou uma padaria — vai cobrar para os seus
produtos o maior preço que puder, que seja consistente com o maior lucro
possível. Duas coisas colocarão um teto nesse preço máximo:
a concorrência e a disposição dos consumidores em aceitar os preços
praticados (fenômeno esse
chamado de 'valoração subjetiva dos consumidores').
Para
todo e qualquer empreendimento que lide com a venda de produtos não essenciais,
são os consumidores que irão decidir o preço máximo que estão dispostos a pagar
por estes produtos.
No
caso brasileiro, as montadoras aparentemente ainda não chegaram a esse preço máximo
para seus carros, pois os preços continuam subindo e os carros continuam sendo
(muito) comprados, e os lucros continuam altos — o que significa que os consumidores de uma determinada
faixa de renda continuam deixando claro que estão dispostos a continuar pagando
os preços vigentes.
Sendo assim, que incentivo haveria para se reduzir preços?
Não
há absolutamente nenhum motivo para afirmar que tal raciocínio seja controverso
— a menos, é claro, que se parta do princípio de que um Honda City seja um bem
absolutamente essencial para vida humana, e que sua compra é uma questão de sobrevivência.