Ludwig
von Mises acreditava que o tópico do polilogismo era importante o bastante para
ser abordado ainda na introdução de Ação Humana:
O marxismo afirma que a forma de pensar de uma pessoa é
determinada pela classe a que pertence.
Toda classe social tem sua lógica própria.... Este polilogismo,
posteriormente, assumiu várias outras formas.
O historicismo afirma que a estrutura lógica da ação e do pensamento
humano está sujeita a mudanças no curso da evolução histórica. O polilogismo
racial atribui a cada raça uma lógica própria.
Embora
ele estivesse escrevendo em 1949, Mises já havia notado para onde as tendências
estavam se encaminhando: o pensamento polilogista -- a crença de que há uma
multiplicidade de irreconciliáveis formas de lógica dentro da população humana,
subdivididas em algumas características grupais -- viria a se tornar uma
característica predominante da ciência social moderna.
E,
de fato, praticamente toda a atual política moderna se baseia de alguma forma
nessa ideia. Falamos sobre interesses
grupais não apenas quando nos referimos a classes, mas também nas áreas de
raça, sexo, religião, aptidões, aparências e muito mais. Mesmo políticas ambientalistas podem ser
entendidas nesses termos: que a própria natureza funciona de acordo com uma
lógica distinta da lógica da população humana, de modo que estamos explorando a
natureza a todo o momento e sequer sabemos disso.
Um
ponto adicional sobre o polilogismo: acredita-se não apenas que exista uma
variedade de formas de estrutura lógica no mundo, como também que essas formas
de lógica criam um conflito, baseado na exploração, que é a base da sociedade e
que necessita urgentemente de uma correção através de alguns meios
externos. Assim, todas essas formas de
polilogismo geram uma suposta necessidade de alguma ação social (estatal) para
acomodar essas variedades de pensamento.
Os exploradores devem ser destruídos, mesmo no caso do meio
ambiente. Tão predominante é essa
abordagem, que ela praticamente define toda a ciência social que é praticada atualmente
no meio universitário.[1]
Tornando-se
ciente de tudo isso ao ler Mises, o leitor pode ficar extremamente surpreendido
ao ler a apresentação de Hans-Hermann Hoppe sobre as teses centrais da teoria
de classes marxista e sua conclusão sumária: "Afirmo que todas elas, em sua
essência, estão inteiramente corretas."
Como
podemos explicar a aparente suavidade de Hoppe em relação à ideia marxista
quando se sabe que Mises é tão completamente contrário a ela? Há uma resposta: o que Hoppe fez foi depurar
o marxismo de suas presunções epistemológicas e reter apenas sua análise do
mundo material. Isso nos permite
absorver do marxismo várias constatações importantes ao mesmo tempo em que
desconsideramos todo o seu polilogismo, o qual tanta retórica pérfida gerou no
passado e continua gerando no presente.
Um
exemplo clássico do uso do polilogismo pode ser encontrado no livro Karl Marx and the Close of His System,
de Eugen von Böhm-Bawerk [2], de 1896. Böhm-Bawerk oferece uma argumentação
meticulosamente detalhada, que se estende por mais de 150 páginas, mostrando
que Marx jamais conseguiu explicar completamente por que é que os bens não são
precificados de acordo com a quantidade de trabalho contida neles, mas, ao
contrário, o lucro do capital se dá em proporção à quantidade de capital
investida. Tivesse Marx tentado explicar
isso, como ele sempre prometeu que faria, imediatamente ficaria óbvio que toda
a sua teoria da mais-valia é inteiramente contraditória em relação aos fatos
reais.
Este
é um erro fatal na obra de Marx, pois ele não permite ao leitor testar de
maneira lógica ou empírica sua alegação a respeito da mais-valia extraída pelo
capitalista e não repassada aos trabalhadores.
Böhm-Bawerk adicionalmente escreve que o marxismo aparentemente encravou
no sistema a estratégia de desvirtuar qualquer tentativa de refutar sua
teoria. Toda discordância é rejeitada e
desprezada com argumentos ad hominem,
dizendo que o crítico é alguém irremediavelmente desvirtuado pelo pensamento
burguês. "Seria muito pedir que, se ele
quer introduzir interpolações subjetivas em seu sistema, estas devem ser
corretas, bem fundamentadas e não contraditórias? E essa demanda razoável e sensata Marx
continuamente não apenas ignorou como também contestou." Esse foi o protesto de Böhm-Bawerk contra o
uso de afirmações polilogistas embutidas nas táticas de defesa marxista.
O
teórico marxista Rudolf Hilferding respondeu a Böhm-Bawerk de uma maneira que apenas
ressaltou o problema com o polilogismo: ele fez exatamente aquilo que
Böhm-Bawerk previu que um marxista faria.
Ele desdenhou a fonte e, incorrendo em um enfadonho e prolixo discurso,
ignorou todas as críticas a Marx da mesma forma que o próprio Marx o fez. Em relação à detalhada tentativa do grande Böhm-Bawerk
em atacar os detalhes da teoria marxista, Hilferding escreve:
Como porta-voz da burguesia, ele entra na discussão apenas
nos pontos que a burguesia tem interesses práticos em defender. Nas batalhas econômicas e
políticas da época, ele fielmente reflete o conflito de interesses das
camarilhas dominantes, porém evita a tentativa de considerar a totalidade das
relações sociais, pois corretamente sente que qualquer consideração desse tipo
seria incompatível com a continuada existência do modelo econômico burguês.[3]
Hilferding
ainda diz que o argumento de Böhm-Bawerk pode ser desconsiderado porque ele não
lidou com o marxismo "em sua totalidade" como um sistema integral de pensamento
que, é de se supor, deve ser aceito pela fé.
Enquanto Böhm-Bawerk fala sobre valores subjetivos, preços individuais e
sua relação com o capital investido, Marx, segundo Hilferding, "considera a teoria
do valor não como um meio de determinar preços, mas como o meio para descobrir
as leis do movimento da sociedade capitalista".
Escreve
Hilferding:
Em vez de utilizar as relações econômicas ou sociais como o
ponto de partida de seu sistema, eles escolheram para representar esse ponto de
partida a relação individual entre homens e coisas. Eles consideram essa relação, desde uma
perspectiva psicológica, como uma que é sujeita a leis naturais e
inalteráveis. Eles ignoram as relações
de produção em sua determinação social, e a ideia de uma evolução das situações
econômicas é estranha à mentalidade deles.[4]
A
crítica de Hilferding pode ser resumida como sendo uma aplicação desse repúdio
polilogista: como um membro da classe dominante apegado aos métodos burgueses
de pensamento, Böhm-Bawerk simplesmente não é capaz de pensar da maneira
correta sobre essas coisas. O pensamento
marxista, o qual se resume inteiramente às leis da história e aos determinantes
sociais que conduzem o mundo material, é estranho a ele simplesmente porque sua
mente é incapaz de ver a verdade.
E
essa continua sendo a tática utilizada em vários argumentos políticos. É claro que hoje a retórica está em um nível
muito mais baixo, porém essa é a maneira usual na qual a discussão política
ocorre em nossa sociedade pós-marxista, em que as pressuposições polilogistas
conduzem o debate. Por exemplo, é
impossível os capitalistas entenderem a lógica do debate ambientalista, pois
eles estão fora de sintonia com a natureza e suas necessidades. Os brancos não podem sequer tentar entender
as demandas dos negros por privilégios e redistribuição, pois a experiência
negra e sua maneira de pensar são estranhas à experiência branca e sua maneira
de pensar. O mesmo é válido para
questões relacionadas a sexo, sexualidade, religião e capacidades físicas.
Hoje
é normal pressupor que um indivíduo não pode sequer se atrever a falar sobre as
controvérsias de nossa época caso ele não pertença ao "grupo oprimido" sendo
discutido. Ainda assim, se uma mulher,
ou um negro ou um gay oferecer um ponto de vista que vai contra a agenda
política daqueles grupos poderosos que se pretendem porta-vozes desse coletivo,
tal pessoa será desprezada como sendo alguém que, por algum motivo, não possui
uma consciência mais elevada e que está irremediavelmente contaminada por uma
mentalidade obscurantista. Ela não é uma
mulher genuína, ele não é um negro genuíno, ele não é um gay genuíno, eles não são deficientes
físicos genuínos, ele não representa a genuína visão do Islã etc.
O
que está em jogo aqui é a determinação de toda uma base para qualquer tipo de
discussão intelectual. Se nós não
conseguimos concordar em seguir regras universais para estabelecer a veracidade
de alegações, então todas as discussões são reduzidas a uma série de demandas seguidas de ataques ad hominem a
qualquer um que resista a essas demandas.
O próprio Mises entendeu que, se quiséssemos evitar esse destino, teria
de haver algum entendimento e concordância quanto à regras da lógica. George Koether relata[5]
que Mises dizia a seus alunos que o primeiro livro de economia que eles
deveriam ler era um livro sobre lógica escrito por Morris Cohen, um livro que,
com efeito, é um dos últimos textos completos sobre lógica publicado para uso
universal nas salas de aula universitárias.[6]
Enquanto
isso, crescem as reclamações de que atualmente a lógica como uma disciplina
deixou de fazer parte do currículo do ensino médio ou até mesmo do ensino
universitário, o que significa que, após 16 anos de estudo formal, é difícil
encontrar algum estudante que saiba até mesmo as regras básicas sobre como
pensar.
Esta
é mais uma evidência de como esse aspecto específico do marxismo -- seu ataque
radical ao núcleo do pensamento lógico, um assunto que (junto com a gramática e
a retórica) tem sido parte do "trivium"
desde a Idade Média -- triunfou no pensamento convencional atual, chegando a
tal ponto que, caso algum professor seja suspeito de estar exigindo que seus
alunos apliquem lógicas universais e se recusem a aceitar o argumento do
'interesse de classe' como uma verdade autoevidente, pode ser excluído do meio
acadêmico meramente por ser defensor de opiniões "politicamente incorretas".
A
abordagem feita por Hoppe sobre o marxismo, entretanto, abstém-se totalmente da
questão polilogista, preferindo abraçar os princípios lógicos universais como
sendo o método essencial com o qual reaplicar a teoria política marxista em um
contexto completamente diferente. Em
seus escritos sobre a teoria de classes, Hoppe discorre sobre toda a
lista familiar: a história é definida pela luta de classes; a classe dominante
possui um interesse em comum; o domínio de classe é definido pelas relações de
propriedade que envolvem exploração; há uma tendência à centralização do
interesse de classe; e a centralização e a expansão dos domínios exploradores
levam a uma inevitável tentativa de dominação global. O que Hoppe está abordando aqui não é o
polilogismo como tal, mas sim um aspecto mais restrito da política marxista e
suas alegações a respeito das forças sociais da história. E ele afirma que todas estão, em sua
essência, corretas. A base para essa afirmação
de Hoppe reflete sua visão da teoria marxista da exploração, a qual ele
considera correta em suas características analíticas, mas não em sua aplicação.
Hoppe
lida com o erro da aplicação da teoria marxista de maneira direta e
decisiva. A visão marxista diz que é
exploração o trabalhador trabalhar cinco dias e receber como salário o
equivalente a apenas três dias do valor do produto que criou. E, ainda assim, é uma verdade incontestável dizer
que os trabalhadores voluntariamente aceitam contratos salariais. Trata-se, portanto, de um tipo bastante
estranho de exploração, uma que é mutuamente benéfica para ambos os lados e a
qual é praticada voluntária e alegremente por bilhões de pessoas
diariamente. Os interesses do
trabalhador e do capitalista são concordantes: o trabalhador prefere receber
uma fatia menor de bens no presente do que uma fatia maior no futuro, ao passo
que o capitalista possui a preferência oposta.
Marx não enxergou isso porque foi incapaz de entender que é impossível
trocar bens futuros por bens presentes sem que haja um desconto no valor.
Mas
o que dizer quanto à teoria da exploração que realmente existe no mundo? Hoppe argumenta que ela é fornecida pela
abordagem austrolibertária da análise global, e pode ser entendida tão logo
compreendemos que a classe dominante é aquela que possui acesso aos poderes do
estado. Essa abordagem advém da nova
definição de exploração criada por Hoppe, a qual ocorre quando um indivíduo
exitosamente adquire o controle parcial ou total de recursos escassos que ele
não produziu, não poupou, não adquiriu por meio de contratos com seu
proprietário/produtor anterior ou dos quais ele não se apropriou originalmente. O estado pode ser visto como uma empresa
totalmente voltada para praticar a exploração nesse sentido do termo. Essa exploração cria vítimas, que podem
derrubar seus exploradores tão logo elas desenvolverem uma consciência da
possibilidade da existência de uma sociedade livre de exploração, na qual a
propriedade privada é universalmente respeitada ao invés de ser
sistematicamente violada por uma classe dominante.
O
que é interessante nessa abordagem hoppeana da teoria marxista, e sua
remodelação da teoria à luz da teoria austrolibertária, é que ela contorna
completamente o núcleo polilogista da teoria marxista. Não há necessidade de postular que os
exploradores e os explorados estão, de alguma forma, socialmente obrigados a
pensar de maneira distinta sobre princípios lógicos irreconciliáveis. Muito pelo contrário: a abordagem de Hoppe
assume a aplicabilidade universal de um único conjunto de princípios lógicos.
Eis
aqui o principal ponto de partida, um que esclarece a aparente diferença entre
Mises e Hoppe, e ressalta uma importante agenda ideológica para o futuro. De quais maneiras a reconstrução hoppeana do
marxismo se aplica aos desdobramentos modernos do marxismo? Tão logo removemos a suposição polilogista
que fundamenta as políticas atuais, podemos ver que várias relações de grupos
de interesse são de fato caracterizadas exatamente por esse tipo de exploração
descrita por Hoppe. E são precisamente
as leis e a legislação que tornam esses tipos de exploração possível. Leis que privilegiam uma raça, uma religião,
um sexo ou uma classe de aptidões sobre outras geram um grupo de vítimas e consolidam
uma forma de solidariedade grupal que antes poderia existir no máximo em forma muito
embrionária. Ao passo que diferenças
grupais podem ser resolvidas por meio de trocas, comércio e mercado, a entrada
do estado para "arbitrar" essa relação apenas amplifica e institucionaliza o
conflito entre grupos.
Isso
é verdade no que concerne, por exemplo, à sexualidade. Uma vez que o estado começa a subsidiar a
manifestação de uma determinada forma de preferência sexual, ele faz com que os
indivíduos possuidores de outras preferências sexuais tenham a correta
impressão de que estão sendo pilhados ou explorados de alguma forma, e o único
método de defesa é se organizar e se unir para impedir que tal exploração
continue. Isso pode se tornar ainda mais
explosivo quando envolve assuntos como raça, aborto em hospitais públicos ou
até mesmo religião, porém os conflitos também surgem em outras áreas, como
legislação ambiental e legislação pró-deficientes.
Da
mesma forma que a exploração subsidiada pelo estado levou Marx a perceber,
porém diagnosticar erroneamente, a natureza da exploração em sua época, várias
formas atuais de exploração estatal podem levar as pessoas a adotar credos
anticapitalistas baseando-se em um diagnostico errado quanto às raízes dos
conflitos envolvendo raça, sexo, religião, aptidões e meio ambiente. Não se pode dizer que grupos demográficos
estarão sempre em conflitos, pois trata-se de uma característica inerente a
eles; essa ilusão é criada pela ausência daquilo que Hoppe chama de
"capitalismo limpo", em que todas as relações da sociedade são caracterizadas
por associações e trocas voluntárias.
Parte
desse erro de diagnóstico leva as pessoas a abraçarem uma abordagem polilogista
da estrutura da mente humana. Porém, tão
logo a estrutura hoppeana da exploração e do conflito se torna clara, não há
necessidade de se recorrer a extensas explicações para abordá-los. O problema fundamental não está arraigado de
alguma forma na diversidade estrutural da lógica operacional do mundo; a
explicação para os conflitos na sociedade está embutida em uma causa muito mais
direta e simples: o próprio estado.
Desta
forma, portanto, a teoria hoppeana do conflito social tem o potencial não
apenas de acabar com as velhas políticas marxistas e seus efeitos destrutivos
para o mundo, mas também o de derrubar e extirpar toda a base polilogista das
ciências sociais desenvolvidas nos últimos cem anos -- e todo o aparato de
intervencionismo estatal que resultou delas.
Quanto
a isto ser possível, tudo se resume à pergunta sobre o que é mais fundamental para
a visão de mundo marxista: seu polilogismo ou sua teoria da exploração? O principal objetivo do projeto hoppeano é
descartar o primeiro ao mesmo tempo em que retém uma versão do último, de forma
que esta possa ser utilizada contra o estado e seus interesses.
___________________________________________________
Notas
[1] Meu amigo B.K. Marcus resume toda a sua experiência
universitária como sendo "quatro anos de defesa do polilogismo".
[2] Eugen
von Böhm-Bawerk, Karl Marx and the Close of His System (New
York: Augustus M. Kelley, 1949).
[3] Ibid.,
p. 121.
[4] Ibid.,
pg. 196.
[5] Austrian
Economics Newsletter 20, no. 3 (Fall 2000).
[6] Morris
Cohen, An Introduction to Logic and Scientific Method (New York: Read Books,
2007); originalmente publicado em 1934.