Aqui
na Academia
Mises já estamos finalizando a aula
inaugural -- de um curso de nove semanas -- sobre a teoria austríaca dos
ciclos econômicos (TACE). Durante a
aula, uma questão surgiu variadas vezes: a teoria de
Mises/Hayek a respeito dos ciclos econômicos poderia ocorrer em um mercado
completamente livre, utilizando o ouro como moeda e um sistema bancário
operando com 100% de reservas -- isto, é sem reservas fracionárias?
Como
qualquer bom (e aborrecido) professor faria, evitei dar uma resposta definitiva
de um jeito ou de outro. Ao invés disso,
tentei fornecer o melhor cenário possível para cada resposta, para incitar os alunos a pensar por si
próprios. Nesse artigo, vou sintetizar
como até mesmo um rothbardiano poderia plausivelmente responder a essa pergunta
tanto na afirmativa quanto na negativa.
Revisão: a TACE sob um papel-moeda de curso
forçado e um sistema bancário de reservas fracionárias
Antes
de adentrarmos o exemplo mais complicado, vamos fazer o mais fácil
primeiro. De acordo com Mises, Hayek e Rothbard,
o atual sistema bancário desencadeia o já familiar ciclo de expansão e recessão
econômica quando ele inunda o mercado de crédito com dinheiro "em excesso".
Suponha
que temos uma economia que está originalmente em equilíbrio, em que a taxa de
juros reflete a quantia genuína de poupança que os indivíduos se abstêm de
consumir de suas rendas. Repentinamente,
os bancos decidem conceder $100 milhões em novos empréstimos, mesmo que esse
novo crédito não advenha da poupança extra de ninguém. (Descrevo esse processo aqui).
Por
causa dessa maior oferta de crédito, as taxas de juros de mercado caem. Esse "sinal falso" leva os empreendedores a
pegarem mais empréstimos e a iniciarem projetos mais longos do que empreenderiam
caso os juros não tivessem caído.
Consequentemente, uma expansão econômica insustentável se inicia, dando
à maioria das pessoas uma sensação ilusória de prosperidade.
Com
o passar do tempo, à medida que os bancos forem ficando preocupados com a
inflação de preços -- o que reduz seus lucros reais --, eles irão reduzir ou
até mesmo interromper sua criação de dinheiro sem lastro. As taxas de juros de mercado irão subir de
volta para seu valor correto e, com isso, muitas empresas serão pegas
desprevenidas. Eles terão de reduzir sua
produção ou mesmo fechar as portas completamente. Trabalhadores e outros recursos serão
liberados daqueles setores que foram os mais estimulados durante a expansão
econômica. Começa a recessão geral.
E se o ouro for a moeda e os bancos
mantiverem reservas de 100%?
Agora
a parte difícil: suponha que estivéssemos em um mundo em que o ouro fosse o
dinheiro -- as etiquetas exibem preços denominados em gramas do metal amarelo,
as pessoas andam por aí com moedas de ouro genuíno tinindo em seus bolsos
etc. Além disso, os bancos mantêm 100%
de reservas para os depósitos à vista (depósitos em conta-corrente).
Nesse
cenário, seria teoricamente possível que o ciclo misesiano de expansão-recessão
ainda viesse a ocorrer? Mais
especificamente, suponha que o proprietário de uma mina de ouro tivesse a
inacreditável sorte de achar por acaso o filão principal de sua mina. Em um curto período de tempo ele estará em
posse de várias toneladas de ouro novo, o qual ninguém sabia existir até o mês
anterior.
Ao
invés de ir para um cassino ou para uma concessionária de iates, o mineiro
resolve ir até seu banco. Lá, ele vai
dizer: "Estou emprestando esse novo dinheiro para vocês. Sei que vocês praticam uma estrita política
de 100% de reservas para os depósitos à vista, mas estou colocando esse
dinheiro na minha poupança, e não na minha conta-corrente. Estou ciente de que estou abrindo mão do meu
dinheiro agora em troca de sua promessa de que irão me pagar esse empréstimo
futuramente, e com juros."
Agora
esse banco poderá jogar no mercado de crédito uma enorme quantia de fundos para
empréstimos. Essa nova oferta de
poupança irá claramente derrubar as taxas de juros de mercado, permitindo que
muitas empresas iniciem e ampliem aqueles projetos de longo prazo que não eram
lucrativos antes da descoberta do ouro.
Finalmente
podemos ver o enigma: temos aí um exemplo de expansão insustentável? Afinal, ninguém mais na comunidade restringiu
seu consumo de modo a liberar recursos físicos para a economia. Portanto, fica a pergunta: em que esse
cenário se diferencia daquele em que os bancos de reservas fracionárias
simplesmente criam novos empréstimos do nada?
Como
expliquei na introdução, não estou aqui para dizer qual é a resposta definitiva
para essa questão. Quero mostrar que é
possível dar uma resposta sinceramente "rothbardiana" que sirva para ambos os
casos. Creio que os atuais austríacos
que endossam a posição de Rothbard a respeito das reservas de 100% podem ir
para qualquer um dos dois lados dessa questão.
Cenário #1: O influxo de ouro causaria uma
expansão insustentável
Tanto
Mises quanto Rothbard viam os juros como um fenômeno "real". Ambos argumentavam que, em uma economia de
mercado livre e desimpedido, a taxa "natural" de juros reflete as preferências
subjetivas das pessoas: o quanto elas preferem consumir agora ao invés de mais
tarde.
Mises
e Rothbard também enfatizaram a questão de não haver uma quantidade "ótima" de
dinheiro. Qualquer quantidade de
dinheiro seria capaz de realizar suas funções com meio de troca universalmente
aceito, tão logo os preços se ajustassem.
A comunidade iria obviamente ficar mais rica (em termos per capita) se
os agricultores colhessem mais trigo ou se os músicos executassem mais
concertos. Mas se o governo imprimisse
mais dinheiro de papel, isso não tornaria a comunidade mais rica na média, pois
a mesma quantidade de bens e serviços reais
estaria sendo produzida. O novo dinheiro
iria simplesmente elevar os preços.
Com
efeito, mesmo no caso de uma moeda-commodity como o ouro, novas quantidades
sendo injetadas no mercado não tornariam a comunidade mais rica, exceto na
medida em que o novo ouro fosse utilizado para aplicações industriais ou
comerciais. Por exemplo, se parte desse
ouro recém-escavado fosse direcionado para o tratamento de artrite ou para a
produção de mais colares, então esse aumento seria socialmente benéfico. Porém, o ponto crucial é que, em sua capacidade monetária, cinco
milhões de toneladas de ouro são tão úteis quanto um milhão ou dez milhões.
Após
enfatizar a constatação padrão de Mises e Rothbard acerca da natureza dos juros
e da moeda, poder-se-ia muito plausivelmente argumentar que o cenário da mina
de ouro acima descrito iria
desencadear uma expansão econômica insustentável. Porém, suponha que, ao invés de jogar todas
essas toneladas de ouro no mercado de crédito, o mineiro gastasse tudo na
compra de bens de consumo. Isso
claramente iria apenas redistribuir riqueza, retirando-a do resto da comunidade
e direcionando-o para as mãos do mineiro.
Vejamos:
a produção total de carros, alimentos e imóveis não aumentaria apenas porque
alguém calhou de achar um monte de metais amarelos. Consequentemente, esse aumento do consumo do
mineiro só poderá ocorrer em detrimento do consumo dos outros cidadãos, que só
receberão esse novo ouro bem mais tarde, depois que ele já tiver sido colocado
em circulação e os preços tiveram aumentado.
Observe
que não há nada de imoral ou dúbio em um mineiro utilizar sua propriedade
legitimamente adquirida para estimular seu consumo. Estamos apenas argumentando que essa
"produção" extra de ouro não é socialmente útil, ao contrário do que ocorreria
caso houvesse um aumento na produção feita por agricultores ou dentistas.
Se
é possível entender que o gasto desse novo ouro em bens de consumo iria
meramente rearranjar a mesma quantidade total de bens e serviços reais, então
resta claro que a renda real dessa comunidade não aumentou em decorrência da
descoberta desse filão de ouro.
Finalmente,
se a análise até agora estiver correta, então a conclusão óbvia é a de que, se
esse mineiro pegar esse ouro recém-descoberto e emprestá-lo a juros, ele irá distorcer as estrutura de produção,
tirando-a de sua configuração adequada.
A essa taxa de juros menor, as empresas irão tomar mais dinheiro
emprestado (consistindo em gramas de ouro) para gastar com investimentos. Entretanto, os outros cidadãos da comunidade
não irão reduzir seu consumo apenas porque um cara encontrou acidentalmente
algumas toneladas de ouro. No mínimo, as
pessoas irão consumir mais assim que
os juros caírem.
Com
isso vemos que análise padrão rothbardiana poderia bem plausivelmente concluir
que um ciclo de expansão e recessão é teoricamente possível em um livre
mercado.
Cenário #2: uma expansão insustentável do
crédito não pode ocorrer em um livre mercado
Embora
a análise acima tenha sido propositalmente construída de acordo com os termos
rothbardianos, ela nos apresenta um problema: Murray Rothbard imaginava que os
ciclos de expansão e recessão não
poderiam acontecer em mercado genuinamente livre. É por isso que, em seu tratado Man,
Economy, and State, ele colocou a análise da teoria austríaca dos
ciclos econômicos em uma seção que lida com intervenções governamentais.
Pelo
que sei, Rothbard nunca abordou especificamente o cenário teórico que estamos
imaginando nesse artigo. Porém, se um
rothbardiano quiser negar que um livre mercado também pode gerar um ciclo de
expansão e recessão, mesmo sob essas condições hipotéticas que assumimos, como
ele poderia argumentar?
Primeiro,
sejamos um pouco mais concretos em nossa descrição das operações normais -- e
mensais -- de um minerador de ouro.
Quaisquer outras empresas auferem receitas de clientes em ouro físico e
pagam suas despesas de mesma maneira. No
final de cada mês, a renda líquida de empresa será o excesso de receita em
relação às despesas, mensurada em gramas de ouro.
Porém,
para um sujeito dono de uma mina de ouro, as coisas são diferentes. Sim, ele tem de pagar seus empregados com
gramas de ouro, assim como tem de pagar por sua eletricidade, gasolina e outros
insumos com gramas de ouro também -- como qualquer outro empreendedor.
Porém,
a diferença é que as receitas desse
mineiro advêm não dos pagamentos feitos por clientes, mas do ouro que ele
escava e traz à superfície. Nessa
economia hipotética, o sujeito está literalmente encontrando dinheiro enterrado
no chão. Após uma polida adequada no
material (e talvez utilizar os serviços de alguém que irá transformar o metal
em moedas reconhecíveis), esses grandes pedaços de metal amarelo serão
perfeitamente trocáveis por outras unidades monetárias que estão nos bolsos das
pessoas.
Agora
temos de perguntar: há algo de estranho ou ilegítimo nesse fluxo constante de
renda para o dono da mina, mês após mês?
Afinal, ele pode utilizar sua produção de ouro todos os meses para pagar
suas despesas empreendedoriais e também para desfrutar um ótimo estilo de vida
para si próprio.
Quando
tudo fica assim explícito, é difícil ver como um rothbardiano poderia, de uma
forma ou de outra, ter qualquer objeção à renda real desse mineiro (supondo que
ele adquiriu a propriedade da mina de forma legal e adequada). Em primeiro lugar, esse ouro novo diminui o
poder de compra da grama do ouro, o que fará com que as pessoas se beneficiem
mais prontamente dos serviços não
monetários do ouro, como tratamentos dentais, joalherias, etc., os quais
ficarão mais baratos.
Se
tentarmos argumentar que a fatia desse ouro que vai para o bolso das pessoas (e
não para colares ou obturações) será de alguma forma socialmente inútil, teremos
de lidar com o fato de que essas transações ocorreram voluntariamente, e as
pessoas que venderam bens e serviços em troca desse ouro iriam definitivamente
dizer que ganharam com essa troca.
Em
termos gerais, rothbardianos não creem que a ciência econômica possa negar a
utilidade social de uma troca, desde que ela seja genuinamente voluntária e que
os direitos de propriedade de terceiros não sejam violados. Se um produtor quiser queimar metade da sua
plantação de café com o intuito de elevar seus preços e com isso extrair mais
receitas de seus clientes, Rothbard não vê
problema algum nas consequências -- de novo, desde que o governo não
participe da política restritiva.
Por
esse prisma, portanto, é difícil ver como um rothbardiano poderia alegar que a
renda desse minerador de ouro é de alguma forma menos merecida ou "real" do que
a renda de qualquer outra pessoa.
Afinal, um rothbardiano diria que a renda mensal de uma cartomante se
deve à sua "produtividade marginal", a qual é mensurada pela propensão a pagar
de seus clientes. Não é nosso papel,
como economistas, dizer se as preferências dos consumidores são "legítimas" ou
"socialmente úteis" de algum ponto de vista objetivo.
Já
que chegamos até aqui, basta um pequeno passo para dizermos que uma maciça descoberta de ouro não altera a
essência do argumento. Se é perfeitamente
legítimo e "eficiente" que o mineiro traga, digamos, 28 kg de ouro para o
mercado a cada mês, não há motivo para mudarmos de opinião caso ele
repentinamente traga 10 toneladas de ouro para o mercado. Essa ainda será sua renda, e a comunidade
estará esse tanto mais rica, em termos nominais.
É
verdade que se pode afirmar que, em termos reais -- ajustando-se pela inflação
de preços --, a comunidade não está mais rica.
Correto. Podemos olhar para o
aumento nos preços em ouro do leite, dos ovos, da gasolina e afins, e
considerar o fato de que um novo influxo de 10 toneladas de ouro irá causar
inflação de preços (cotados em ouro).
Mas isso ainda não muda o fato de que a renda nominal do mineiro foi de
10 toneladas de ouro, e ela é tão legítima quanto seria caso ele tivesse
escavado e levado para o mercado 28 kg de ouro, como de costume.
Finalmente
chegamos ao nosso objetivo: se aceitarmos que a renda nominal desse mineiro --
mensurada em ouro -- é tão "legítima" quanto a de todos os outros indivíduos,
então se ele decidir poupar 9,5 toneladas desse novo ouro, emprestando-as no
mercado, é perfeitamente correto dizer que a quantidade de poupança na comunidade aumentou.
Novamente:
se quisermos, podemos suscitar a distinção entre poupança nominal e real
(ajustada pela inflação de preços). Porém,
como bons misesianos que somos, não devemos perder o foco em relação à "força
do dinheiro". Não podemos cair na
armadilha da teoria convencional, que pensa a economia como um arranjo em que
se pratica escambos e, só então, joga o dinheiro nesse arranjo, como se fosse
algo secundário. Sim, o novo influxo de
ouro irá elevar os preços em ouro dos bens e serviços da comunidade, e esse
aumento dos preços irá fazer com que os emprestadores cobrem uma taxa de juros
nominal mais alta por seus empréstimos.
A inclusão desse "ágio" nas taxas de juros de mercado irá atuar na
direção oposta do efeito gerado pelo aumento na poupança, impedindo que os
juros caiam tanto quanto poderiam cair na ausência desse ágio.
Em
todo caso, é difícil ver como um rothbardiano poderia alegar que as ações do
mineiro -- trazer mais ouro para o mercado, o qual todos estão ávidos para
adquirir, e em seguida decidir poupar uma
grande fatia dessa renda inesperada, ao invés de gastá-la em um cruzeiro pelo
Caribe -- são de alguma forma danosas para o resto da comunidade.
Rothbard
argumentou contra a própria existência conceito
da externalidade negativa, desde que os direitos de propriedade de todos fossem
respeitados. A taxa "correta" de juros
de mercado em nosso cenário hipotético seria exatamente como descrevemos -- é a
taxa de juros que iria emergir espontaneamente das trocas voluntárias de todos
dessa comunidade, incluindo o mineiro.
Conclusão
Nesse
artigo, ignorei deliberadamente certas tensões entre ambos os lados, para
evitar que tomasse algum partido da questão.
Sabemos que é impossível que ambas as linhas de raciocínio acima
estejam corretas, pois levam a conclusões opostas. E, ainda assim, o leitor há de concordar que
cada uma delas mostra uma aplicação plausível do pensamento rothbardiano.
No
mundo real, é óbvio, o perigo real da expansão do crédito e dos ciclos de
expansão e recessão econômica advém do papel-moeda fiduciário de curso forçado
e do sistema bancário de reservas fracionárias.
Entretanto, ainda assim é importante para economistas na tradição
austríaca analisar detidamente cenários hipotéticos a fim de refinar nosso
pensamento e eliminar qualquer inconsistência em nossos princípios.