A maneira como determinados intelectuais ocidentais
reagem aos resultados de experimentos socialistas é um fenômeno que pode ser
dividido em três estágios.
Os
três estágios do socialismo
O primeiro
estágio é o da lua de mel, o período durante o qual o experimento --
recentemente implantado -- aparenta demonstrar algum sucesso inicial.
Dado que economias não são
destruídas em um dia, a implantação de medidas socialistas em economias que
ainda apresentam resquícios de capitalismo pode, no curto prazo, gerar algum
bem-estar.
Este é o período durante o qual os intelectuais
tecem loas e ressaltam quão sublime é o regime.
Passado algum tempo, a economia socialista
inevitavelmente começa a degringolar. E o sonho começa a se esfacelar. Os
fracassos do arranjo vão se tornando tão óbvios, que passam a ser
constrangedores para a causa socialista.
E então começa o segundo
estágio, caracterizado por justificativas e desculpas esfarrapadas que
sempre se degeneram no famoso argumento da "falácia da privação
relativa" (argumentação surgida
na União Soviética), a qual sugere que o argumento do oponente deve ser
ignorado simplesmente porque há problemas mais importantes no mundo.
Dado, porém, que a situação continua degringolando a
uma velocidade crescente, surge então o terceiro
e derradeiro estágio: a alegação de que o país em questão na realidade
nunca foi realmente socialista.
"Aquilo nunca foi o verdadeiro socialismo!", gritam
desesperados estes intelectuais ocidentais, que ainda fazem questão de
ressaltar que apenas um completo idiota, que não faz a mais mínima ideia do que
realmente significa "socialismo", pode dizer o contrário.
A
Venezuela como exemplo
Todos os estágios acima foram explicitamente visíveis
no fenômeno venezuelano.
No primeiro
estágio, que durou quase uma década, praticamente toda a esquerda havia
sido capturada pelo charme de Hugo Chávez e demonstrava uma paixão fervorosa pelo
modelo econômico daquele país. Eram elogios copiosos e sem fim (e
de toda a esquerda
ao redor do mundo).
A versão venezuelana do socialismo era o exemplo
mais brilhante possível do modelo; e era o modelo definitivo que o
resto do mundo deveria copiar.
O elogio mais famoso ainda continua sendo o do
famoso esquerdista americano, David Sirota, que
escreveu um ensaio para a revista Salon intitulado "O milagre
econômico de Hugo Chávez". Eis um trecho:
Chávez se tornou o bicho-papão da
política americana porque sua defesa aberta e inflexível do socialismo e do
redistributivismo não apenas representa uma crítica fundamental à economia
neoliberal como também vem gerando resultados inquestionavelmente positivos.
...
Quando um país adota o socialismo e se
esfacela, ele se torna motivo de piada e passa a ser visto como um inofensivo e
esquecível exemplo de advertência sobre os perigos de uma economia dirigida
pelo governo. Porém, quando um país se torna socialista e sua economia
apresenta o grande desempenho exibido pela economia venezuelana, ele não mais
se torna motivo de piada — e passa a ser difícil ignorá-lo.
Já no segundo
estágio, o melhor exemplo foi fornecido pelo escritor, comentarista e
ativista britânico Owen
Jones, que, ainda
no início de 2014, disse que os problemas econômicos da Venezuela se deviam
basicamente aos seguintes fatores: guerra civil na Colômbia (praticamente
abolida em 2006), muitas armas na sociedade venezuelana (sendo que o governo já
havia terminado de confiscar
todas em 2012), uma polícia corrupta (algo que é comum na América Latina),
e fato de que o governo venezuelano era amigo das ditaduras da Síria e da Líbia
(essa dispensa comentários).
Já o terceiro
estágio, que tende a ser o mais divertido, é farto em exemplos, que sempre
geram piadas por causa de suas deliciosas contradições.
Ninguém menos que o supremo intelectual Noam Chomsky
veio a público dizer que o regime da Venezuela -- o mesmo que implantou
controle de preços, estatizações, expropriação de propriedade privada,
generosos programas assistencialistas e planejamento centralizado (ver aqui, aqui
e aqui) -- não
tem absolutamente
nada de socialista:
Eu nunca descrevi o modelo de
capitalismo de estado de Chávez como 'socialista'; nem sequer insinuei algo tão
absurdo assim. O regime não tinha nada a ver com o socialismo. O capitalismo
privado permaneceu livre ... Os capitalistas continuaram livres para solapar a
economia de todas as maneiras, como por meio de uma maciça exportação de
capital.
Ou seja, o socialismo só irá funcionar se ele for
progredindo até chegar ao ponto do "socialismo total". Qualquer outro
arranjo que não seja o socialismo pleno -- no qual não haveria uma única quitanda
privada -- é inaceitável. Nenhum esforço parcial será suficiente.
O mesmo raciocínio é também encontrado em um artigo
do filósofo Slavoj
Žižek intitulado "O
problema com a revolução venezuelana é que ela não foi longe o bastante"
(o título já resume tudo).
Ou seja, no derradeiro estágio, os intelectuais começaram
a afirmar abertamente que o problema com a economia venezuelana nunca esteve no
fato de milhares de empresas, fábricas, indústrias e até mesmo pontos de
comércio terem sido confiscados
e estatizados, de os direitos de propriedade terem sido abolidos, e de milhões
de cidadãos terem sido destituídos de suas
liberdades básicas. Não, o problema todo é que o regime venezuelano foi muito tímido, e por isso ainda não
chegou ao "socialismo verdadeiro".
Para resumir, eis como se deu a cronologia no caso
da Venezuela:
- 2005-13: período da lua de mel
- 2013-15: justificativas, desculpas esfarrapadas
- 2015-17: um espaço entre dois períodos,
caracterizado por um ensurdecedor silêncio gerado pela estupefação da realidade
- 2017-presente: o período do "aquilo não é o
socialismo verdadeiro"
Nas últimas semanas, porém, os intelectuais ficaram
tão desnorteados, que acabaram retornando ao segundo estágio. Ao menos nas
redes sociais, passou a existir um consenso de que a economia da Venezuela
seria hoje um sucesso estrondoso se não fosse a interferência externa de poderosas
forças hostis (leia-se, capitalistas).
Atribuindo
culpas e descobrindo novos fantasmas
O doutor Aaron Bastani, autor de Fully Automated Luxury Communism
(Comunismo Luxuoso e Totalmente Automatizado), afirmou em
seu Twitter que "Principalmente por causa das sanções, a economia da
Venezuela encolheu 50% nos últimos cinco anos".
Alguns minutos depois, estas sanções devem ter se
intensificado, pois o doutor Bastani atualizou a importância relativa delas de
"principalmente" para "totalmente". Disse ele:
"A queda no PIB (nesta escala histórica) é, sim, totalmente por causa das
sanções".
Em uma carta
aberta publicada no jornal The Guardian,
intelectuais e políticos britânicos do Partido Trabalhista falam sobre uma
"tentativa de golpe liderada pelos EUA", a qual é coordenada pelos "governos de
extrema-direita de Trump e Bolsonaro".
Quem lê o texto fica com a impressão de que não há
absolutamente nenhuma oposição doméstica a Maduro.
Outra
carta similar, porém mais explícita, assinada por Noam Chomsky (sim, ele
está em todas), Mark Weisbrot e 68 outros acadêmicos americanos afirma que "Os
EUA e seus aliados, incluindo ... o presidente de extrema-direita do Brasil,
Jair Bolsonaro, estão empurrando a Venezuela para o precipício."
A carta diz que a culpa pelas várias crises da
Venezuela é dos EUA -- especialmente das, de novo, sanções.
Quase todos os nomes que assinam as duas cartas são
familiares: antes de o socialismo venezuelano perder o seu charme, eram
essas pessoas que se apresentavam como as mais dedicadas e esfuziantes
tietes de Chávez e Maduro na "respeitada mídia ocidental". Após um período de
silêncio (para meditar, digerir a tragédia e reorganizar as forças), elas estão
agora reacendendo a adormecida chama, provando que velhas paixões não
enferrujam.
Mas exatamente quais são essas "sanções" que estão
provocando essas recaídas nos chavistas?
A
verdade sobre as sanções
Mesmo levando em conta as poucas que existem,
sanções contra a Venezuela são um fenômeno totalmente
recente.
Até meados de 2017, não havia
nenhuma sanção econômica contra a Venezuela. Havia, isso sim, sanções
pessoais contra alguns
membros da alta hierarquia do governo venezuelano (sanções essas que
envolviam congelamento de ativos e proibição de entrada nos EUA).
Desnecessário dizer que sanções deste tipo só podem
afetar apenas os indivíduos almejados. Não há como elas terem um efeito sobre
toda a economia venezuelana.
Foi somente em agosto
de 2017 que o governo americano implantou uma medida que pode ser
razoavelmente considerada uma sanção econômica: cidadãos americanos foram
proibidos de comprar de títulos do Tesouro venezuelano, bem como títulos
emitidos pela PDVSA, a estatal petrolífera venezuelana. Um ano depois, isso
foi estendido para outras estatais.
Entretanto, não há absolutamente nenhuma restrição
ao comércio (ou, pelo menos, não do lado americano). Se você é um cidadão
americano ou proprietário de uma empresa instalada nos EUA, você pode
comercializar com a Venezuela o tanto que você quiser. Você pode vender comida,
remédios, produtos sanitários, ferramentas, eletrônicos, maquinários ou
qualquer outra coisa. A única coisa que você não pode fazer é comprar títulos do
governo venezuelano.
Além de isso não ser, nem de longe, uma sanção
absoluta, vale ressaltar que ela se aplica exclusivamente
a cidadãos americanos. Se você for, por exemplo, britânico, alemão,
canadense, japonês ou francês, você pode se entupir de títulos do governo
venezuelano (muito embora, por algum motivo insondável, nem os investidores britânicos,
nem os alemães, nem os canadenses, nem os japoneses e nem os franceses estejam
demonstrando grande apetite por esses títulos).
Agora, indo ao que interessa: a crise econômica da
Venezuela começou muitos anos antes de estas ínfimas sanções sequer estarem
sendo cogitadas.
Veja, por exemplo, este trecho de um artigo
publicado pelo jornal britânico The Guardian (um jornal
abertamente de esquerda) ainda no ano de 2007, quando a economia da Venezuela
ainda aparentava robustez e toda a esquerda mundial venerava Chávez:
Não havia qualquer sinal de leite, ovos,
açúcar e óleo de cozinhar. Onde eles estavam? [...] Bem-vindo à Venezuela, uma
economia pujante, mas curiosa. Uma escassez de alimentos está atormentando o
país ao mesmo tempo em que as receitas de petróleo estão estimulando um grande
aumento nos gastos. [...] O leite desapareceu completamente das gôndolas. […]
Ovos e açúcar tambem são apenas uma memória do passado.
Após uma grande contração econômica ocorrida em 2009
e 2010, Hugo Chávez decidiu declarar uma
"guerra econômica" contra a burguesia do país, a quem ele acusou de "desestabilizar"
o país. E então o regime venezuelano simplesmente aprofundou a implantação de exatamente
todas as políticas defendidas pela ala da esquerda que se opõe a uma
economia de mercado.
Foi um programa marcado por controle de preços, impressão desmedida de
dinheiro, estatização
de fábricas e de lojas (até mesmo
hotéis foram estatizados), generosos programas
assistencialistas, planejamento
centralizado, e uma infindável retórica sobre igualdade, redução da pobreza
e, acima de tudo, combate aos "neoliberais".
Quanto a este último, o próprio presidente venezuelano
Nicolás Maduro fez
a gentileza de explicar tudo ao mundo: "Há dois modelos: o neoliberal,
que destrói tudo; e o chavista, que é centralizado no povo".
Desde então, a partir de 2013-2014, a economia
venezuelana entrou em queda livre. De novo, veja o que diz o The Guardian nesta
reportagem publicada em setembro de 2013:
A escassez de comida na Venezuela não
apenas chegou ao seu ápice, como também nenhuma outra na história do país durou
tanto tempo. [...] O Banco Central da Venezuela publica um índice de escassez
[...] Os números para este ano estão em um nível similar ao de países que vivem
uma guerra civil ou que passam por racionamentos típicos de períodos de guerra.
Isso, vale repetir, ainda em 2013. Em 2014, praticamente
5 em cada 10 venezuelanos (48%) estavam abaixo da linha da pobreza. Três
anos depois, essa cifra já era de espantosos
87% (nove em cada dez).
Quando as sanções americanas foram implantadas, em
agosto de 2017, a economia já havia se contraído 33% em relação a 2014.
Para
concluir
Apenas para deixar claro, sou um radical opositor de
sanções econômicas. Governos não têm o direito de proibir cidadãos de
transacionarem com outros cidadãos. Não há como defender sanções.
Entretanto, o ponto aqui é: sanções de escopo
extremamente limitado não podem causar uma crise econômica da magnitude vista
na Venezuela. E, ainda que pudessem, elas simplesmente não poderiam fazer isso retroativamente.
A crise econômica venezuelana já era observável em
2007. A escassez já era perceptível. Em 2009, a recessão já estava nos dados
oficiais. No início de
2014, a crise humanitária já era explícita para o mundo inteiro.
Agora, diga-me: em qual universo é possível afirmar
que pequenas sanções introduzidas no final de 2017 geram retroativamente todos estes problemas observados a partir de 2007?
A esquerda está perdida simplesmente porque a crise
venezuelana é resultado de todas as políticas que ela sempre defendeu: controle
de preços, expropriações, estatizações, planejamento centralizado, retórica
anti-capitalista, anti-empresarial e anti-investidores estrangeiros, confisco
de renda e redistribuição sob a retórica da "justiça social", e políticas fiscal
e monetária extremamente expansionistas. E isso apenas para ficar no básico.
A atual crise venezuelana é culpa exclusivamente de idéias
asininas colocadas em prática.
E a ânsia de intelectuais ocidentais isentarem
Chávez e Maduro, atribuindo a culpa pelo desastre a "imperialismos estrangeiros",
apenas mostra como essas pessoas, na mais benevolente das hipóteses, fracassaram
completamente em aprender alguma lição após décadas de uma platônica paixão pelo
socialismo.