Nota do Editor
O artigo abaixo foi originalmente publicado em janeiro de 2017. Com os acontecimentos recentes, ele ficou ainda mais atual.
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Entra ano, sai ano, e a comoção é sempre a mesma: os
americanos estão nas mãos dos chineses.
Os alarmistas dizem: se o governo chinês quiser, ele pode destruir a
economia americana: basta ele colocar à venda todos os títulos da dívida
americana que possui (atualmente, US$ 1,1 trilhão). Uma venda maciça faria os preços
desses títulos desabarem e, consequentemente, suas taxas de juros dispararem. Isso
jogaria a economia americana em uma profunda recessão.
A questão é: por que a China faria isso?
Um leitor me enviou o seguinte trecho de um
blog:
Em
terceiro lugar, relembro o leitor do velho ditado: "Se você deve ao banco dez mil
dólares e não tem como pagar, você está encrencado. Mas se você deve ao banco
dez milhões de dólares e não tem como pagar, o banco está encrencado".
Bem,
meus amigos, nós americanos somos os devedores, e a China é o banco. Eles são os
maiores detentores estrangeiros de títulos da dívida do governo americano,
estando expostos a uma quantia total de US$ 1,2 trilhão. Dado que o seu PIB é
de 10 trilhões de dólares, essa quantia de títulos da dívida representa uma
fatia nada trivial de seu PIB. Em outras palavras, os chineses estão encrencados.
A pessoa que escreveu isso não entende de Banco
Central.
O velho ditado pode ser aplicado a um banco
comercial. Um banco comercial empresta dinheiro para um indivíduo. Se o indivíduo
não puder quitar o empréstimo, o banco irá se apropriar dos ativos que esse indivíduo
deu como garantia a esse empréstimo (alienação
fiduciária). O banco poderá estar encrencado se esses ativos dados como
garantia não tiverem um valor de mercado fácil de ser determinado. Porém, se o
ativo for de fácil negociação e comercialização, então a única despesa será com
os gastos legais para se transferir este ativo ao banco. O banco não estará ameaçado
por esse calote.
Mas com um Banco Central é diferente.
O
governo da China não se importa
Comecemos pelo básico.
O Banco Central da China já comprou em torno de US$
1,1 trilhão de títulos do Tesouro americano. Para se manter atualizado dos números,
clique aqui.
Os títulos do Tesouro americano são ativos extremamente
líquidos e comercializáveis. O BC chinês pode vendê-los no mercado aberto a
qualquer momento e em qualquer quantidade. Mas é provável que ele não queira
fazer isso, não em grandes quantidades. Tal medida, como dito acima, tenderia a
elevar as taxas de juros dos títulos do Tesouro americano. Em algum ponto,
juros mais altos nos títulos do Tesouro americano poderiam levar os EUA a uma recessão.
E uma recessão irá reduzir a quantidade de produtos chineses comprados pelos
americanos.
O importante, no entanto, é o fato de que o BC chinês
detém ativos que são extremamente líquidos. Se ele não quiser mais manter esses
ativos, ele pode se livrar deles a qualquer momento. Logo, o BC chinês, ao
contrário do que diz o blogueiro acima, não está encrencado por estar em posse
de títulos do Tesouro dos EUA.
Adicionalmente, dado que as taxas de juros nos EUA estão
em suas mínimas históricas, esses títulos não pagam praticamente nada de juros.
E os diretores do BC chinês não estão nem aí. Por que eles se importariam com
isso? Não é o dinheiro deles. O BC chinês simplesmente cria renminbis eletrônicos,
utiliza esses dígitos eletrônicos criados do nada para comprar os dólares em
posse dos exportadores chineses, e então aplica esses dólares em títulos do
Tesouro americano. Não custa absolutamente nada ao BC chinês criar esse
dinheiro eletrônico para fazer tudo isso. Portanto, é basicamente irrelevante para
o BC chinês se os títulos do Tesouro americano pagam juros ou não.
E agora vem o mais importante de tudo: o BC chinês não
comprou títulos do Tesouro americano visando a auferir juros. Ele comprou dólares
apenas para manter o valor do dólar apreciado em relação ao renminbi, para que
os americanos pudessem comprar mais produtos dos exportadores chineses. E então
utilizou esses dólares para comprar títulos do Tesouro americano.
O BC chinês comprou títulos da dívida americana
simplesmente porque ele é um seguidor da doutrina keynesiana. Ele está
comprometido com uma forma específica de keynesianismo: o mercantilismo. Os burocratas
chineses que controlam o governo querem subsidiar as exportações chinesas. E eles
fazem isso ordenando o BC chinês a criar renminbis digitais para comprar os dólares
que os exportadores chineses ganharam por suas exportações. Isso mantém o dólar
apreciado em relação à moeda chinesa. E isso, por sua vez, funciona como um subsídio
para o setor exportador da economia chinesa.
Ao final, o BC chinês simplesmente utiliza esses dólares
para comprar títulos do tesouro americano.
É por isso que o BC chinês não tem nenhum problema
em manter US$ 1,1 trilhão em títulos do Tesouro americano. Ele cria dinheiro eletrônico
(renminbis) a custo zero, compra dólares e com isso subsidia seu setor
exportador, que é o mais poderoso de sua economia.
Já o Tesouro americano também considera ótimo esse
arranjo. Por que não consideraria? O Tesouro americano não paga praticamente
nada de juros nesses títulos, e mesmo assim já recebeu US$ 1,1 trilhão em empréstimos.
Isso significa que o governo chinês está subsidiando os déficits orçamentários do
governo americano. Trata-se de um arranjo em que ambos os governos saem
ganhando.
Os burocratas que gerenciam o governo chinês determinaram
que é bom para a China vender para os estrangeiros todos os bens de valor que
produzem, desta forma reduzindo a oferta destes bens para os próprios chineses
e, com isso, privando sua população de usufruir um maior padrão de vida. Obviamente,
isso é um péssimo negócio para a maioria dos cidadãos chineses, mas um ótimo negócio
para os protegidos magnatas do setor exportador.
É também um ótimo negócio para os cidadãos americanos
que compram produtos chineses bons e baratos. O governo chinês está subsidiando
o estilo de vida dos americanos.
Enquanto isso, os cidadãos chineses, que estariam
felizes em poder consumir os bens produzidos pela indústria chinesa, acabam
sendo privados destes mesmos bens, pois a preferência é que eles sejam
exportados para os estrangeiros.
Isso é o básico do mercantilismo. Tudo de bom que um
país produz deve ser mandado para fora com subsídios do governo, deixando sua população
apenas com as sobras. Ganha o setor exportador e ganham os burocratas do
governo (que recebem "gratificações" deste setor exportador).
Tal arranjo não incomoda nem um pouco os burocratas
que comandam o BC chinês. Não é o dinheiro deles. Eles recebem salários acima
da média para criar renminbis eletrônicos a pedido do governo chinês e colocar
em movimento todo este ciclo acima descrito. Não há por que reverterem isso.
Conclusão
Mercantilistas sempre estiveram convencidos de que
ter um Banco Central subsidiando o setor exportador é algo extremamente
benéfico para uma nação, e que a reduzida quantidade de bens e serviços que
estarão disponíveis para os consumidores domésticos (tanto em decorrência de
mais produtos domésticos estarem sendo exportados quanto em decorrência de
menores importações por causa da moeda mais desvalorizada) é algo sem nenhuma
importância.
Enquanto este subsídio coercivamente extraído de uma
maioria para uma minoria não for visto como um programa de transferência de
riqueza dos mais pobres (consumidores comuns) para os mais ricos (barões do
setor exportador), todo o arranjo irá se manter.
Quando o governo de um país adota o mercantilismo,
ele o faz sabendo que praticamente ninguém compreende que aquela política
prejudica a vasta maioria dos cidadãos e beneficia apenas uma minoria que está
no setor exportador da economia.
Portanto, por que exatamente alguém acredita que o
governo chinês e seu Banco Central teriam algum problema em manter uma montanha
de títulos do Tesouro americano é algo que nunca foi explicado. O governo dos
EUA não irá dar um calote em sua dívida que está em posse de estrangeiros. Por que
ele faria isso? Ele quer exatamente que esses estrangeiros continuem comprando
cada vez mais títulos, desta forma empurrando para baixo os juros desses títulos.
Por que matar a galinha que bota os ovos (eletrônicos) de ouro?
Aplicar a lógica do setor bancário comercial a um
Banco Central é um grande erro conceitual. Um Banco Central não está restrito aos
mesmos tipos de limitações impostas aos bancos comerciais, que visam ao lucro.
Bancos Centrais criam dinheiro do nada, e então utilizam esse dinheiro para
comprar títulos emitidos por governos.
Os governos jamais tiveram a intenção de quitar
esses títulos ("rolar a dívida" é a palavra de ordem), e os Bancos Centrais
jamais tiveram a intenção de se desfazer desses ativos, o que elevaria as taxas
de juros.
Trata-se de um gigantesco truque contábil entre um
setor do governo e outro setor do governo. A preocupação com lucros e prejuízos
nunca entrou na jogada.