O artigo abaixo foi originalmente publicado em setembro de 2015 e segue sem absolutamente nenhuma alteração.
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Não, não foi a China. A China ajudou, é claro, mas a China nem de
longe explica toda a nossa economia.
O forte crescimento econômico da China durante toda
a década de 2000 de fato fez com que aquele país se tornasse um voraz e
insaciável consumidor do minério
de ferro e da soja produzidos no Brasil. Tal fenômeno explica, e muito, os bons
resultados obtidos no Brasil pelo setor da mineração e da soja, bem como os
bons resultados de todas as cadeias produtivas associadas aos setores da
mineração e da soja, como o de maquinário agrícola e de caminhões.
Mas nem de longe a China explica toda a economia
brasileira. Para se ter uma ideia, de
tudo o que o Brasil exporta para a China, os produtos manufaturados não
chegam nem a 5%. Isso significa, por exemplo, que a indústria brasileira -- que cresceu
forte no período 2004 a 2011, e entrou em retração em 2012
-- nem de longe tem a China como principal cliente.
Os setores de maquinário agrícola (para a colheita
da soja), de maquinário pesado (para as mineradoras) e de caminhões (para fazer
o transporte da soja e do minério) de fato se beneficiam da expansão chinesa,
mas estes setores não explicam toda a economia brasileira.
A renda das pessoas crescendo
anualmente, shoppings lotados e restaurantes com filas de espera, aeroportos
abarrotados, pobres podendo pagar passagens de avião, pobres se tornando classe
média, empregadas domésticas tendo aumentos salariais e podendo mandar filhos
para a escola, carros zero sendo vendidos em quantidades
crescentes, boom imobiliário e apartamentos sendo vendidos ainda
na planta, empresas tendo seus estoques prontamente vendidos,
novos empreendimentos sendo iniciados diariamente, trabalhadores encontrando
empregos a salários nominais cada vez maiores -- todos esses fenômenos ocorreram por todo o país e se tornaram corriqueiros no período 2004-2011, mas eles não
são explicados pela China.
Ademais, a participação das exportações na
economia brasileira é ínfima, não
chegando nem a 12% do PIB.
Tal valor só é maior que Afeganistão, Burundi, Sudão, República
Centro-Africana e Kiribati. A média
global é de 29,8% do PIB.
Ou seja, não foi a China.
Houve
um ajuste, mas ele também não explica tudo
Tão logo o governo Lula assumiu o poder em janeiro
de 2003, houve um ortodoxo
e surpreendente ajuste da economia para corrigir todos os
desequilíbrios causados por sua eleição em 2002.
Vale lembrar que a eleição de Lula e do PT -- um
partido que até então pregava abertamente o rompimento de "tudo que aí
está", que defendia abertamente a adoção de uma economia socialista, o
rompimento de contratos, a estatização dos meios de produção, a reforma agrária
na marra, o calote das dívidas interna e externa, o poder ilimitado dos
sindicatos, as greves etc. -- gerou um clima de total incerteza entre empresários
e investidores estrangeiros, de modo que o resultado não poderia deixar de ser
outro: a economia vivenciou uma crise gravíssima no final de 2002.
Houve fuga de capitais, o câmbio disparou e o dólar
foi a
quase R$ 4. Consequentemente, o
IPCA, por causa da disparada do câmbio, fechou o ano em
12,5%.
Ninguém tinha confiança em nada, pois o futuro
governo não apenas era uma incógnita, como também iria assumir em meio a uma
situação econômica muito delicada.
Mas então o governo Lula surpreendeu a maior parte
do mercado e nomeou uma equipe econômica tida como ortodoxa e conservadora,
liderada por um banqueiro de carreira internacional consagrada, Henrique
Meirelles, e por um médico que era visto como um entusiasta da ortodoxia
econômica, Antonio Palocci.
O resto da equipe econômica era formada
exclusivamente por técnicos, sem nenhum quadro do PT ocupando os grandes
cargos. Nomes renomados como Joaquim Levy (sim, o próprio), Marcos Lisboa e
Murilo Portugal foram pra Fazenda, ao passo que Alexandre Schwartsman, Ilan
Goldfajn e o durão Afonso
Beviláqua (que era o terror dos heterodoxos, pois queria um IPCA próximo de
3%) foram para o Banco Central.
A simples nomeação dessa equipe econômica gerou uma
surpresa positiva.
E quando essa equipe econômica sinalizou claramente que
a política econômica adotada seria baseada no cumprimento de contratos, na liberdade
de preços, em uma política fiscal austera, na elevação do superávit primário
para 4,25%
do PIB (hoje é necessária muita maquiagem contábil pra se
chegar a 0,7%), e em uma política monetária dura e restritiva, que seria
garantida por um Banco Central que teria total autonomia operacional, a
confiança começou a voltar ao mercado.
O processo, no entanto, não foi indolor.
Em 2003, essa equipe econômica fez um ajuste
brutal. Para conter a disparada do IPCA, a taxa SELIC foi elevada
pra 26,50%.
O superávit primário foi de 4,3%
do PIB (acima da meta já alta de 4,25%).
Nos primeiros 6 meses de 2003, que foi o período em
que a SELIC ficou em seu valor mais alto, o consumo doméstico chegou a
cair 11% . E o desemprego foi
para 13%.
Isso, sim, foi austeridade para
espanhol, grego, português, irlandês nenhum botar defeito.
Mas esse ajuste foi tão forte e tão surpreendente --
ninguém esperava isso de um governo de esquerda --, que o mercado reagiu muito
positivamente, tanto investidores e especuladores estrangeiros quanto
empresários e consumidores.
A partir do momento em que houve um ajuste tão
forte, e esse ajuste começou a dar resultado, algumas coisas começaram a
acontecer.
Primeiro, a inflação de preços acumulada em 12 meses
começou a cair rapidamente, indo
de 17% para 5,2% em um ano, sendo este o menor valor desde
1999. A rápida queda na inflação de
preços e o cenário de estabilidade política e econômica geraram a confiança
necessária para o retorno dos investimentos e, por conseguinte, do crescimento
econômico.
Aquela equipe econômica entendia que investimentos
só ocorrem quando, além de um mínimo de estabilidade política, a inflação
de preços é baixa e as contas
do governo estão arrumadas, o que gera previsibilidade e confiança.
Afinal, quando um empreendedor faz um investimento
voltado para o longo prazo -- quando ele decide construir novas instalações ou
ampliar as instalações de sua empresa, ou mesmo quando ele pensa em contratar
mão-de-obra --, é crucial que ele tenha um mínimo de certeza a respeito do
poder de compra da moeda no futuro, que é quando investimento dele estará
pronto e ele começará a auferir as receitas dele.
O mesmo vale para os consumidores. Ao verem que seu orçamento está apertado, que
seu poder de compra está caindo e que não há perspectiva de melhora, eles
acabam sendo obrigados a apertar os cintos e a consumir apenas o essencial.
Quanto ao orçamento do governo, se as contas
estiverem em descalabro, os investimentos inevitavelmente serão afetados, pois os
empresários e investidores sabem que inevitavelmente haverá aumento de impostos
e abolição de isenções para equilibrar o orçamento, o que gerará custos
adicionais para as empresas e mudará totalmente o cenário no qual elas
inicialmente basearam seus planos de investimentos.
Com o ajuste feito em 2003 e a subsequente
estabilização da economia, houve um substancial aumento do investimento,
do crédito e da quantidade de pessoas empregadas, as quais não apenas
expandiram o mercado de consumo interno, como também aumentaram a plataforma
produtora de exportação.
Mesmo no agronegócio, a expansão na maior parte do
período 2003-2011 foi baseada em aumento
de volumes, produtividade e área plantada. Isso também foi fruto da estabilidade, da
confiança e do aumento dos investimentos.
Mas apenas esse ajuste ainda não explica o
crescimento da década.
O
primeiro mistério: o crédito disparou, mas os preços se mantiveram relativamente
comportados
O fenômeno mais notável dessa estabilização
econômica foi o aumento acentuado do crédito, algo até então inédito na
história do real. O crédito disparou
porque o nível de confiança aumentou, fazendo com que consumidores passassem a
consumir mais e empresários voltassem a investir mais.
Eis o gráfico da expansão do crédito, que começa em
1994, logo na criação do real, e vai até o final de 2011.

Gráfico
1: expansão do crédito no até o final de 2011
Observe que é justamente em 2004 que a expansão
adquire um crescimento exponencial
Vale ressaltar, como já inúmeras vezes explicado por
este site, que esse gráfico mostra a quantidade de dinheiro que os bancos
(privados e públicos) estão jogando na economia.
No nosso atual sistema monetário e bancário, o
processo de expansão do crédito gera um aumento da quantidade de dinheiro na
economia. Quando uma pessoa ou empresa pega empréstimo, os bancos criam
dinheiro do nada -- na verdade, meros dígitos eletrônicos -- e simplesmente
acrescentam esses dígitos na conta do tomador do empréstimo.
Ou seja, todo esse processo de expansão de crédito
nada mais é do que um mecanismo que aumenta a quantidade de dinheiro na
economia. Explicar o funcionamento do sistema bancário está fora do
escopo desse artigo (você pode entender todos os detalhes do sistema
bancário neste
artigo), de modo que basta dizer que os bancos, quando
emprestam dinheiro, criam dígitos eletrônicos do nada, e esses
dígitos eletrônicos representam dinheiro.
Esse processo de expansão do crédito afeta os
principais números da economia, como PIB, emprego, renda e inflação de
preços. Um aumento da quantidade de dinheiro na economia, gerado pela
criação de crédito bancário, faz com que, no primeiro momento, enquanto os preços ainda não foram afetados,
aumente o consumo, aumente a demanda por mão-de-obra em todos os setores da
economia, aumente o emprego (na indústria, na construção civil, nos setores de
serviço, varejista e comércio em geral), aumentem os salários, aumente a renda nominal, e aumente os investimentos.
Mas todo esse processo contínuo só dura enquanto os
preços -- tanto dos bens e serviços quanto dos salários -- se mantiverem relativamente comportados. Caso eles comecem a subir forte, e as injeções
de crédito continuem, haverá um aumento ainda mais forte dos preços e dos
salários, podendo levar a um grande descontrole inflacionário.
Normalmente, antes de se chegar a esse ponto, o
Banco Central -- que trabalha com metas de inflação -- atua para conter a
escalada dos preços. E ele faz isso
subindo os juros para desacelerar essa expansão do crédito e, tão importante
quanto, para alterar as expectativas inflacionárias das pessoas, fazendo com
que os formadores de preço -- dentistas, encanadores, advogados, mecânicos,
indústrias e comércio -- incorporem essa expectativa de que a inflação será
controlada e, consequentemente, parem de reajustar seus preços baseando-se
nessas expectativas.
Mas o que realmente chama a atenção no período
2004-2011 é que o crédito disparou, a taxa básica de juros (SELIC) controlada
pelo Banco Central desabou (de
um máximo de 26,50% para um mínimo de 8,75%), e os preços se mantiveram
relativamente comportados, com o IPCA acumulado em 12 meses chegando a bater em
2,97% no início de 2007, mesmo com a exponencial expansão do crédito mostrada
no gráfico acima.

Gráfico
2: evolução do IPCA acumulado em 12 meses, de 2003 a 2010
Foi a primeira vez na história do real que isso
aconteceu -- crédito se expandindo exponencialmente e preços se desacelerando
também fortemente.
Aliás, foi a primeira vez desde
1914 que isso aconteceu.
Embora seja verdade que a estabilidade da economia à
época -- para ficar numa expressão muito cara aos economistas ortodoxos --
tenha ajudado o Banco Central a "ancorar as expectativas inflacionárias dos
agentes econômicos", apenas isso não explica esse descompasso entre, de um
lado, expansão exponencial do crédito, salários
crescentes e produtividade
baixa e, de outro, inflação de preços decrescentes.
Qual o elemento que fecha essa equação aparentemente
desequilibrada?
A
guerra no Iraque
Foi em março de 2003 que o governo americano iniciou
a invasão do Iraque para derrubar Saddam Hussein. Uma incursão militar que aparentemente seria
rápida -- a última operação militar americana realizada no Iraque, a Tempestade
no Deserto, iniciada em janeiro de 1991, durou menos de 2 meses -- acabou
se estendendo por quase uma década e custando, tanto financeiramente quanto humanamente,
muito mais do que o inicialmente estimado.
E daí?
E daí que, se há algo que a história comprova, é que
guerras são péssimas para a moeda dos países envolvidos. Guerras geram enormes custos militares e
extra-orçamentários, os quais são cobertos majoritariamente via endividamento
do governo e inflação monetária. O
próprio Império Romano teve sua derradeira queda precipitada pela
adulteração de moeda. Rússia
e Ucrânia vivenciaram um derretimento de suas moedas ao entrarem em conflito recentemente.
Os EUA também não escapam dessa lei econômica. Sua moeda pode não se desintegrar por
completo, é claro; porém, enquanto durar o conflito e enquanto este for
intenso, a moeda sofre.
As
consequências sobre o dólar
Até 2002, o dólar vinha de duas décadas de
inabalável robustez. Em 2002, porém, ele
começa a perder força, muito provavelmente por causa do início do confronto no
Afeganistão (causado, por sua vez, pelos atentados de 11 de setembro). A partir de 2003, com a invasão do Iraque, o
dólar entra em queda livre perante todas as outras moedas do mundo.
O gráfico abaixo -- que mostra a evolução do dólar
em relação a uma cesta formada pelas principais moedas mundiais -- mostra o que
aconteceu.

Gráfico
3: evolução do valor do dólar perante uma cesta contendo as principais moedas do
mundo
Repare que é justamente no período 2003-2011 que o
dólar segue em contínuo declínio, chegando à sua mínima em meados de 2011,
recuperando-se a partir de 2012, e fortemente a partir de meados de 2014.
A evolução do preço do ouro em relação ao dólar
conta a mesma história. Foi em 2003 que
a coisa começou a degringolar. O gráfico
a seguir mostra a evolução do preço de uma onça (31,1 gramas) de ouro em
dólares:

Gráfico
4: preço, em dólares, de uma onça de ouro
Nesse mesmo período, 2003 a 2011, o dólar se
desvalorizou acentuadamente em relação a todas
as moedas do mundo.
Veja nesses links a desvalorização do dólar em
relação ao franco
suíço, à libra
esterlina (vale ressaltar que o Reino Unido também entrou na guerra no
Iraque), ao euro,
ao dólar
canadense, ao dólar
australiano, ao peso
chileno, ao peso
colombiano, ao sol
peruano.
E veja aqui a desvalorização do dólar em relação ao
real.

Gráfico
5: evolução da taxa de câmbio real/dólar
Agora compare a evolução do câmbio acima com a
evolução do IPCA abaixo, no mesmo período.

Gráfico
6: IPCA acumulado em 12 meses, de 2000 a 2015
Nota-se que, de 2003 até 2010, a contínua
valorização do real em relação ao dólar -- ou, dito de outra forma, a contínua
desvalorização do dólar perante o real -- ajudou, e muito, a conter a pressão
nos preços exercida pela expansão do crédito, pelo aumento da renda e pela
baixa produtividade.
Ou seja, de um lado, o crédito se expandia e isso
fazia com que a renda, o emprego e o consumo crescessem; de outro, como o preço
do dólar caía continuamente, isso fazia com que todos os produtos importados,
bem como todos os produtos nacionais cuja produção utilizasse insumos com
componentes importados, não subissem de preço.
E esse impacto do dólar é muito maior do que muitos
imaginam. Os
preços dos remédios (85% da química fina é importada), do
pão (o trigo é uma commodity precificada em dólar e é majoritariamente
importada), das passagens aéreas (querosene é petróleo, e petróleo é cotado em
dólar), das passagens de ônibus (diesel também é petróleo), de todos os
importados básicos (de eletroeletrônicos e utensílios domésticos a roupas e
mobiliários) e até mesmos os preços dos aluguéis e das tarifas de energia
elétrica (ambos são reajustados pelo IGP-M, índice esse que mensura commodities
e matérias-primas, ambas sensíveis ao dólar) são afetados pelo dólar.
Também os preços dos alimentos, especialmente as
carnes bovina e suína, sofrem impacto direto do dólar. O farelo de soja, por exemplo, é utilizado
como ração para bovinos e suínos, e a soja é uma commodity cotada em
dólar. Se o dólar fica mais barato, os
custos dos pecuaristas para alimentar seus animais ficam mais contidos, o que
diminuiu a pressão por repasses de preços.
Ou seja, se o dólar fica continuamente mais barato, não
há pressão altista sobre todos esses itens supracitados. Consequentemente, a expansão do crédito pode
durar mais tempo sem gerar carestia generalizada. A renda real
das pessoas cresce em decorrência do fato de a expansão do crédito estar
gerando um aumento da renda nominal sem um proporcional aumento dos preços.
Nesse cenário, apenas o setor de serviços -- que não
sofre concorrência externa e que sofrerá um forte aumento de demanda justamente
por causa da elevação da renda real das pessoas -- tem mais liberdade para
aumentar preços. E foi exatamente
isso o que aconteceu.
O
dólar em contínuo enfraquecimento ajudou enormemente a economia brasileira -- e
também o governo
Podemos especular sobre as reais causas do
enfraquecimento do dólar.
Teria sido apenas a guerra no Iraque?
Teria sido a guerra no Iraque em conjunto com a
forte expansão do crédito ocorrida nos EUA nesse mesmo período, a qual aditivou
a bolha imobiliária no país?
Teria a bolha imobiliária sido causada justamente
pela desvalorização do dólar em decorrência da guerra no Iraque? Isso é bem possível. Como explicou Mises, uma desvalorização da
moeda tende a gerar uma corrida para ativos reais, que e isso pode ter levado à bolha imobiliária americana. As pessoas pegavam empréstimos, compravam imóveis e revendiam a preços ainda
maiores. Há quem sustente essa tese de que a bolha imobiliária americana
nada mais foi do que uma inevitável reação das pessoas à desvalorização do
dólar causada pela guerra no Iraque.
O fato inconteste, no entanto, é que, quaisquer que
tenham sido suas causas, a desvalorização do dólar está por trás de todo o boom
econômico vivenciado não só pelo Brasil, mas por toda a América Latina na
década de 2000.
Em períodos normais -- isto é, quando o dólar está
forte e estável --, expansões do crédito nos países periféricos tendem a
rapidamente gerar carestia, pois tais expansões, além de aumentarem a
quantidade de dinheiro na economia, também geram desvalorizações na taxa de câmbio,
o que rapidamente obriga os bancos centrais a subirem os juros e abortarem essa
expansão do crédito.
Porém, se uma expansão do crédito for acompanhada de
uma apreciação da taxa de câmbio -- isto é, de uma desvalorização do dólar --, a
carestia fica bem mais contida, permitindo assim que a expansão do crédito dure
mais tempo e eleve continuamente a renda, o emprego e o consumo, e sem gerar
grandes pressões nos preços.
Esse, aliás, é o melhor dos cenários: renda, emprego
e consumo aumentam continuamente, mas os preços ficam contidos, o que permite
que tal ciclo dure muito mais tempo do que duraria em "épocas normais".
Mais ainda: com uma contínua expansão do crédito, as receitas do governo também aumentam. Como há mais dinheiro sendo criado, e os
preços estão bem comportados por causa do dólar, as pessoas consomem mais, os
empresários investem mais e empregam mais, e a renda de todos aumenta. Consequentemente, o governo arrecada mais
impostos (tanto sobre a renda quanto os indiretos) e pode se dar ao luxo de
aumentar seus gastos, inclusive o salário do funcionalismo público.
Lula surfou, e muito, nesse cenário.
Um
rápido comentário sobre o boom das commodities
Quem também se deu muito bem com a desvalorização do
dólar foram as mineradoras.
Há muita confusão a respeito do boom das commodities
ocorrido na década passada. Sim, a China
influenciou bastante, mas o papel do dólar foi decisivo. O boom das commodities
está intimamente ligado ao dólar fraco.
Todas as commodities (de minério de ferro a petróleo)
são precificadas em dólar. Sendo assim,
sempre que o dólar está fraco, os preços das commodities estão em alta, e
vice-versa. Sempre.
O boom das commodities (principalmente minério e
petróleo) na década de 2000 foi "auxiliado" pelo enfraquecimento do dólar. E o atual "arrefecimento" das commodities
também está ligado ao fortalecimento do dólar. O gráfico do dólar em relação ao ouro, mostrado acima, ilustra
perfeitamente esse fenômeno.
E como as receitas e as dívidas das mineradoras são
cotadas em dólar, elas sofrem diretamente esse ciclo econômico gerado pela
flutuação do valor do dólar: o enfraquecimento do dólar gera um aumento nos
preços do minério, e isso leva as mineradoras a expandirem seus investimentos. Tão logo o dólar se fortalece,
as commodities caem de preço e todos esses investimentos expansivos se revelam
errôneos. E então cortes de custos --
demissões -- são feitos.
A Vale
está passando por isso. As petrolíferas
americanas também.
O
melancólico fim
Tudo o que se baseia em fundamentos flácidos irá
eventualmente desabar. No caso
brasileiro, tão logo o dólar começou a se fortalecer em 2012 (vide gráficos 3 e 4), todo o arranjo se
esfacelou.
Aquela aparentemente mágica capacidade do governo
Lula de fazer com que renda e emprego aumentassem contínua e duradouramente sem
gerar carestia foi desmascarada. Tal
cenário não mais existe. E nada indica
que ele voltará tão cedo.
Por si só, um aumento do dólar já seria o suficiente
para desarranjar toda a economia. Porém,
os efeitos desse aumento do dólar foram intensificados pelas políticas
implantadas pela pavorosa "Nova Matriz Econômica",
a qual surgiu ainda no final de 2008, mas que foi acentuada no governo Dilma
Rousseff.
Sem a Nova Matriz Econômica, a grande expansão do
crédito teria gerado "apenas" endividamento das pessoas (por causa do crédito
farto e barato) e investimentos errados (os quais se revelariam
sobredimensionados tão logo a carestia se manifestasse, a renda real estagnasse
e ficasse comprovado que não havia demanda para tais investimentos).
Com a Nova Matriz Econômica, porém, os desarranjos
foram amplificados. Além do endividamento
recorde e dos investimentos
errôneos das indústrias, tivemos também disparada nos preços da gasolina
e da energia
elétrica, grande queda
na renda real das pessoas, pedaladas
fiscais e desarranjo
nas contas do governo, perda do
grau de investimento, e uma disparada
ainda mais intensa do dólar, o que está causando uma carestia generalizada.
(Veja tudo isso, em detalhes, aqui).
Os contínuos aumentos dos gastos do governo durante a
era Lula -- os quais foram possibilitados justamente pela expansão do crédito e
do dólar fraco -- e que foram amplificados pelas pedaladas
fiscais do governo Dilma, estão agora cobrando seu preço. Com as subidas
dos juros efetuadas pelo Banco Central, a expansão do crédito desacelerou, levando
consigo a renda, o emprego e os salários. Consequentemente, a arrecadação
do governo também caiu.
Dilma partiu do princípio de que poderia continuar
aumentando os gastos no mesmo ritmo de Lula. Mas as receitas do governo secaram. Agora, ela convocou toda
a população para pagar a conta de suas pedaladas fiscais e da esbórnia
fiscal herdada do governo Lula.
Em simultâneo a tudo isso, há um grande caos no
cenário político: Dilma está ameaçada de impeachment por ter se elegido com o
dinheiro desviado da Petrobras (segundo os delatores Ricardo Pessoa, Fernando Baiano, Pedro Barusco e Alberto Youssef) e também por ter feito as já famosas pedaladas
fiscais no primeiro mandato, o que configuraria crime de responsabilidade
fiscal.
E, por se
tratar de fatos que envolvem a campanha eleitoral, o então candidato à
vice-presidência e atual ocupante do cargo, Michel Temer, também pode ser
engolfado pelas denúncias.
Mas não
pára por aí: os sucessores diretos da presidente da República — que são o
presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, e o do Senado Federal, Renan
Calheiros — também estão envolvidos em inquéritos no STF, e podem ser
igualmente derrubados.
Ou seja,
simplesmente não se sabe quem sobrará inteiro.
Tudo isso fez o dólar
disparar, ironicamente levando o país a viver um cenário exatamente oposto
ao da década passada.
Conclusão
Foi o
dólar quem nos entregou uma quimera que durou quase 10 anos, e é ele quem está
agora nos trazendo -- e sem delicadezas -- de volta à realidade.
Nesse atual arranjo de dólar em disparada e de
governo totalmente incapaz de cortar seus gastos, a
única maneira de o Banco Central entregar uma inflação de preços relativamente
tolerável é gerando uma brutal recessão (por meio de juros crescentes) que
eleve acentuadamente o desemprego, reduza salários e acabe com a demanda.
Em um cenário de dólar em disparada e de esbórnia
fiscal, não há como conter uma carestia sem ser por meio de recessão,
desemprego e queda na renda. Apenas essa
conjunção de fatores pode impedir um grande repasse cambial aos preços.
Obviamente, nesse cenário, as empresas e os
empreendedores ficam asfixiados. Eles pagam
cada vez mais caro pelas importações, mas não podem repassar esses custos para
os preços. Consequentemente, eles vão se
tornando cada vez mais descapitalizados, o que afeta sua capacidade de
investimento e de contratação de mão-de-obra.
Desnecessário dizer que tal cenário também não ajuda
em nada quem está endividado e desempregado.
No final, toda a economia foi destruída pelo
governo. É o preço do descalabro, o qual
foi possibilitado por uma conjuntura externa atípica e que foi erroneamente
interpretada à época. Confundiu-se moeda
estrangeira fraca com prosperidade nacional eterna, e concluiu-se que os bons resultados
obtidos dispensavam o governo de obedecer às irrevogáveis leis da economia. Gastos foram elevados e nenhuma reforma
estrutural foi feita.
O mesmo é válido para a América Latina. Não fosse o dólar, não teria como tais países
apresentarem
bons números apenas na base do populismo.
Tal cenário de bonança pode se repetir? Poder, pode. Caso o próximo presidente dos EUA seja um belicista que enfie o país em
novas aventuras militares, ou seja um trapalhão econômico que invente novas
heterodoxias, é bem possível. Mas é bom não
contar com isso.
Impeachment ajuda? Ajuda muito. Mas se chegamos ao ponto
em que a única solução viável é o impeachment, então o estrago foi profundo e não
será corrigido com uma simples mudança no líder do executivo.
Quanto a Lula, embora tenha o mérito de ter montado
uma boa equipe econômica no seu primeiro mandato, ele deve boa parte de sua
popularidade à dupla Bush-Hussein.
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Leia também:
O trágico legado da "Nova Matriz Econômica" - um resumo cronológico (com dados atualizados)
O desastre da economia brasileira e o gigantesco buraco fiscal do governo