Que
o comunismo europeu estava fadado ao fracasso ninguém deste lado do Kremlin
parece discordar.
Mas,
há 30 anos, a velocidade com que as revoluções começaram a redefinir o leste
europeu pegou especialistas ocidentais de surpresa. Eles não enxergavam que,
por trás da cortina de ferro, os colapsos comunistas já duravam décadas.
1.
O colapso moral da ideologia
Vaclav
Havel descreveu a experiência atrás da cortina de ferro como uma
vida dentro da mentira. Muitas vezes repetida, talvez a mentira vire verdade,
mas na repetição infinita o eco se esvazia de qualquer significado.
Quando
um comerciante, dizia Havel, pendurava na vitrine da sua loja uma placa dizendo
"trabalhadores do mundo, uni-vos!", seu ato não era movido por convicção e
proselitismo. Era um ato de costume, de obediência, de coerção.
Para
Havel, seria mais honesto que a placa dissesse, "eu tenho medo e portanto sou
inquestionavelmente obediente".
Os
hinos e peças socialistas pregavam uma sociedade fraterna, mas vizinhos se
enxergavam como competidores por alimentos e roupas num regime de escassez
material. A desconfiança torna-se generalizada quando toda pessoa com quem você
interage é um potencial agente secreto.
Sob a promessa de prosperidade igualitária, os poloneses
moradores das montanhas Bieszczady foram desapropriados para que 60 mil
hectares pudessem ser usados como terreno de caça da elite partidária.
Enquanto
o cidadão romeno não tinha acesso a bens básicos, o cachorro de Nicolae
Ceaucescu comia
biscoitos importados da Inglaterra e sua família desfrutava de 15 palácios
espalhados pelo país.
Até
para o trabalhador de Berlim Oriental, no país com as melhores condições de
vida dentro do bloco comunista, ficava difícil acreditar na ideologia da igualdade quando
ao norte se via a elite governante vivendo em Waldsiedlung, com direito a
restaurantes, cinema, academia e complexo esportivo dentro de seu condomínio
fechado. E a oeste se via seus primos com salários 5 vezes maiores.
Na
Checoslováquia de Havel e nos países vizinhos, a história da revolução se
repetia nos ouvidos como farsa.
2.
O colapso tecnológico da censura
Em
1948, o governo soviético permitiu que os cinemas exibissem As Vinhas da Ira.
Baseado no romance homônimo de John Steinbeck, o filme retratava o sofrimento
da classe trabalhadora americana durante a Grande Depressão. Não passou muito
tempo e o partido decidiu suspender
o filme. Os soviéticos saíam do filme impressionados com o fato de que, nos
Estados Unidos, até os pobres trabalhadores possuíam automóveis.
Quarenta
anos mais tarde, quando os filmes passaram das salas de projeção para fitas
VHS, o controle social se tornou mais difícil. Com a personalização tecnológica
dos anos 1970 e 1980, videocassetes e walkmen permitiam que a abundância
ocidental fosse testemunhada por um número maior de pessoas. Imagine assistir às
lamentações dos personagens de Cheers quando se tem que acordar de
madrugada para ficar na
fila do leite.
Como
escreveu o cientista político Tom Palmer, que nos anos 1980
contrabandeou eletrônicos para dentro da União Soviética, "talvez os heróis
silenciosos das revoluções de 1989 tenham sido Sony e Mitsubishi".
3.
O colapso econômico do império
Economistas
ocidentais passaram décadas sob a ilusão de que a economia soviética crescia em alta velocidade comparada às
economias ocidentais. O manual de economia mais lido do século XX, de Paul
Samuelson, projetava a possibilidade de a economia soviética ultrapassar a
americana pela virada do século:

Mas
em vez de criar riqueza, os soviéticos gastavam em produção conspícua:
produziam por produzir, para mover indicadores econômicos em vez de para
satisfazer demandas dos consumidores.
Sim, a URSS tinha satélites, foguetes e tanques. Só que, exatamente para poder ter essas coisas desnecessárias, sua economia era incapaz de produzir outras muito mais essenciais. Havia foguetes, mas não havia geladeiras, carros, fogões, máquinas de lavar e nem sapatos. As pessoas tinham de ficar em filas humilhantes para deixar seu nome numa lista para, dali a vários meses (ou anos), conseguir um sapato do governo.
No socialismo é assim: ou você imobiliza matéria-prima em foguetes e tanques, ou em fogões, geladeiras, carros e máquinas de lavar. É impossível ter os dois ao mesmo tempo.
O
colapso econômico soviético serviu para legitimar o trabalho
dos economistas Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Sem um sistema de preços,
alertavam, uma economia centralmente planejada não possuía o conhecimento e os
incentivos para a organização econômica racional.
A
manutenção de um império também tem um alto custo. Durante o expansionismo
britânico, por exemplo, o dinheiro que saía do tesouro para a manutenção das
colônias era maior do que o retorno em tributos. Também
para os soviéticos, o custo de manutenção de um leste europeu ocupado incluía
uma crescente despesa com a repressão de dissidentes, incluindo gastos
militares com armas, soldados e espiões. A Perestroika, lançada como um
salva-vidas para o afogamento da economia soviética, acabou como sua lápide.
4.
O colapso ambiental da indústria
Em
1990, os ambientalistas ocidentais começaram a noticiar o tamanho da tragédia dos comuns sobre
a população russa:
Cerca
de 40% dos cidadãos vivem em áreas onde a poluição do ar excede de três a
quatro vezes o limite máximo permitido. O saneamento é primitivo. E onde
existe, por exemplo em Moscou, não funciona adequadamente. Metade de todo o
lixo sanitário da capital não é tratado.
Em
Leningrado, quase metade de todas as crianças têm doenças intestinais em
decorrência de beberem água contaminada daquilo que um dia já havia sido o
abastecimento mais puro da Europa.
A
candidatura ao prêmio de local mais poluído do mundo é um dos trágicos legados
da União Soviética. Hoje banhado de concreto, o lago Karachai nos montes Urais tornou-se o lixão radioativo
de uma das maiores fábricas soviéticas de armamento nuclear. De 1951 a
1968, o despejo de resíduos nucleares enxugou o lago para um terço do seu
tamanho original. Ao ser dispersada pelo vento, a poeira radioativa do Lago
Karachai contaminou os arredores envenenando cerca de meio milhão de pessoas.
Por isso decidiu-se cobrir o lago com 10 mil blocos de concreto oco.
Quando
Boris Yeltsin permitiu a presença de cientistas ocidentais no local, no início
da década de 1990, noticiou-se que o nível radioativo nas margens do lago ainda
era de 600 röntgens por hora, o suficiente para matar um turista desavisado em
trinta minutos.
Seu
professor de geografia deve ter lhe ensinado que o capitalismo moderno deixa um
rastro de poluição e devastação ambiental por onde passa. Talvez ele tenha
deixado de mencionar que a
existência de propriedade privada é o melhor mecanismo para responsabilizar a
degradação ambiental. Como o industrialismo soviético operava fora de um
regime de propriedade privada, não havia mecanismos de responsabilização
ambiental.
Os
custos de poluir e desmatar não eram internalizados. Para alcançar as metas
anuais de produção, por exemplo, os coletivos usavam de qualquer meio
disponível. A União Soviética foi a maior responsável pelo abatimento de baleias no século
passado, superando Japão e Noruega, mesmo que seu aproveitamento fosse menor
que o dos outros países. Enquanto no Japão se aproveitava 90% do corpo de uma
baleia, na URSS, se aproveitava apenas 30%. Mas o importante é que as metas eram
atingidas.
Conclusão
Ninguém,
de nenhum dos lados de Berlim, acordou no dia 9 de novembro de 1989 planejando
a abertura do muro, lembra Mary Elise Sarotte em The
Collapse: The Accidental Opening of the Berlin Wall.
Dez
dias antes da queda do muro de Berlim, ainda havia gente morrendo tentando alcançar o
outro lado da cidade. Foi um mal entendido da fala na TV de Günter
Schabowski, membro do Politburo, que levou os alemães a acreditarem na abertura
do muro.
Durante
décadas, no entanto, os graduais colapsos do socialismo já vinham minando o que
seria o súbito colapso de tijolos e regimes.
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