Dentre
as várias notícias oriundas de todas as partes do mundo sobre recessão, novos
bombardeios aéreos, tentativas de secessão e mudanças climáticas, a questão do
comércio internacional -- o qual, em 2008, passou pela maior crise da sua
história -- tem estado majoritariamente fora do radar.
No
entanto, essa ausência de debate não deve gerar nenhuma preocupação, pois,
segundo nos dizem, a Organização Mundial do Comércio -- o mais proeminente órgão
global na promoção do comércio multilateral, dirigida
pelo brasileiro Roberto Azevêdo -- permanece atenta e vigilante, e está otimista
de que os esforços para a liberalização do comércio gerarão frutos no futuro
próximo.
Lamentavelmente,
o otimismo da OMC não se justifica: a Rodada de Doha, que começou em 2001 e que
tinha o intuito de discutir a ampliação do livre comércio mundial, não se
concretizou após longos 13 anos, e não há êxito nenhum a ser mostrado.
Procurando
atender às preocupações e exigências dos países menos desenvolvidos em relação
à liberalização do comércio, a Rodada de Doha deveria culminar em 2005 com um
novo acordo comercial. O acordo deveria
envolver uma redução nas tarifas de importação sobre commodities e sobre
serviços, bem como um novo arcabouço internacional para os direitos de
propriedade intelectual.
Porém,
tão logo as negociações começaram, tanto os governos dos principais países em
desenvolvimento -- Índia, Brasil, China e África do Sul -- quanto organizações
não-governamentais (ONGs) reclamaram que tais acordos internacionais impediriam
que seus respectivos governos adotassem políticas protecionistas para blindar
seus setores e suas indústrias (supostamente ainda em desenvolvimento), bem
como dificultariam a regulação de serviços financeiros.
Após
o fracasso da Conferência Ministerial de Cancun em 2004, os defensores dos
acordos internacionais começaram a se preocupar com a hipótese de que Doha não
fosse completada dentro do seu prazo original.
Ainda assim, mantiveram as esperanças de que as negociações
continuariam. No entanto, as negociações
chegaram a um impasse em 2006, 2009 e 2011, majoritariamente por causa de
discordâncias sobre as políticas agrícolas.
Os EUA e a União Europeia chegaram até mesmo a revogar acordos firmados
anteriormente sobre uma redução aos seus subsídios agrícolas e às suas exportações,
argumentando que não queriam enfraquecer suas posições de barganha na Rodada.
Desde
então, tentativas de reconciliar divergências entre os países foram em
vão.
No
entanto, em dezembro de 2013, novos ventos pareciam empurrar a Rodada de Doha
para direções mais favoráveis. A
Conferência Ministerial de Bali, a qual foi concluída com a assinatura de um
pacote de acordos sobre o recolhimento de tarifas alfandegárias e com a
divulgação de uma agenda de desenvolvimento, foi proclamada como tendo "alcançado aquilo
que muitos acreditavam ser impossível": fez com que todos os 160 membros da
OMC concordassem pela primeira vez em doze anos.
Porém,
ainda que o pacote de Bali não tivesse muito a ver com livre comércio -- o
acordo facilitava o recolhimento, mas não a redução, de tarifas alfandegárias
--, o acordo, até de julho de 2014, ainda não foi assinado por todos os
membros. A Índia vetou a ratificação do
acordo para ganhar mais poder de barganha para seu programa de subsídios aos seus
alimentos domésticos. A Reuters
anunciou que "os diplomatas em Genebra se disseram 'estupefatos', 'atônitos',
'decepcionados', e descreveram a posição da Índia como 'suicida' e típica de
quem quer 'fazer reféns'."
O
fato é que ninguém, muito menos articulistas econômicos, deveria se surpreender
com esse impasse. Ele é da própria
essência da Organização Mundial do Comércio.
O que é a OMC
Entender
a OMC requer uma percepção um tanto contra-intuitiva: embora a entidade se diga
uma proponente do livre comércio, ela na realidade representa a maior ameaça ao livre comércio.
Como
todas as burocracias, a OMC está majoritariamente preocupada em expandir seus
poderes e sua jurisdição, o que significa que ela não tem nenhuma objeção em
fazer do comércio internacional um veículo para a imposição de "direitos
trabalhistas" universais e de regulamentações ambientalistas paralisantes. A simples ideia do livre comércio clássico, o
qual não requer nenhum controle centralizado, é a verdadeira vítima da OMC.
A
OMC não passa de uma assembléia de governos que, por meio de seus burocratas
representantes, brigam entre si para ver quem irá efetivamente controlar os
formidáveis poderes da entidade e, com isso, intermediar contendas comerciais e
impor sanções. Todos os países membros
-- tanto os desenvolvidos quanto os em desenvolvimento -- querem o poder de nomear
juízes que irão burlar as regras em benefício de suas próprias indústrias e
contra os concorrentes externos.
Neste
cenário, quaisquer promessas sobre "abrir as fronteiras para o comércio
internacional" são meras palavras ao vento.
Um genuíno livre comércio e uma genuína concorrência externa iriam
solapar o poder dos grandes empresários que fazem lobby para que os burocratas
da OMC defendam seus interesses. Um
genuíno livre comércio e uma genuína concorrência externa iriam driblar e
abolir toda essa estrutura de intervenção governamental.
Um genuíno livre comércio
O
livre comércio não requer tratados. Tudo o que ele necessita é que se removam
(unilateral ou multilateralmente) todas as barreiras artificiais ao comércio: a
Inglaterra fez isso em meados do século XIX, Hong Kong o fez em
meados do século XX. Para se ter uma
ideia, em 1879, a Constituição dos Estados Unidos usou apenas 54
palavras para estabelecer o livre comércio entre os estados. Já o NAFTA, o
acordo de "livre" comércio entre o Canadá, o México e os EUA tem duas
mil páginas, novecentas das quais se referem unicamente a tarifas.
O
tamanho mastodôntico desses acordos de comércio, com suas miríades de
estipulações e controles -- tais como regras sobre a origem e a correspondente
inspeção de produtos, exigências de verificação, e a interferência em assuntos
soberanos, como leis trabalhistas -- desvirtuam completamente seu nome.
Acordos
de comércio vêm sempre cheios da palavra "exceção". Aqueles que sabem manusear suas influências
políticas por meio de grupos de interesses sempre recorrem a
"favores" para se protegerem da concorrência externa. Em vez de livre comércio, o que esses acordos
criam é um sistema de comércio dirigido e manipulado, além de -- como era de se
esperar -- muitos, caros e inúteis empregos para burocratas, empregos estes que
só servem para destruir a riqueza dos países envolvidos.
Supervisionar
e controlar o comércio entre dois países faz tanto sentido econômico quanto
supervisionar e controlar o comércio entre os estados de um mesmo país.
Acordos
comerciais têm também outras implicações prejudiciais. Eles discriminam importações de baixo custo de
países que não fazem parte do tratado. O
comércio com estes países é ignorado em prol de fornecedores que, apesar de
serem mais caros, gozam de isenções fiscais, pois pertencem a países
signatários do acordo. E parte da
receita tributária de que o governo abriu mão por causa do uso de isenções
tarifárias acaba se transformando em renda para o bolso do fornecedor
privilegiado.
Políticos
que falam em livre comércio estão iludindo o eleitorado. Várias indústrias de seus respectivos países
entrariam em colapso caso as importações estrangeiras fossem totalmente
liberadas.
Qualquer
indivíduo que realmente tenha a paciência de ler, na íntegra, os acordos
comerciais atuais não se surpreenderia em descobrir que eles se concentram cada vez menos na redução das tarifas de
importação e cada vez mais no "desenvolvimento da indústria nacional", na
promoção de exportações, e na afirmação de uma política doméstica. Seu verdadeiro propósito -- um protecionismo
discreto -- é ocultado por termos vagos como "comércio mais livre e mais
justo", "liberalização gradual", "concessões recíprocas" e "pacotes de
desenvolvimento".
No
entanto, os benefícios do comércio internacional não estão na moderação e no
grau de reciprocidade. Uma genuína
política de livre comércio seria a abolição de toda e qualquer barreira
comercial, e esse deve ser o objetivo unilateral de todo e qualquer país. Se os mercados fossem libertos da mão pesada
dos governos, o livre comércio internacional seria o resultado automático e
inevitável.
Até
o início do século XX, o comércio entre as nações funcionava sem a intervenção
de um organismo legalmente nomeado para ser o arbitrador dos termos do
comércio. É verdade que, em algumas
ocasiões, os governos impunham pesadas restrições às importações e às
exportações, mas as contendas eram majoritariamente solucionadas pelos próprios
agentes envolvidos na transação. A Lex mercatoria regulava os contratos, ao
passo que confiança, reputação e soberania do consumidor eram as forças autônomas
que mantinham todos honestos.
A
grande constatação dos liberais clássicos britânicos foi justamente a de que o
comércio não precisava ser controlado nem domesticamente e nem
internacionalmente. Consumidores e
produtores, independentemente de em que país viviam, eram capazes de negociar
seus próprios acordos, ao passo que tarifas e outras barreiras comerciais não
apenas prejudicavam os produtivos e eficientes, como beneficiavam apenas os
incompetentes. Por isso, os liberais
clássicos defendiam a eliminação de todas as restrições sobre o comércio, e se
opunham a todo e qualquer tipo de gerenciamento governamental do comércio.
Mas
os governos não gostam desse sistema justamente porque ele os deixa de fora do
esquema. É por isso que, desde o início
do século XX, os governos se organizaram para criar uma estrutura internacional
para gerenciar o comércio global.
Conclusão
A
economia mundial está hoje mais integrada do que jamais esteve, e a isso
devemos uma grande parte de nossa atual prosperidade. Ao mesmo tempo, o comércio mundial nunca
esteve tão politizado.
Nunca
antes na história do mundo os sindicatos, os ambientalistas e os reformistas
sociais tiveram o poder que têm hoje para impor sua agenda sobre o comércio
internacional. Nunca antes os governos
protecionistas -- e os EUA são um dos principais -- tiveram tamanho acesso ao
litígio e à intervenção. Nunca antes uma
economia em desenvolvimento como a China teve de se rastejar perante um cartel
de governos apenas para ser admitida no arranjo do comércio mundial.
A
OMC, assim como qualquer organismo burocrático global, não é nenhuma aliada de
uma ordem econômica internacional genuinamente liberal. Há uma inerente incompatibilidade entre livre
comércio e um crescente controle governamental sobre o comércio. Quanto mais um país se envolve com organismos
internacionais voltados para a "promoção" do livre comércio, mais ele se fecha
ao comércio estrangeiro.
Apenas
duas coisas são necessárias para que haja um genuíno livre comércio: um sistema
monetário sólido e total liberdade de empreendedorismo.
Por
isso, uma genuína política de livre comércio deve começar pela abolição da OMC.
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Leia
também:
A filosofia da miséria e o
novo nacional-desenvolvimentismo do governo brasileiro
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Participaram deste artigo:
Lew Rockwell, chairman e CEO do Ludwig von
Mises Institute, em Auburn, Alabama, editor do website LewRockwell.com, e autor dos livros Speaking of Liberty e The Left, the Right, and the State.
Carmen Dorobat, pós-doutoranda
em economia na Universidade de Angers e professora na Bucharest Academy of
Economic Studies.
Manuel Ayau, (1925 --
2010), foi acadêmico, intelectual e empresário da Guatemala. Era engenheiro mecânico e foi o fundador do Centro de Estudios Económico-Sociales (CEES),
da Universidad Francisco Marroquín e de outras instituições dedicadas à difusão
do liberalismo clássico.