Sempre
que a questão da dissolução do estado é levantada, há duas objeções que
inevitavelmente surgem.
A
primeira objeção é aquela que diz que uma sociedade livre e sem estado só seria
possível se absolutamente todas as pessoas fossem perfeitamente boas e
racionais. Em outras palavras, isso
significa que os cidadãos de hoje devem ser submetidos a um estado
centralizador e detentor do monopólio da violência porque existem pessoas ruins
no mundo.
O
primeiro e mais óbvio problema com este argumento é que, se existem pessoas
ruins na sociedade, então inevitavelmente também
haverá pessoas ruins dentro do estado -- e, consequentemente, tais pessoas
serão ainda mais perigosas.
Em
um arranjo sem estado, os cidadãos são capazes de se proteger de indivíduos
malvados; porém, se estes indivíduos malvados agora estiverem no controle de um
aparato estatal agressivo, detentor do monopólio da violência, armado até os
dentes e com um grande poderio policial e militar, tais cidadãos não terão a
mais mínima chance.
Logo,
o argumento de que precisamos do estado porque existem pessoas malvadas é
inerentemente falacioso. É justamente
por existirem pessoas malvadas que o estado tem
necessariamente de ser desmantelado, uma vez que tais pessoas malvadas
serão tentadas a utilizar o poder do estado para alcançar seus próprios
objetivos -- e, ao contrário dos ladrões e assaltantes comuns, pessoas malvadas
no comando de um aparato estatal usufruirão do poderio policial e militar para
impor seus caprichos sobre uma população indefesa e compulsoriamente desarmada.
Por
uma questão de lógica, há quatro possibilidades quanto à combinação de pessoas
boas e más no mundo:
1. Todos os indivíduos são morais
2. Todos os indivíduos são imorais
3. A maioria dos indivíduos é imoral, e uma minoria é moral
4. A maioria dos indivíduos é moral, e uma minoria é imoral
(Um equilíbrio perfeito entre bem e mal é estatisticamente
impossível)
Analisemos
cada um destes casos.
1. Quando todos os indivíduos são morais
Neste
primeiro caso, o estado é obviamente desnecessário, dado que não há como
existir o mal.
2. Quando todos os indivíduos são imorais
Neste
segundo caso, não se pode permitir que o estado exista, e por um motivo muito simples. Como geralmente se argumenta, o estado tem de
existir porque há no mundo pessoas más que querem fazer maldades e que só podem
ser contidas por meio de uma represália do estado (polícia, prisões etc.). Um corolário desse argumento é que, quanto menor
for o temor de represálias, mais maldades essas pessoas estarão propensas a
fazer.
No
entanto, o estado em si não está sujeito a nenhum controle. O estado é a própria lei. A única restrição teórica sobre o aparato
estatal é decisão voluntária de seus próprios membros. Mesmo nas democracias ocidentais mais
avançadas, quantos políticos e policiais realmente vão para a cadeia? Sendo assim, se pessoas más existem e estão
sempre propensas a cometer maldades, e se elas sabem que só podem ser contidas
pela força, então esta sociedade jamais pode permitir a existência de um
estado, pois estas pessoas más irão imediatamente tomar o controle deste aparato
estatal com o intuito de cometer maldades e ao mesmo tempo evitar
represálias.
Portanto,
em uma sociedade totalmente formada por indivíduos maus e imorais, a única
esperança para a estabilidade seria um regresso ao "estado natural", no qual a
totalidade da população estaria armada.
Neste arranjo, o constante temor de retaliação iria ao menos arrefecer
os impulsos maléficos dos mais diversos grupos.
3. Quando a maioria dos indivíduos é
imoral, e uma minoria é moral
O
terceiro caso é aquele em que as pessoas são majoritariamente más, e apenas
algumas são boas.
Se
o arranjo é este, então também não se pode permitir a existência do estado, uma
vez que, por uma questão de distribuição
estatística, a maioria daqueles que estiverem no controle do aparato
estatal será composta por pessoas más, as quais terão poderes sobre a minoria
de pessoas boas.
Mais
ainda: não se pode permitir qualquer
resquício de democracia sob este arranjo, dado que a minoria de pessoas
boas será inevitavelmente subjugada pelas vontades democráticas da maioria de
malvados. Defender democracia sob este
arranjo é uma completa irracionalidade.
As
pessoas más, que querem infligir maldades sem qualquer temor de represálias,
irão inevitavelmente assumir o controle do aparato estatal e utilizar seus
poderes para cometer suas maldades sem qualquer temor de represálias. As pessoas boas não agem moralmente porque
temem represálias, mas sim porque apreciam a bondade, a serenidade e a paz de
espírito -- e por isso, e ao contrário das pessoas más, elas não têm nada a
ganhar caso assumam o controle do estado.
Portanto,
neste arranjo podemos ter a certeza de que o estado será controlado por uma
maioria formada por pessoas más e irá subjugar todo o resto da população (tanto
as pessoas boas quanto as pessoas más).
Os maiores perdedores serão, obviamente, as pessoas morais.
4. Quando a maioria dos indivíduos é moral,
e uma minoria é imoral
O
quarto caso é aquele em que as pessoas são majoritariamente boas, e apenas
algumas poucas são más.
Esta
possibilidade está sujeita aos mesmos problemas delineados acima. As pessoas más estarão sempre querendo
assumir o controle do estado com o intuito de se protegerem de retaliações.
Mas
esta opção, no entanto, altera a aparência da democracia: dado que a maioria
das pessoas é boa, as pessoas más que querem chegar ao poder terão de mentir
para as pessoas boas, fazendo inúmeras promessas aparentemente sensatas,
bondosas e caritativas para que assim consigam chegar ao poder.
E
então, uma vez no poder (algo que sempre irá ocorrer, pois pessoas más são
naturalmente astutas na arte do engano e da dissimulação), essas pessoas más
irão imediatamente revelar sua verdadeira face e sair em busca de seus
objetivos perversos, impingindo seus desejos por meio do aparato regulatório,
jurídico, policial e militar do estado.
Este, é claro, é o arranjo vigente nas democracias atuais.
Assim,
o estado permanece sendo o maior prêmio a ser conquistado pelas pessoas
más. Uma vez conquistado, essas pessoas
más irão rapidamente assumir o controle total de seu assombroso poder -- consequentemente,
a existência do estado também não pode ser permitida neste cenário.
Consequências
Não
há, portanto, nenhuma situação na qual a existência de um estado pode ser
defendida por meio da lógica.
O
único arranjo em que a existência do estado pode ser justificada seria aquele
em que a maioria dos indivíduos é má, mas o controle do estado está -- e para
sempre estará -- nas mãos de uma minoria de indivíduos bons.
Esta
situação, embora seja interessante na teoria, não se sustenta logicamente pelos
seguintes motivos:
a) A maioria formada por indivíduos maus iria rapidamente
desalojar a minoria de bons por meio do voto; ou então iria sobrepujá-la por meio de um
golpe;
b) Não há nenhuma maneira de garantir que somente as
pessoas boas estarão para sempre no controle do estado; e
c) Ao longo de toda a brutal história da existência do
estado, não há absolutamente nenhum caso em que tal arranjo tenha prevalecido.
O
erro lógico em que as pessoas incorrem ao defender a existência do estado é
que, por algum motivo insondável, elas genuinamente supõem que o estado será
necessariamente controlado por pessoas ínclitas, probas, honestas e
bem-intencionadas, e que as pessoas más estarão para sempre fora do aparato estatal
e permanentemente pacificadas. Os juízos
morais coletivos que elas aplicam aos cidadãos comuns não são igualmente aplicados
ao grupo que as governa.
Por
uma questão puramente estatística, se 50% das pessoas são más, então pelo menos
50% das pessoas que estarão no comando também serão más (aliás, muito
provavelmente esta porcentagem será maior, uma vez que pessoas más sempre estão
propensas a buscar poder). Logo, a
existência da maldade jamais pode justificar a existência do estado. Se não há maldade, o estado é
desnecessário. Se a maldade existe, o
estado passa a ser perigoso demais para que se permita sua existência.
A segunda objeção
Como
mencionado no primeiro parágrafo deste artigo, as pessoas geralmente cometem dois erros quando confrontadas com a
ideia da dissolução do estado.
O
primeiro erro é acreditar que o estado é necessário porque existem pessoas
más. Os problemas lógicos desta crença foram
explicitados acima.
O
segundo erro é acreditar que, na ausência do estado, surgirão instituições
muito piores, as quais crescerão e inevitavelmente assumirão o lugar do estado.
Consequentemente, agências de segurança
privada, seguradoras,
e organizações de
arbitração de litígios passam a ser consideradas como cânceres em
potencial, que irão crescer, se avolumar e assumir o controle do organismo
político.
Este
raciocínio tem as mesmas raízes do primeiro erro analisado. Ora, se todas as instituições sociais estão
continuamente tentando aumentar seu poder e impor suas vontades sobre
terceiros, então, por essa mesma razão,
não se pode permitir a existência de um estado centralizado.
Afinal,
se é inevitável que um grupo sempre irá tentar adquirir poder sobre todos os outros
grupos e indivíduos, então esta sede de poder não irá acabar se um deles chegar
ao poder. Ao contrário: uma vez no
poder, sua ânsia de dominação irá se espalhar por toda a sociedade, até que a
escravidão seja a norma. Em outras
palavras, a única esperança para a liberdade individual é que haja uma total
proliferação de grupos armados, cada um com o poder de infligir males ao outro,
de modo que todos terão medo uns dos outros, o que consequentemente os tornará
relativamente pacíficos.
É
muito difícil entender a lógica e a inteligência do argumento de que, para nos
protegermos de um grupo que pode nos sobrepujar, temos de apoiar um grupo que
já nos sobrepujou. Tal argumento é similar
àquele outro argumento estatista sobre monopólios privados: os cidadãos devem
criar um monopólio estatal porque receiam que surja algum monopólio
privado. Não é necessária uma inteligência
aguçada para perceber a tolice deste raciocínio.
Conclusão
Por
fim, qual é a evidência que sustenta o raciocínio de que poderes
descentralizados e concorrentes promovem a paz?
Em outras palavras, existe algum fato que podemos usar para sustentar a
ideia de que um equilíbrio de poder é a única chance que o indivíduo tem para a
liberdade?
O
crime organizado não é um bom exemplo, pois quadrilhas regularmente corrompem,
manipulam e utilizam o poder da polícia estatal para impingir suas próprias
regras. Logo, máfias e outras quadrilhas
organizadas não podem ser consideradas um arranjo que opera em um estado
natural, pois elas próprias fazem uso do aparato estatal que detém o monopólio
da violência.
Um
exemplo mais útil seria o fato de que nenhum líder político jamais declarou
guerra a outro líder político que possuísse armas nucleares. No passado, quando havia líderes que se
sentiam imunes a retaliações, eles estavam mais do que dispostos a matar sua
própria população ao enviá-las a guerras.
Atualmente, dado que eles próprios estão sujeitos a uma aniquilação
nuclear, tais líderes só têm coragem de atacar países que não têm como contra-atacar.
Eis
aí uma lição instrutiva sobre por que líderes políticos se esforçam para
desarmar sua população e torná-la dependente do governo. E eis aí um bom exemplo de como o temor de
represálias -- o qual é inerente a um sistema equilibrado de poderes
descentralizados e concorrenciais -- é único método comprovado de assegurar e
manter a liberdade individual.
Temer
fantasmas imaginários e se entregar à falsa sensação de proteção fornecida pela
opressão estatal irá apenas garantir a destruição de todas aquelas liberdades
que fazem com que a vida valha a pena ser vivida.