Continuação deste artigo anterior.
A
experiência mostra que o valor de troca está em relação com a quantidade de
trabalho apenas em parte dos bens, e, mesmo nesses, isto só acontece
incidentalmente.
A relação factual,
embora seja muito conhecida em decorrência da obviedade dos fatos em que se
baseia, é raramente levada em
conta.
Todo mundo --
inclusive os intelectuais socialistas -- concorda que a experiência não
confirma inteiramente o princípio do trabalho.
Frequentemente, encontramos a opinião de que os casos em que a realidade
está de acordo com o princípio do trabalho formam a regra geral, e que os casos
que contrariam esse princípio são uma exceção bastante insignificante. Essa ideia é muito errônea.
Para corrigi-la de uma vez por todas, pretendo
reunir as "exceções" que proliferam no início do trabalho, dentro da
ciência econômica. Verão que as
"exceções" são tão numerosas, que pouco sobra para a
"regra".
1)
Em primeiro lugar, todos os "bens raros" foram excluídos do princípio
do trabalho. Esses são todos os bens que não podem nunca -- ou só podem
limitadamente -- ser reproduzidos em massa, por algum impedimento objetivo ou
legal. Ricardo menciona, por exemplo,
estátuas e quadros, livros raros, moedas raras, vinhos excelentes, e comenta
ainda que esses bens "são apenas uma parte muito pequena dos bens
diariamente trocados no mercado". Se
pensarmos que nessa mesma categoria se situam, além da terra, todos os inúmeros
bens cuja produção está relacionada à patente de invenção, direitos autorais ou
segredo industrial, não se consideraria insignificante a extensão de tais bens.
2)
Todos os bens que não se produzem por trabalho comum, mas qualificado, são
considerados como exceção. Embora nos
produtos diários de um escultor, de um marceneiro especializado, de um
fabricante de violinos ou de um construtor de máquinas, não se corporifique
mais trabalho do que no produto diário de um simples trabalhador manual, ou de
um operário de fábrica, os produtos dos primeiros frequentemente têm valor de
troca mais elevado -- às vezes muito mais elevado -- que os dos segundos.
Os
defensores da teoria do valor-trabalho naturalmente não puderam ignorar essa
exceção. Porém, singularmente, fazem de
conta que isso não é exceção, mas apenas uma pequena variante, que ainda se
mantém dentro da regra. Marx, por
exemplo, considera o trabalho qualificado apenas um múltiplo do trabalho comum.
"O trabalho complexo", diz ele, "vale só como trabalho comum
potenciado, ou multiplicado. Assim, uma
pequena quantidade de trabalho complexo equivale a uma quantidade maior de
trabalho comum. A experiência nos mostra
que essa redução acontece constantemente. Uma mercadoria pode ser produto de um trabalho
complexo mas, se seu valor a iguala ao produto de trabalho comum, ela passa a
representar apenas determinada quantidade de trabalho comum".
Eis
urna obra-prima de espantosa ingenuidade! Não há nenhuma dúvida de que em muitas coisas
-- por exemplo, no valor monetário -- um dia de trabalho de um escultor pode
valer cinco dias de trabalho de um cavador de valetas. Mas que 10 horas de trabalho do escultor sejam
realmente 60 horas de trabalho comum, certamente ninguém pretende afirmar. Acontece que, para a teoria -- assim como para
se estabelecer o princípio do valor -- não importa o que as pessoas pretendem,
e sim o que é real. Para a teoria, o
produto diário do escultor continua sendo produto de um dia de trabalho. Se, por acaso, um bem que seja produto de um
dia de trabalho vale tanto quanto outro bem que seja produto de cinco dias de
trabalho, não importa o que as pessoas queiram que ele valha.
E
aí está uma exceção à regra -- que se quer impor -- de que o valor de troca dos
bens se mede pela quantidade de trabalho humano neles corporificado. Imaginemos uma ferrovia que determinasse suas
tarifas segundo a extensão do trajeto exigido por passageiros e cargas, mas que
determinasse também que, dentro de um trecho com operações particularmente
dispendiosas, cada quilômetro fosse computado como dois quilômetros. Será possível a alguém dizer que a extensão do
trajeto é o único princípio para a determinação das tarifas da ferrovia? Certamente não; finge-se que sim, mas, na
verdade, o princípio é modificado levando em conta a natureza do trajeto. Assim também; apesar de todos os artifícios,
não se pode salvar a unidade teórica do princípio do trabalho.
Essa
segunda exceção abrange também significativa parcela dos bens comerciais, o que
não deve ser necessário explicar mais detidamente. Se quisermos ser rigorosos, estão aí contidos
praticamente todos os bens, uma vez que na produção individualizada de quase
todos os bens entra em jogo ao menos um pouco de trabalho qualificado: o
trabalho de um inventor, de um diretor, de um capataz etc. Isso eleva o valor do produto a um nível um
pouco acima daquele que corresponderia apenas à quantidade de trabalho.
3)
A quantidade de exceções aumenta com o número bastante grande de bens
produzidos por trabalho extraordinariamente mal pago. É sabido que -- por razões que aqui não se
precisa mencionar -- em certos ramos da produção o salário de trabalho está sempre
abaixo do mínimo necessário para a sobrevivência, como, por exemplo, no caso do
trabalho manual feminino, como bordados, costura, malharia etc. Os produtos dessas ocupações têm, então, um
valor extraordinariamente baixo. Não é
incomum que o produto de três dias de trabalho de uma simples costureira não
valha nem mesmo o produto de dois dias de uma operária de fábrica.
Todas
as exceções que mencionei até aqui eximem certos grupos de bens da validade da
lei do valor do trabalho, reduzindo, pois, o campo de validade desta própria
lei. Na verdade, deixam para a lei do
valor do trabalho apenas aqueles bens para cuja reprodução não há qualquer
limite, e que nada exigem para sua criação além de trabalho. Mas mesmo esse campo de aplicabilidade tão
reduzido não é dominado de modo absoluto pela lei do valor do trabalho: também
aí, algumas exceções afrouxam sua validade.
4)
Uma quarta exceção do princípio do trabalho é formada pelo conhecido e admitido
fenômeno de que também aqueles bens cujo valor de troca se harmonize com a
quantidade de custos de trabalho não demonstram tal harmonia em todos os
momentos. Ao contrário: pelas oscilações
de oferta e procura, frequentemente o valor de troca sobe ou desce além ou
aquém daquele nível que corresponderia ao trabalho corporificado naqueles bens,
trabalho esse que só determinaria um ponto de gravitação, não uma fixação do
valor de troca.
Parece-me
que os defensores socialistas do princípio do trabalho também se ajeitam
depressa com essa exceção. Constatam-na,
sim, mas a tratam como uma pequena irregularidade passageira, que em nada
prejudica a grande "lei" do valor de troca. Mas não se pode negar que tais irregularidades
não são mais que exemplos de valores de troca regulados por outros motivos que
não a quantidade de trabalho. Esse fato
deveria provocar pelo menos uma investigação, no sentido de examinar a
possibilidade de existir um princípio mais geral do valor de troca, que
explicaria não só os valores de troca "regulares", mas também aqueles
que -- do ponto de vista da teoria do trabalho -- são tidos como irregulares. Nenhuma investigação desse tipo será
encontrada entre os teóricos dessa linha.
5)
Por fim, vemos que, além dessas oscilações momentâneas, o valor de troca dos
bens se desvia da quantidade de trabalho que eles corporificam, de maneira
considerável e constante. De dois bens
cuja produção exige exatamente a mesma quantidade média de trabalho, aquele que
exigiu maior quantidade de trabalho "prévio" vale mais. Como sabemos, Ricardo comentou extensamente
essa exceção do princípio de trabalho, em duas seções do Capitulo I de
suas Grundsätze. Marx a ignorou na formulação de suas teorias,[1] sem
a negar expressamente, o que não poderia fazer: é conhecido demais, para
admitir dúvidas, o fato de que o valor de um tronco de carvalho centenário é
mais elevado do que o correspondente ao meio-minuto que sua semeadura requer.
Vamos
resumir: parcela considerável dos bens não faz parte daquela presumida
"lei" segundo a qual o valor dos bens é determinado pela quantidade
de trabalho neles corporificada, e o restante dos bens nem obedece sempre, nem
com exatidão. Esse é o material empírico
que serve de base para os cálculos do teórico do valor.
Que
conclusão um investigador imparcial pode tirar? Certamente não será a de que a origem e medida
de todo valor se fundamenta exclusivamente no trabalho. Uma conclusão dessas
não seria em nada melhor do que aquela a que se poderia chegar, pelo método
experimental, a partir da constatação de que a eletricidade vem não só do
atrito, mas também de outras fontes: toda eletricidade provém de atrito.
Em
contrapartida, pode-se concluir que o dispêndio de trabalho exerce ampla
influência sobre o valor de troca de muitos bens. Mas não como causa definitiva, comum a todos os
fenômenos de valor, e sim como causa eventual, particular. Não haverá a necessidade de procurar uma
fundamentação interna para essa influência do trabalho sobre o valor, pois ela
não seria encontrada. Pode também ser
interessante -- além de importante -- observar melhor a influência do trabalho
sobre o valor dos bens, e expressar esses resultados na forma de leis. Mas não se pode esquecer que estas não serão
mais que leis particulares, que em nada atingem a essência do valor.
Para
usar de uma comparação: leis que formulam a influência do trabalho no valor dos
bens estão para a lei geral do valor mais ou menos como a lei "Vento oeste
traz chuva" está para uma teoria geral da chuva. Vento oeste é uma causa eventual de chuva,
como o emprego de trabalho é causa eventual do valor dos bens. Mas a essência da chuva se fundamenta tão
pouco no vento oeste quanto o valor se fundamenta no emprego de trabalho.
Marx
agravou o erro de Ricardo
O
próprio Ricardo ultrapassou um pouco as fronteiras legítimas. Ele sabia muito bem que
sua lei do valor do trabalho era somente uma lei particular de valor, e que o
valor dos "bens raros", por exemplo, tem outros fundamentos. Mas Ricardo engana-se na medida em que
valoriza demais o campo de abrangência dessa lei, atribuindo-lhe uma validade
praticamente universal. A este engano
pode-se relacionar o fato de que, em fases posteriores, ele praticamente não dá
mais atenção às exceções, pouco valorizadas, que no começo de sua obra
mencionara com bastante acerto. E muitas
vezes -- injustamente -- fala de sua lei como se ela fosse realmente uma lei
universal de valor.
Foram
os seus sucessores -- que ampliaram o campo de abrangência dessa lei -- que
caíram no erro quase inconcebível de apresentar o trabalho, com pleno e
consciente rigor, como princípio universal de valor. Digo "erro quase inconcebível",
pois, com efeito, é difícil acreditar que homens de formação teórica pudessem
firmar, depois de reflexão madura, uma doutrina que não podiam apoiar em coisa
alguma: nem na natureza da coisa, uma vez que nesta natureza não se revela
absolutamente nenhuma relação necessária entre valor e trabalho; nem na
experiência, pois esta, ao contrário, mostra que o valor geralmente não se
coaduna com o dispêndio de trabalho; nem mesmo, por fim, nas autoridades, pois
as autoridades invocadas jamais afirmaram o princípio com aquela pretendida
universalidade que agora lhe era conferida.
Mas
os seguidores socialistas da teoria da exploração, quando apresentam um
princípio tão precário, não o colocam numa posição secundária, em algum ângulo
inofensivo de sua doutrina teórica. Colocam-no
no topo de suas afirmações práticas mais importantes. Sustentam que o valor de
todas as mercadorias repousa no tempo de trabalho nelas corporificado. Em outro momento, atacam todos os valores que
não se coadunam com essa "lei" (por exemplo, diferenças de valor que
recaem como mais-valia para os capitalistas), dizendo-os "ilegais",
"antinaturais" e "injustos", e condenando-os a anulação.
Portanto,
primeiro ignoram a exceção e proclamam a lei do valor como sendo
universal. Em seguida, após terem
obtido, sub-repticiamente, a universalidade dessa lei, voltam a prestar atenção
às exceções, rotulando-as de infração dessa lei. Com efeito, tal argumentação não é muito
melhor do que a de alguém que constate que existe gente louca -- ignorando que
também há gente sensata -- e que, a partir desta constatação, chegue a uma
"lei de valor universal" segundo a qual "todas as pessoas são
loucas", exigindo que se exterminem todos os sábios, considerados
"fora da lei".
[1] Marx só
lhe dá atenção expressa no terceiro volume, póstumo, como era de se esperar, e,
como resultado, entra em contradição com as leis do primeiro volume que tinha
construído sem levarem em conta a exceção.