N. do T.: o atual caos do setor aéreo brasileiro, com os já rotineiros
problemas dos aeroportos saturados e da falta de segurança nos ares, não será
solucionado com simples esquemas de concessão e Parcerias Público-Privadas.
Essa solução - a favorita dos pretensos liberais - de entregar a
administração de alguns aeroportos à iniciativa privada, em regime de concessão,
não faz sentido econômico. As propostas
tradicionais dizem que a concessionária escolhida irá responder diretamente à
Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) e terá autorização para explorar
comercialmente o aeroporto por 35 anos, com possibilidade de renovação pelo
mesmo período. Qual é o problema com esse
arranjo?
Um só: ausência de propriedade privada.
Aquilo que é alugado - como ocorre em qualquer regime de concessão - não
recebe o mesmo cuidado que aquilo que é propriedade de jure e de fato de
alguém. Da mesma forma que você não
cuida de um carro ou de um apartamento alugado como se fosse seu, as
concessionárias escolhidas para gerir aeroportos não terão os mesmos incentivos
econômicos para administrá-los eficientemente como teriam as empresas que
realmente fossem donas de aeroportos.
Por exemplo, quando o contrato de 35 anos estiver em vias de expirar, e a
empresa estiver, suponhamos, em dificuldades financeiras ou estiver
pressentindo alterações no marco regulatório (talvez pela eleição de um governo
mais estatizante), por que ela iria investir mais no aeroporto? Por que você cuidaria de um carro alugado que
está prestes a ser devolvido? Seria
dinheiro jogado fora. Ao passo que, para
esse mesmo cenário descrito acima, se a empresa fosse a dona legítima do aeroporto,
ela poderia simplesmente vendê-lo para outra empresa, a qual, por estar também
em busca do lucro, teria incentivos para continuar a melhoria dos serviços.
Um exemplo de privatização bem sucedida (privatização mesmo, e não
concessão) ocorreu no Reino Unido, em 1987, quando o governo britânico
privatizou a British Airports Authority, hoje conhecida apenas como "BAA
Limited".
Desde a privatização, a BAA - que administra os aeroportos de Heathrow, Stansted
e Southampton, na Inglaterra, e Aberdeen, Edimburgo e Glasgow, na Escócia -
conseguiu fazer com que seus aeroportos, os mais movimentados do Reino Unido,
jamais ficassem saturados, pois sabe que isso é péssimo para os negócios. Se os serviços ali ficassem ruins, os
passageiros poderiam simplesmente optar por pegar voos que desembarcassem em
outros aeroportos locais, não administrados pela BAA (é como um sujeito
escolher Viracopos ao invés de Guarulhos ou Congonhas, Galeão ao invés de Santos
Dumont, ou Confins ao invés de Pampulha).
Para ter maior rentabilidade, a BAA expandiu a proporção da área de seus
terminais voltada para atividades comerciais.
Isso fez com que ela tivesse de expandir seus terminais para alojar mais
restaurantes e lojas, diminuindo a saturação e aumentando o conforto. Os passageiros são facilmente direcionados
para essas áreas (tanto no embarque quanto no desembarque), maximizando assim a
exposição desses complexos comerciais, que pagam um aluguel à BAA - apenas um
exemplo de como pode se dar a rentabilidade de um aeroporto privado, além das
tarifas que seriam cobradas das empresas aéreas por pousos, decolagens,
querosene, estadia e pernoite das aeronaves.
Ademais, um motivo ainda mais forte para a desestatização do setor aéreo
brasileiro e a consequente abolição da Infraero (ou "InfraZero", como dizem os
pilotos) foi bem explicitado por recente reportagem da Revista VEJA:
"A Infraero, estatal responsável por administrar os aeroportos do país
desde 1972 e que sempre foi comandada por técnicos, transformou-se num antro de
dirigentes corrompidos e contratos superfaturados. Milhões de reais que
deveriam ter sido gastos em obras de infraestrutura foram parar no bolso de
políticos, lobistas e empresários. A Polícia Federal e o Ministério Público
abriram investigações criminais que correm até hoje na Justiça."
Vale dizer que contratos superfaturados e milhões de reais desviados são a
consequência inevitável das Parcerias Público-Privadas, defendidas por muitos
"liberais". Por isso, tal arranjo jamais
deve ser considerado uma solução ideal para qualquer área.
O artigo a seguir dá mais detalhes sobre como poderia funcionar um setor aéreo
completamente desestatizado - não só aeroportos (que não têm muito segredo),
mas principalmente o próprio espaço aéreo.
_______________________________________________________
A idéia de abolir toda a regulamentação governamental sobre o setor aéreo e
entregar essa tarefa para o livre mercado é, para a maioria das pessoas, uma ideia
tão impensável e esquisita quanto a ideia de privatizar toda a polícia e os
tribunais. A percepção geral é a de que
viagens aéreas requerem um controle centralizado e internacional, além de
regulamentações dos governos para se prevenir uma anarquia completa nos céus
(no sentido depreciativo do termo). Mas
será que os governos são realmente necessários para se efetuar essa tarefa, ou
ela pode e deve ser completamente entregue ao livre mercado?
Há um debate entre os seguidores da Escola Austríaca sobre a questão do
espaço aéreo - sendo um recurso intangível, poderia ele se tornar privado sem
que, para isso, tenha de sofrer algum tipo de remodelagem ou mesmo transformação
física? Se assumirmos que ele de fato
pode se tornar propriedade privada seguindo esses termos, a resposta para toda
a questão da desestatização da aviação se torna bem direta: aerovias
"virtuais" seriam construídas da mesma maneira que as rodovias na
terra; aqueles que fossem donos dessas aerovias iriam ditar as regras para se
voar uma aeronave ao longo dessas rotas, bem como quem teria a permissão de
fazer isso; aeroportos poderiam ser os proprietários do espaço aéreo acima e
nas proximidades de seus perímetros, ou poderiam simplesmente alugá-lo. Enfim, há uma vasta gama de
possibilidades. Entretanto, para o bem
do debate, vamos assumir que esse espaço aéreo não pode ser privado, e que o
céu é, portanto, "livre para todos". Nesse caso, a resposta pode exigir um pouco
mais de elaboração.
Assim como na privatização e desestatização da polícia e do sistema judiciário
em uma sociedade anarcocapitalista, as companhias de seguro teriam um papel
vital na área da aviação. Praticamente
cada dono de um avião (particular ou comercial) iria querer fazer um seguro
para sua aeronave, já que o custo unitário desses objetos normalmente varia
desde algumas poucas centenas de milhares de dólares até centenas de milhões de
dólares. Ninguém em seu perfeito juízo
compraria um bem tão custoso e deixaria de fora todo o processo do seguro.
Uma segunda razão para que os proprietários façam seguro para suas aeronaves
é o fato de que todos os aeroportos comerciais, junto com todas as pistas de
pouso particulares, iriam requerer que qualquer avião com a intenção de ali pousar
tenha um seguro. Só assim ser-lhe-iam
dados os direitos de pouso. Isso, é
claro, advém do desejo dos proprietários dos aeroportos de se certificarem de
que quaisquer danos causados a uma aeronave por um acidente em seu solo
poderiam ser pagos, parcial ou completamente, pelas companhias de seguros da
aeronave envolvida. Como esses
aeroportos são propriedade privada, seus proprietários também teriam o direito
de se defender contra qualquer intruso indesejado (não-segurado).
O que, então, essas companhias de seguro iriam demandar das companhias
aéreas e de outros proprietários de aeronaves em termos de obrigações e
condições estipuladas em seus contratos de seguro? Como de praxe, companhias de seguro procuram
minimizar o pagamento das indenizações aos seus clientes para assim minimizar
os custos e maximizar os lucros. Isso,
por sua vez, faz com que essas companhias tenham um ávido interesse em se
certificar que seus clientes - os donos de aviões e dos aeroportos - evitem ao
máximo qualquer acidente. Para lograr
esse êxito, as companhias de seguro teriam de cooperar com as companhias
aéreas, com as organizações industriais, com os aeroportos, com os fabricantes
de aeronaves e até mesmo com os concorrentes para que se desenvolvesse um
sistema comum para a condução segura e ordenada das operações de vôo. Isso incluiria tudo: desde o estabelecimento
de padrões gerais para a navegação aérea e para a entrega do equivalente aos
atuais brevês, até o estabelecimento de sistemas para o preenchimento de planos
de vôo e para a condução do controle de tráfego aéreo. As companhias de seguro iriam então exigir que
seus clientes seguissem essas regras como pré-requisito para a assinatura de um
contrato.
Também deve-se ter em mente que essas companhias de seguro estariam
interessadas somente em "regulamentações" que aumentem de fato
a segurança, o que significa que qualquer regulamentação custosa e redundante,
considerada desnecessária do ponto de vista da segurança, seria rapidamente
rejeitada. As companhias de seguro
também iriam alegremente adotar quaisquer novas propostas e ideias de regulamentação
que reduzissem o risco de acidentes, e não haveria a necessidade de elas terem
de pedir permissão a altas autoridades, como políticos ou burocratas, para implantarem
essas mudanças. Quaisquer propostas de
melhorias, portanto, seriam rapidamente adotadas caso fossem consideradas de
natureza positiva, contribuindo assim para acelerar a prevenção de futuros
acidentes.
Primeiro, essas soluções privadas se contrastam fragorosamente às suas
contrapartidas governamentais atuais (como a ANAC - Agência Nacional de Aviação Civil), que estão
completamente amarradas por formalidades burocráticas que frequentemente levam
anos para ser acatadas - ou contornadas - sempre que se deseja impor novas e
melhores medidas de segurança - já que isso normalmente requer o envolvimento
de políticos para mudar a legislação e garantir a implementação desses novos
procedimentos. Esse processo se torna
particularmente enfadonho se as regulamentações propostas tiverem o potencial
de irritar eleitores ou grupos de interesse, a quem os políticos estão sempre
ávidos para fazer agrados de forma a mantê-los em sua base de apoio.
Segundo, esses departamentos e seus donos - o governo - não têm qualquer
interesse financeiro direto em fazer todo o possível para aperfeiçoar a
segurança aérea, ao contrário das companhias de seguro, que estariam
constantemente à procura de maneiras para se aumentar a segurança, de modo a
manter as reivindicações das companhias aéreas e de outros proprietários de
aeronaves em um nível mínimo.
Terceiro, políticos são muito conhecidos por se intrometerem
paternalisticamente em áreas sobre as quais não têm o mínimo conhecimento. Isso significa que inevitavelmente novas
regulamentações propostas e impostas por eles frequentemente vêm na forma de
respostas graduais e automáticas às demandas públicas por mais segurança aérea.
Isso produz regulamentações rasas, sem
substância, ao mesmo tempo em que criam a falsa impressão de que o governo está
de fato trabalhando duro para aprimorar a segurança. A única coisa obtida, contudo, é uma redução
na eficiência dos serviços aéreos e no conforto dos passageiros.
Os governos sempre serão inferiores às empresas privadas nesse
quesito, não necessariamente por serem menos competentes, mas por lhes faltarem
os mesmos incentivos que impulsionam as companhias de seguro a aprimorar a
segurança. Onde uma burocracia tem o
incentivo de aumentar seu orçamento, uma empresa privada tem o incentivo de
reduzir seus custos. E acidentes impõem
custos. Cada centavo gasto na tentativa
de melhorar a segurança é, por conseguinte, um investimento, já que ele pode
levar a uma diminuição das indenizações, gerando assim uma maior margem de
lucro.
Os órgãos estatais que hoje cuidam de todas as investigações de acidentes
aéreos (como o Cenipa
- Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos), também seriam instituições
desnecessárias (assim como suas gêmeas estrangeiras), pois as companhias de
seguro assumiriam essa tarefa também. Acidentes
naturalmente seriam de interesse particular das seguradoras, e esses eventos
seriam meticulosamente examinados sempre que um avião de algum de seus clientes
estivesse envolvido. A intenção seria
obviamente tentar determinar as causas exatas por detrás de cada sinistro. Essas investigações formariam a base para
quaisquer futuras reivindicações feitas por seus clientes, tornando-se assim
vitais para ambas as partes.
(Um bom exemplo é o recente acidente
com o avião da Air France, voo 447.
Agências estatais do Brasil e da França se uniram para procurar os
destroços e a caixa-preta, assim como para estabelecer as causas do
acidente. Nada.)
A manutenção de uma frota aérea também seria monitorada de perto pela
seguradora da companhia aérea. E se a
seguradora julgasse a manutenção de uma determinada companhia aérea como sendo
de baixa qualidade, ela iria peremptoriamente reclamar com sua cliente e
ameaçar aumentar o valor da apólice e das prestações caso nenhuma ação
corretiva fosse imediatamente tomada pela companhia aérea para melhorar a segurança.
Que uma agência governamental tenha essa
responsabilidade e monitore cada operação de cada companhia aérea não é apenas
uma tarefa descomunal; é uma tarefa destinada ao fracasso, pois toda burocracia
carece de incentivos financeiros para esse procedimento.
Pela mesma razão, os governos não têm como saber quais padrões de manutenção
eles devem impor de maneira ideal às companhias aéreas, além daqueles que são
arbitrariamente impostos por políticos e burocratas. Eles não têm como reproduzir o mesmo processo
criativo relacionado a novas maneiras de aprimorar a segurança da mesma forma
que companhias de seguro - concorrendo entre si e guiadas pelo lucro - se
incumbiriam de fazer. Igualmente,
soluções eficientes podem envolver contratos personalizados com cada companhia
aérea, contratos relacionados à manutenção de suas aeronaves; nenhuma agência
governamental teria como adotar tal procedimento. Novamente, faltam os incentivos financeiros. Ao invés disso, uma agência governamental imporia
um esquema do tipo "o mesmo para todos". Isso não só afetaria a produtividade das companhias
aéreas, como também reduziria a segurança.
Não apenas o governo não é imprescindível, como também é incapaz de fornecer
segurança aérea suficiente para impedir sequestros e outros ataques a aviões e
aeroportos, como os eventos de 11 de setembro deixaram claro. De fato, é bem provável que o governo
americano tenha sido a instituição que possibilitou a ocorrência daqueles
ataques. Desde 1961, os pilotos
americanos tinham a permissão de levar consigo armas de fogo na cabine de
comando de seus aviões. Mas apenas dois
meses antes dos ataques de 11/09, a FAA (Federal Aviation Administration, equivalente à ANAC) baniu essa
prática. Como resultado, os
sequestradores tinham a certeza de que estarem armados com facas e estiletes já
seria suficiente para subjugar e dominar completamente quatro aviões
comerciais, pois sabiam que nenhum dos pilotos a bordo estaria armado. Essa proibição foi revogada em novembro de
2001, e espera-se que ela jamais retorne.
George W. Bush gostava de creditar às suas draconianas "melhorias na
segurança" a ausência de novos ataques terroristas aos EUA nos últimos
sete anos. Mas o histórico poderia ser
de mais de quarenta e sete anos, caso o governo americano e a FAA não tivessem
intervindo na segurança aérea. Ou, como
bem colocou Hans-Hermann Hoppe, uma arma poderia ter evitado aquilo que o
segundo maior exército do mundo não conseguiu.
Esse exemplo, junto com o sempre crescente congestionamento dos céus e aeroportos,
além do fato de acidentes aéreos continuarem ocorrendo por todo o globo, são
sintomas típicos do planejamento central e da socialização do setor aéreo. Nenhum governo pode resolver todos esses
problemas, independente da quantidade de dinheiro do contribuinte que ele
direciona para a segurança aeroportuária, para o controle de tráfego aéreo ou
para as agências reguladoras; ele simplesmente carece dos incentivos
apropriados e dos mecanismos requeridos, tais como o desejo de lucros e o temor
da concorrência.
Por outro lado, empresas privadas, em um ambiente concorrencial, possuem os
incentivos e os meios para tal. Enquanto
a tarefa de regular as viagens aéreas não for inteiramente entregue ao livre
mercado, recursos econômicos e vidas humanas continuarão sendo arruinados.