Há um interminável debate a respeito da tecnologia
digital. Ela ajuda ou atrapalha a defesa
da liberdade, do individualismo e dos direitos humanos? Aqueles que dizem que ela atrapalha apontam
para o fato de que os governos têm tido liberdade para utilizar informações
privadas a nosso respeito para melhor implantar seus objetivos. No atual estágio do desenvolvimento
tecnológico, os governos podem nos vigiar como nunca antes na história do mundo. Ele pode espionar, intimidar, tributar,
regular, controlar o comércio e até mesmo inflacionar mais eficientemente
utilizando as ferramentas da era digital.
Tudo isso é verdade.
Mas o que os eventos de ontem, o dia conhecido como quarta-feira negra,
demonstraram foi exatamente o oposto do relatado acima. Inúmeras empresas e setores operantes na
internet retiraram seu consentimento em relação ao estado e protestaram contra
a legislação que está tramitando no Congresso americano e que, caso
implementada, teria efeitos devastadores sobre como a internet funciona. O protesto foi dirigido, mais
especificamente, a dois projetos de lei tramitando no Congresso americano neste
exato momento, chamados de SOPA (Stop Online Piracy Act) e PIPA (Protect IP
Act).
A Wikipédia, este monumento à colaboração humana em
prol da cultura global, liderou o protesto, deixando sua página em inglês
completamente negra e sem acesso. Este
apagão foi uma escolha -- brilhante, aliás -- de seu fundador, Jimmy Wales,
após ter consultado toda a comunidade da Wikipédia. Foi um protesto, uma declaração, um alerta
simbólico para o mundo sobre o que pode acontecer caso o governo ataque
decisivamente o livre fluxo de informações.
O protesto da Wikipédia foi uma maneira de dizer: se este negócio
avançar e for de fato institucionalizado, não haverá mais Wikipédia, a qual,
além de ser o site mais rico em conteúdo do mundo, é também a principal maneira
como as pessoas buscam conhecimento prático e rápido sobre algo hoje em dia.
O Google também fez coro, assim como vários outros
sites ao redor do globo.
Em vez de ser um abrigo contra o poder, o controle e
as distorções, e um refúgio no qual a informação é livremente produzida e
distribuída, a internet passaria a ser um mero sistema de entrega de conteúdos
e informações pré-aprovados pelo governo e pelos interesses corporativos que
trabalham em conluio com o governo, nada muito diferente do rádio ou da
televisão atuais.
Esta legislação transformaria completamente nossas
vidas. Mas, felizmente, a internet
declarou sua oposição com convicção e veemência. As instituições ao redor do mundo se ergueram
em protesto colocando em seus sites avisos de blackout, anúncios explicando
detalhes sobre estes projetos de lei e mensagens abertamente desafiadoras e provocativas. Foi um protesto pacífico, muito similar a
todos os outros do passado, mas com uma enorme diferença. Em vez de ser algo limitado pela geografia --
e, portanto, facilmente ignorável ou dispersado pela polícia --, o protesto
digital foi global, impossível de ser ignorado e interrompido. Embora tenha se dado com mais intensidade no
mundo anglófono, todos os grupos de linguagem também acabaram se envolvendo,
pois os efeitos desta legislação seriam genuinamente universais.
É sempre um enorme risco querer enfrentar o
poder. Você pode perder tráfego
comercial. Há a possibilidade de você
sofrer retaliações e até mesmo violência.
Há a real possibilidade de você perder a batalha e, com isso, em vez de
ser declarado um herói, ser considerado apenas mais um bobalhão. E, se analisarmos toda a história da
humanidade, podemos facilmente concluir que as chances de ser bem sucedido em
uma luta contra o poder são extremamente baixas. A liberdade sempre foi uma raridade ao longo
de nossa história, e por uma razão bastante simples: o despotismo sempre foi a
norma em quase todas as épocas e lugares.
Portanto, aqueles que optarem por lutar contra o poder jamais podem
ignorar este fato. Não se deve
empreender absolutamente nada sem antes ter plena consciência desta triste
realidade.
Somente quando algumas poucas pessoas firmemente
convictas decidem se erguer e enfrentar o poder, e seus protestos são apoiados
por algum nível de consenso público, é que alguma diferença realmente pode ser obtida. Isso é algo que aconteceu muito poucas vezes,
mas veja os efeitos. A liberdade
conquistada por meio da simples retirada de consentimento foi o que construiu o
mundo moderno. Tudo o que usamos para
melhorar nossas vidas é produto desta liberdade. Nossa saúde, nossa educação, nossa
prosperidade material, nossa fé, nossa música, nossas artes e nossa filantropia
-- tudo deve sua existência à liberdade, e não ao governo.
O marco que sinalizou o início da era digital foi a
invenção e popularização do navegador da internet em 1995 -- pelo menos é assim
que vejo as coisas. Isso significa que
já faz 17 anos que estamos vendo o que o livre fluxo de informação pode
produzir. E o resultado é nada menos que
estupefaciente. Todos nós, em nosso dia
a dia, aceitamos como fato consumado essa maravilha virtual; porém, quando
paramos para pensar e olhamos para o passado, essa transformação adquire
aspectos de milagre. Qualquer pessoa
pode se comunicar por meio de um vídeo, em tempo real e a preço quase zero, com
qualquer outra pessoa em qualquer canto do mundo. Ao alcance de nossos dedos, temos acesso
imediato às maiores obras literárias, musicais, científicas e de poesia do
mundo. Além de ser o veículo para nossas
redes sociais, a internet também nos auxilia em nossos esforços educacionais,
em nossa busca por informações sobre saúde, culinária, investimentos e qualquer
outra atividade de nossa vida que você puder imaginar. E tudo isso nos remete àquela maravilha que é
a capacidade de compartilhar e trocar ideias através de todos os veículos
possíveis.
O feito realmente notável é que a internet como a
conhecemos hoje foi totalmente construída por mãos privadas trabalhando em
conjunto e cooperativamente; ela não foi construída por burocratas e nem por
políticos. Esta é grande lição do mundo
atual, e ela aponta para uma verdade incômoda que todos os políticos querem
suprimir: a ordem é a filha da liberdade, e não a mãe. Como ousam esses burocratas e políticos se
presumirem os senhores daquilo que eles não fizeram absolutamente nada para criar?
O problema é que, quase sempre, tão logo os produtos
gerados pela liberdade passam a existir, as pessoas já começam a encará-los
como coisas corriqueiras e garantidas.
Raramente alguém se dá ao trabalho de imaginar um cenário
alternativo. As pessoas apenas seguem
vivendo suas rotinas, usufruindo as maravilhosas bênçãos geradas pela liberdade
e completamente alheias a tudo aquilo que tornou possível esta realidade. E elas sequer imaginam que tudo isso pode ser
abolido de um dia para o outro.
Mesmo hoje, em países outrora socialistas, a geração
mais jovem praticamente não se dá conta de que, apenas uma geração atrás, as
prateleiras dos supermercados estavam vazias e a vida era repugnante, amarga e
sem esperança. No mundo atual, nós todos
simplesmente esperamos e antecipamos -- praticamente como se fosse um direito
humano -- o lançamento dos mais novos brinquedos digitais, das atualizações
mais recentes para nossos apetrechos eletrônicos, e dos softwares cada vez mais
aprimorados e "sem bug". Nós perambulamos
por lojas (físicas e virtuais) analisando e escolhendo com calma as maiores
dádivas do mundo tecnológico e quase nada pensamos a respeito.
Pode não parecer, mas isto é um problema extremamente
grave, pois a liberdade requer percepção de sua existência e conscientização de
suas bênçãos geradas. Caso contrário,
ela não sobrevive. Se o governo
americano conseguir aprovar esta legislação, certamente outras virão. Os custos serão imensos e tragicamente
invisíveis. A mídia digital e a
liberdade de informação são direta e indiretamente responsáveis pela maior
parte do crescimento econômico que o mundo vivenciou nos últimos 20 anos. Sem elas, todos os controles governamentais,
os impostos, as regulamentações e as guerras já teriam instituído uma nova era
das trevas sobre todos nós.
De alguma forma, e contra todas as possibilidades, o
debate sobre os detalhes técnicos do cumprimento das leis de propriedade
intelectual gerou algum grau de conscientização nas pessoas sobre a
irracionalidade desta ideia. Os protestos até agora têm sido contra a
censura, e de fato é disso que se trata a legislação. É bom pensar na realidade contrafatual de
como seriam as coisas caso um mundo movido pela informação fosse jogado nas
trevas. Porém, na realidade, há muito
mais do que isso em
jogo. A informação é o
pilar essencial daquilo que chamamos de civilização, bem como de todas as
coisas que aprimoram a condição humana.
A informação é a mercadoria mais valorosa do mundo. É muito mais do que aquilo que podemos ver e
que podemos ler. Trata-se do direito
humano de compartilhar e trocar ideias que possibilitam o nosso próprio
progresso. E, para a sorte da
humanidade, trata-se de uma mercadoria que pode ser infinitamente
reproduzível. Porém, hoje, os governos
recorrem a esta noção de "propriedade intelectual" e a utilizam como desculpa
para criar monopólios e censurar ideias.
Só estaremos a salvo destes tipos de legislação e lei arbitrárias quando
esta falácia for
extirpada em sua raiz e estivermos mais bem capacitados para distinguirmos
entre genuínos direitos de propriedade e falso direitos.
O governo atacar a liberdade da internet hoje seria o
equivalente a queimar os manuscritos de Santo Isidoro de Sevilha,
escritos no século VII, e que produziram, na mais difícil das épocas, o livro
que resumiu todo o conhecimento do mundo antigo (era a Wikipédia daquela época)
e que permanece sendo até hoje uma fonte essencial. Seria o equivalente a destruir a impressora
de Gutenberg no século XV, de modo a fazer com que a impressão de manuscritos
jamais pudesse evoluir.
Os historiadores constantemente nos relembram que
todos os grandes avanços ocorridos na história da humanidade foram inspirados
pela troca e difusão de informações.
Esta é uma pré-condição para o progresso. Foi quando os primeiros expedicionários das
cruzadas retornaram do mundo antigo trazendo manuscritos, que começamos a ver
os primeiros sinais do nascimento da modernidade no Ocidente. Quando populações, querendo deixar para trás
seu isolamento, se mudaram para cidades e começaram a colaborar entre si, o
resultado foi o crescimento econômico. E
quando a internet derrubou as barreiras que existiam ao redor do mundo e
permitiu que todos pudessem se comunicar entre si e descobrir novas ideias,
testemunhamos uma nova alvorada da tecnologia e da eficiência.
As assombrosas inovações desta era ensinaram a toda
uma geração sobre o poder miraculoso da criação e da dispersão de informação;
sobre as habilidades embutidas nas ações espontâneas dos indivíduos; e sobre a
capacidade de pessoas ao redor do mundo gerarem ordem e progresso por meio da
cooperação e das trocas voluntárias.
As duas tendências dominantes da nossa época são, de
um lado, o obscurantismo de um mundo físico gerenciado por governos e, de
outro, o re-iluminismo do mundo graças à ordem espontânea gerada pela mídia
digital controlada por todos nós.
Governos sempre quererão solapar nossas liberdades e apagar todas as
luzes. Os protestos contra estas
propostas de controle constituem uma poderosa declaração de que não deixaremos
os destruidores, os bárbaros, os vândalos se darem bem.
O movimento anti-SOPA foi um dos mais emocionantes
protestos que já presenciei em minha vida.
Ele aparentemente surgiu do nada.
Tudo foi construído ao longo de apenas alguns poucos meses. O momento crucial ocorreu quando a Wikipédia
anunciou que iria se juntar ao protesto.
E então parecia que, repentinamente, todos já estavam envolvidos, e
apenas em questão de dias. Programadores
criaram aplicativos para bloquear temporariamente seus sites. Milhões de pessoas trocaram suas fotos no
perfil de seu Facebook (ei, é muito mais fácil do que fazer greve de
fome!). O Congresso americano foi
inundado de mensagens vociferando oposição a estas leis em um volume nunca
antes visto.
As pessoas me pedem especulações sobre o futuro desta
legislação. Meu palpite é que os
protestos irão efetivamente matar as atuais versões dos projetos de lei no
Congresso americano. Elas serão
discutidas e os grupos de interesse corporativos por trás dela ficarão quietos
por algum tempo. Mais tarde, daqui a
aproximadamente uns seis meses, todo o processo vai se reiniciar, só que desta
vez com projetos de lei menos condenáveis, os quais, embora certamente alegarão
estar removendo as partes mais ultrajantes, estarão fazendo mais do
mesmo. Pessoas digitalmente conscientes
e politicamente astutas sabem que este foi apenas o primeiro assalto. As tentativas de todos os governos de
bloquear o fluxo de informações na internet irão continuar
irrefreavelmente. Para isso, a criação
de leis nem é necessária; os governos possuem hoje o poder de esmagar a era
da informação apenas com medidas burocráticas.
No final, a liberdade da internet poderá ser garantida
não com a obstrução de novas legislações, mas sim com a abolição de legislações
antigas. Sob este prisma, os protestos
de ontem representam não o fim, mas o começo da batalha. Como dito, se quisermos nossa sobrevivência e
nossa liberdade, não podemos deixar que os destruidores, os bárbaros, os
vândalos prosperem. É o progresso da
humanidade que está em jogo.