No
que diz respeito a alguns assuntos monetários, praticamente todos os
economistas seguidores da Escola Austríaca concordam entre si. Bancos centrais e o produto que eles criam —
papel-moeda de curso forçado — são instituições inflacionárias que geram
distúrbios na economia e que não servem a nenhuma outra função senão
redistribuir renda dentro da sociedade.
O
papel-moeda de curso forçado é um arranjo inerentemente estatista porque
precisa ser constantemente protegido por meio de leis que impõem o seu curso
forçado e por outras formas de intervenção governamental.
O papel-moeda pode ser produzido em
quantidades virtualmente ilimitadas pelas impressoras dos bancos centrais. Essa inflação monetária beneficia aqueles que
primeiro recebem esse dinheiro recém-criado e destrói a economia em decorrência
dos ciclos econômicos que causa. Por
conseguinte, os bancos centrais deveriam ser abolidos o mais rapidamente
possível.
Alternativas
superiores aos bancos centrais estão prontamente disponíveis. Especificamente, metais como ouro e prata
podem ser produzidos em termos puramente de livre mercado, isto é, sem
necessitar de nenhuma forma de privilégio legal; e suas quantidades dependem
muito menos dos caprichos arbitrários de qualquer ser humano. Nenhuma medida ou reforma especial são
necessárias para criar um sistema de moedas metálicas, pois moedas de ouro e
prata tendem a surgir espontaneamente em mercado genuinamente livre — como
mostra a história. A principal medida de
uma reforma monetária libertária é, portanto, abolir imediatamente todas as
formas de controle monopolista da moeda (como leis que impõem seu curso
forçado, os impostos sobre metais etc.).
Ademais, todos os governos deveriam devolver todo o ouro e a prata que
confiscaram de seus cidadãos quando estabeleceram seus papéis-moedas nacionais.
Em
relação a um ponto vital, entretanto, os economistas austríacos não chegaram a
um consenso, e esta discordância tem produzido um intenso e dinâmico debate ao
longo dos anos. Esse debate não está
relacionado especificamente à produção de uma moeda metálica ou a qual tipo de
metal deve ser utilizado como dinheiro; ele se refere mais minuciosamente ao
fenômeno da criação de dinheiro feita por fornecedores de serviços financeiros,
como bancos comerciais. Para entender a
questão, é útil fazermos uma distinção entre três tipos de serviços financeiros
ou bancários.
Bancos de
crédito (ou bancos de investimento)
Os
bancos atuam como intermediadores financeiros quando pegam emprestado dinheiro
do indivíduo X e em seguida emprestam esse dinheiro para o indivíduo Y. Note que, nesse empreendimento, em todas as
etapas está claro quem é o dono do dinheiro.
Antes de emprestar seu dinheiro para o banco, X é o proprietário
exclusivo desse dinheiro. Ao emprestá-lo
para o banco, X abre mão do direito de utilizar o dinheiro pela duração de
tempo estipulada no contrato, e concede esse direito ao banco. O banco então irá emprestar esse dinheiro a Y,
desta forma também renunciando ao seu direito de utilizar o dinheiro e
concedendo esse direito a Y pela duração de tempo estipulada no contrato. No tempo presente, portanto, Y é o
proprietário legítimo do dinheiro.
Em
algum momento futuro, reivindicações contraditórias de propriedade sobre o
dinheiro podem surgir caso o crédito concedido por X ao banco tenha um período
de duração menor do que o crédito concedido pelo banco a Y. Cumprir tais reivindicações contraditórias
seria uma impossibilidade física. Há
apenas um objeto físico (o dinheiro), porém duas ou mais pessoas desejam
utilizá-lo para propósitos distintos. Do
ponto de vista jurídico, reivindicações contraditórias normalmente geram
litígios. Economicamente, elas geram um
estado de desequilíbrio, pois pelo menos um dos lados litigantes terá seus
projetos prejudicados.
Porém,
de novo, no tempo presente, somente Y possui uma reivindicação válida sobre o
dinheiro, pois no momento ele é o proprietário legítimo do dinheiro. Não há reivindicações contraditórias no início
da transação creditícia. E o banco
certamente fará de tudo para impedir litígios futuros adequando a duração de
seu crédito para B — seja obtendo um prolongamento do empréstimo concedido por
A ou obtendo mais crédito por meio de outro cliente.
Bancos de
depósito
Os
bancos incorrem em atividades de depósito quando aceitam o dinheiro de um
cliente apenas para guardá-lo — porque o cliente, por exemplo, imagina ser
mais seguro guardar o dinheiro no banco do que no cofre de sua casa. Nesse caso, o banco atua essencialmente como
um armazém, que nada mais faz do que guardar o dinheiro e emitir um recibo ou um certificado de armazenamento,
o qual é entregue para o depositante. O
banco não tem o direito de utilizar esse dinheiro. Ao contrário, o cliente detém todos os
direitos de uso do dinheiro para si próprio, querendo do banco apenas o serviço
de armazenamento do dinheiro. Tal
serviço certamente será cobrado, muito embora seja concebível, por exemplo, que
os bancos ofertem-no gratuitamente para aqueles clientes que também incorram em
frequentes operações de crédito.
Evidentemente, nos bancos de depósito não pode haver reivindicações
contraditórias sobre o dinheiro. Em
todos os momentos, o cliente retém propriedade e controle totais sobre o
dinheiro.
Ter
seu dinheiro pronto para ser vendido (em troca de bens ou serviços) a qualquer
momento — é assim que um proprietário de dinheiro utiliza seu dinheiro. Disso decorre que os depositantes querem utilizar seu dinheiro constantemente. É apenas uma questão meramente técnica se
eles vão querer manter o dinheiro guardado em suas carteiras ou se vão deixar a
custódia sob os cuidados de um banco. Essa
escolha não afeta o comportamento deles.
Em ambos os casos, eles planejam e agem sob a firme crença de que podem utilizar
seu dinheiro a qualquer momento.
Depositantes
podem utilizar seu dinheiro depositado no banco de duas maneiras: eles podem
apresentar seus recibos de armazenamento ao banco e demandar a restituição do
dinheiro, com o qual irão comprar bens e serviços; ou podem utilizar os
próprios recibos de armazenamento em troca de bens e serviços, desta forma
evitando a viagem ao banco. Com o
intuito de facilitar esse último tipo de transação, os bancos normalmente
padronizam e aprimoram os recibos de várias maneiras. Por exemplo, eles criam recibos de papel específico
para determinadas quantias de prata (como cinco, dez e quinze onças), eles
utilizam um papel especial para dificultar a falsificação, e por aí vai. Foi desta forma que as tradicionais cédulas
de dinheiro surgiram. Entretanto, vários
outros instrumentos, como contas-correntes ou, mais recentemente, cartões de
débito, possuem o mesmo propósito: são títulos sobre uma determinada soma de
dinheiro atualmente existente.
Observe
que, nos bancos de depósito, todos os recibos são totalmente lastreados pela
exata quantia de dinheiro que eles cobrem.
Um banco de depósito é necessariamente um "banco com 100% de reservas",
assim como qualquer armazém tem de operar com 100% de reservas. E um banco que incorra em ambas as atividades
— isto é, banco de depósito e banco de crédito — também é um banco com 100%
de reservas, pois todos os recibos (títulos de reivindicação sobre o dinheiro)
que ele emitiu estão, a qualquer momento, completamente lastreados pelo dinheiro
que está em seus cofres. Não é possível
haver reivindicações contraditórias sobre o dinheiro que está guardado nos
cofres dos bancos. Portanto, nem bancos
de depósito nem bancos de crédito per se produzem litígios, e nenhum deles
implica desequilíbrio econômico.
Bancos de
reservas fracionárias
Os
bancos praticam reservas fracionárias quando se apossam de parte do dinheiro depositado
e o utilizam para a concessão de crédito.
Eles podem fazer isso de duas maneiras: emprestando diretamente o dinheiro
que foi depositado ou criando recibos de armazenamento em uma quantia maior do
que o total de dinheiro que há em seus cofres.
Por exemplo, os clientes do Banco RF (BRF) depositaram nele $1.000, e o
BRF correspondentemente emitiu recibos (ou criou contas-correntes) no valor
total de $1.000.
Ato
contínuo, o banco concede um crédito de $500 para João, "criando" uma conta
corrente em seu nome em um valor de $500.
Essa medida imediatamente cria uma situação na qual existem
reivindicações contraditórias sobre o dinheiro físico existente. Os depositantes continuam em posse de recibos
que lhe conferem a propriedade sobre $1.000, pois em momento algum eles
renunciaram ao seu direito sobre a quantia total de seus depósitos. Porém, João agora também possui um título
sobre $500. Claramente, é impossível que
todos esses títulos de reivindicação sejam satisfeitos pela quantidade existente
de dinheiro nos cofres do banco.
Em
nível jurídico, essa situação está propensa a acabar em litígio. Em nível econômico, ela implica
imediatamente um desequilíbrio, pois os depositantes agem como se eles
realmente controlassem a quantia total de seus depósitos, e João age como se
ele controlasse outros $500. Os membros
dessa pequena comunidade se comportam como se houvesse mais recursos do que
realmente existem. Em suma, eles se
tornaram vítimas de uma ilusão. A ilusão
pode durar algum tempo por causa da seguinte circunstância: os depositantes
raramente pedem a imediata restituição em dinheiro de todos os seus recibos de armazenamento. Esse dinheiro não-reclamado é exatamente o
dinheiro que os bancos podem utilizar para incorrer em reservas fracionárias.
O debate
O
debate entre os economistas austríacos está centrado nesse último tipo de
prática bancária. Durante muito tempo, a
visão austríaca padrão rejeitava a prática bancária de reservas fracionárias. Desde a publicação de seu livro The Theory
of Money and Credit, em 1912, Ludwig von Mises (1980, 1998) rejeitou a
prática bancária das reservas fracionárias por razões econômicas. F. A. Hayek seguiu o mesmo caminho (1929,
1931, 1937), pelo menos em suas primeiras obras sobre questões monetárias. Já Murray Rothbard (1983, 1990, 1991, 1993,
1994) rejeitava a prática por questões econômicas e éticas.[1]
Desvios
dessa ortodoxia começaram com Lawrence H. White em seu
livro de 1984, Free Banking in Britain
e em obras posteriores (1989, 1999). A
defesa feita por White das reservas fracionárias foi ampliada e sistematizada
por seu aluno George
Selgin (1988) em The Theory of Free Banking, bem como em uma
posterior coleção de artigos (1996). Vários
outros autores se juntarem ao grupo, mas nenhum exerceu a mesma
influência. Exceto pelos escritos de
Rothbard (1988) e Walter Block (1988), praticamente ninguém defendeu a posição
ortodoxa no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Assim, a defesa do sistema bancário de
reservas fracionárias, operando em um ambiente sem um banco central, estava a
ponto de se tornar um princípio da ortodoxia austríaca, ao menos no que dizia
respeito às obras publicadas. Foi esse
sucesso de White e Selgin que despertou interesse em suas obras e levou outros acadêmicos
austríacos a analisarem criticamente seus argumentos.[2]
Até
hoje, White e Selgin responderam apenas de modo bastante incompleto a essas
críticas[3]. Sendo
assim, no restante deste artigo, limitarei minha exposição a alguns dos
principais argumentos que convincentemente demonstram os problemas inerentes a
um sistema bancário de reservas fracionárias.
Sustentabilidade
e deterioração institucional
A
primeira coisa a ser observada é que um sistema bancário de reservas
fracionárias não pode ser visto como algo desconectado de bancos centrais,
papeis-moeda de curso forçado e instituições monetárias internacionais, como o
FMI. Em última instância, essas instituições
são tentativas fracassadas de resolver os problemas gerados pelo sistema
bancário de reservas fracionárias. Elas
foram criadas com o intuito de centralizar todas as reservas em dinheiro e para
permitir que os bancos pudessem, em determinados momentos, se recusar a
restituir em dinheiro as demandas de seus depositantes.
O
principal problema dos bancos que praticam reservas fracionárias é que eles, a
todo e qualquer momento, encontram-se virtualmente insolventes — pois seus
passivos monetários são sempre maiores do que a quantidade de dinheiro em seus
cofres.[4] Se muitos clientes exigirem a restituição de
seus depósitos em dinheiro, o banco estará condenado. Pode-se alegar que o banco sempre tentará
manter em seus cofres uma quantia de dinheiro suficiente para satisfazer as
demandas por restituição. Porém,
exatamente qual quantia de dinheiro é "suficiente"? Por causa da incerteza inerente a todos os
empreendimentos humanos, não há uma maneira cognitiva de o banco responder a
essa pergunta. Tudo o que ele pode fazer
é incorrer no método de tentativa e erro.
E, nesse processo, ele tentará diminuir ao máximo possível a proporção
de suas reservas em relação ao seu passivo, pois fazer isso é uma maneira de
ganhar vantagem frente à concorrência dos outros bancos. Obviamente, tal empreendimento intensifica a
probabilidade de que, um dia, ele ficará com uma quantia menos do que
suficiente de dinheiro para restituir seus depositantes.
Ademais,
a quebra de um banco que pratica reservas fracionárias pode desencadear a quebra
de vários outros bancos que também praticam reservas fracionárias, como um
efeito dominó. Várias crises bancárias
do passado realmente geraram um efeito dominó, e culminaram no colapso de todo
o sistema bancário.
A
vulnerabilidade de todo o sistema bancário serviu de argumentação poderosa
tanto para a regulamentação do setor bancário quanto para o estabelecimento de
bancos centrais, os quais supostamente deveriam fornecer "liquidez" para o
sistema em momentos de adversidade.
Entretanto, o banco central criar dinheiro para resolver "problemas de
liquidez" é uma medida que dura apenas por um determinado tempo. Tão logo os bancos se acostumam a serem
prontamente socorridos com grandes quantias de dinheiro em situações de
emergência, eles perdem o medo de tais situações e começam a emitir recibos de
armazenamento — isto é, a criar contas-correntes para empréstimos sem lastro
— em escalas cada vez maiores. Assim,
ao invés de solucionar os problemas do sistema bancário de reservas
fracionárias, os bancos centrais apenas exacerbam o risco moral e multiplicam
esses problemas.
A
mesma bagunça foi gerada por todas as tentativas de se resolver esse problema
causado por bancos centrais por meio da criação de bancos centrais
internacionais, papel-moeda de curso forçado e outras invenções. Em suma, um sistema bancário de reservas
fracionárias é insustentável, e não pode ser salvo ou aprimorado por outros
esquemas. No entanto, ele permite a
criação de políticas ilimitadas, as quais no passado foram apoderadas pelos
inimigos da propriedade privada e da livre iniciativa para que estes pudessem
criar um número cada vez maior de instituições políticas centralizadoras.
Os supostos
benefícios da reservas fracionárias
Os
únicos beneficiários permanentes do sistema bancário de reservas fracionários
são os próprios banqueiros — que são protegidos da concorrência por meio de
barreiras à livre entrada no mercado bancário e de outras regulamentações — e
os vários governos, que possuem um ávido interesse em ter acesso imediato a um
dinheiro "adicional". E o fornecimento
desse dinheiro extra é algo que bancos que operam com 100% de reservas não
podem oferecer.
Tentativas
de equilibrar os custos e benefícios do sistema bancário de reservas
fracionárias, "olhando de uma perspectiva puramente econômica", apenas
obscurecem o fato de que tal esquema é amplamente favorável ao enriquecimento
de vários grupos de interesse. O fato
incontestável é que o sistema bancário de reservas fracionárias cria ganhadores
e perdedores. Com efeito, nas ciências
econômicas, os termos 'custos' e 'benefícios' se referem à ação humana
individual. Custos são os custos de
oportunidade derivados da ação de um indivíduo, e benefícios também são sempre
os benefícios gerados para um indivíduo.
Se uma instituição cria benefícios para alguns membros da sociedade ao
mesmo tempo em que piora a situação de outras pessoas, então simplesmente não
há bases para a afirmação de que, "de uma perspectiva puramente econômica", os
benefícios justificam os custos ou os riscos ou qualquer outra coisa.
Tal
é o caso dos supostos benefícios do sistema bancário de reservas
fracionárias. Vamos supor, em prol da
argumentação, que o sistema bancário de reservas fracionárias estimule a
industrialização. Disso não se pode
concluir que esse tipo de arranjo bancário seja algo bom. Algumas pessoas — por exemplo, os
banqueiros, empreendedores sem propriedade, e o governo — irão lucrar com uma
industrialização rápida e financiada pelos bancos. Entretanto, outras pessoas — por exemplo,
donos de propriedades, capitalistas-empreendedores e artesãos utilizando
tecnologia tradicional — ficarão em desvantagem em decorrência de tal
crescimento artificial. Não há nenhuma
base científica para a afirmação de que o primeiro grupo deve ser privilegiado
em detrimento do segundo.
Ademais,
embora provavelmente seja verdade que o sistema bancário de reservas
fracionárias promova a industrialização,
não é verdade que ele promova o crescimento
econômico. O crescimento econômico
depende, é fato, de uma maior "abundância" ou de um "aprimoramento" dos bens a
serem utilizados pelos indivíduos. Independente
de qual seja a escala de valores do indivíduo, o crescimento depende da
quantidade disponível de fatores de produção e da sagacidade como esses fatores
são combinados entre si. Claramente,
imprimir dinheiro não aumenta a quantidade de fatores necessária para a
produção, tampouco aprimora a capacidade empreendedorial. Disso se conclui que, na melhor das
hipóteses, bancos que praticam reservas fracionárias jogam a economia em um diferente caminho de crescimento; eles
redirecionam a renda de modo a produzir um diferente tipo de crescimento; mas
eles não aumentam — e nem são capazes de aumentar — o crescimento geral de
economia.
Também
é errado supor que o sistema bancário de reservas fracionárias seja
particularmente adequado para "ajustar" a oferta monetária em resposta a
mudanças na demanda, da parte dos indivíduos, por mais dinheiro em seus
encaixes — isto é, quando as pessoas decidem reter mais dinheiro consigo. O motivo é que, antes de tudo, nenhum ajuste
especial é necessário. Quando alguém
aumenta sua demanda por mais dinheiro, isso significa que ele está disposto a
pagar um preço maior para obter dinheiro ou — o que dá no mesmo — que ele
quer um preço maior para o dinheiro que ele está vendendo. Em ambos os casos, o aumento dessa demanda
por dinheiro aumenta seu poder de compra, equilibrando desta forma a demanda e
a oferta de dinheiro. E o mesmo é
válido, obviamente, para o caso de uma redução na demanda por dinheiro.
Portanto,
a oferta de dinheiro não precisa ser ajustada à demanda por dinheiro. Ao contrário de todas as outras mercadorias,
o dinheiro constantemente se ajusta por si mesmo às condições do mercado. Os serviços
prestados por qualquer unidade de dinheiro são constantemente ajustados sob o
impacto das mudanças na demanda e oferta de dinheiro. É claro que tal ajuste automático não se dá
em benefício de todos. Nenhum ajuste
consegue tal proeza, e nenhum arranjo institucional, como o sistema bancário de
reservas fracionárias, pode alterar esse fato.
Reservas
fracionárias e os ciclos econômicos
Conclui-se
que é errada a afirmação de que um aumento na oferta de dinheiro fiduciário (recibos
fiduciários, isto é, recibos de armazenamento em uma quantia maior do que o
total de dinheiro real nos cofres dos bancos) pode "contrabalançar" um aumento
na demanda por dinheiro. Aumentos na
demanda por dinheiro se neutralizam sozinhos.
O real impacto da criação de recibos fiduciários adicionais vem em duas
partes.
Por
um lado, a criação de recibos fiduciários adicionais reduz o poder de compra do
dinheiro — um efeito igual ao que ocorreria caso houvesse um aumento no
dinheiro propriamente dito, o dinheiro real.
Por outro lado, entretanto, e em distinto contraste com aumentos na
oferta de dinheiro real (no caso, um dinheiro metálico), recibos fiduciários
adicionais geram um ciclo econômico.
Como já mencionado, tão logo esses recibos são criados, as pessoas
começam a agir de maneiras incompatíveis com a real oferta de bens na economia. Essa reação é precisamente o que está no
cerne daquilo que os economistas chamam de desequilíbrio.
Um
aumento na oferta de dinheiro real (dinheiro metálico) não gera um desequilíbrio porque os participantes do mercado podem antecipar o impacto que essa
quantidade adicional de dinheiro terá sobre os preços e também porque,
normalmente, é explícito quem é o proprietário de cada nova unidade monetária.[5]
Os
participantes de mercado podem também antecipar o impacto que a criação de
recibos fiduciários adicionais terá sobre os preços. Entretanto, embora normalmente seja claro
quem é o proprietário de cada recibo, de modo algum é claro quem é o dono do
dinheiro ao qual tais recibos se referem.
Existem mais recibos do que dinheiro.
Eis aqui a contradição. Eis aqui
a raiz do desequilíbrio gerado pelo sistema bancário de reservas fracionárias.
Paulo
possui $1.000 em sua conta-corrente.
Todos os seus empreendimentos e todos os seus gastos com consumo se
baseiam nesse valor que ele crê possuir em sua conta-corrente. Roberto pensa e age da mesma forma. Ele possui $2.000 em sua conta-corrente. Entretanto, o banco na realidade possui
apenas $500 em seus cofres. Trata-se de
um banco que pratica reservas fracionárias; todo o seu negócio se baseia na
esperança de que Paulo e Roberto jamais irão, em conjunto, pedir a restituição
em dinheiro de grande parte de seus recibos.
Assim,
resta a pergunta: enquanto esse esquema funcionar, vale a pena se preocupar com
ele? Será que a realidade é algo
diferente daquilo que as pessoas acreditam ser real?
Defensores
do sistema bancário de reservas fracionárias implicitamente endossam a ideia de
que 'realidade' é aquilo que as pessoas creem ser real. Partindo do óbvio fato de que o indivíduo que
mantém em sua posse um recibo de depósito deseja manter consigo esse recibo, os
defensores deduzem que as pessoas adquirem recibos de depósito não porque eles
sejam um meio conveniente de portar dinheiro, mas sim porque elas querem portar
esses recibos per se. Assim, para esses
defensores, não há absolutamente nenhuma diferença fundamental entre uma
unidade de dinheiro real e um recibo que se refere a esse dinheiro. Tanto o dinheiro real quanto o recibo são
formas de "dinheiro". Ambos se diferem
um do outro apenas em grau, não em tipo.
Afirmo
que essa crença é uma absurdidade que precisa apenas ser explicitada para se
tornar óbvia. Existe uma diferença fundamental entre um pedaço de propriedade e
um recibo — por exemplo, entre uma onça de ouro e um recibo de armazenamento
para uma onça de ouro; ou (hoje) entre uma cédula de dinheiro e um cheque que
dá a alguém a propriedade sobre uma cédula.
Similarmente, há uma diferença fundamental entre um título que é redimível
agora e um título que se torna redimível apenas no futuro. Apenas uma propriedade física e evidente pode
de fato ser poupada ou investida, ao
passo que o uso de recibos de depósito (instantaneamente redimíveis em
dinheiro) apenas nos faz crer que realmente
poupamos ou investimos algo.
Por
sua própria natureza, o sistema bancário de reservas fracionárias cria uma
diferença entre o que existe de fato e o que as pessoas creem que existe. Ele faz as pessoas pensarem que estão em uma
situação melhor do que realmente estão — e essa convicção desencadeia a fase
expansionista do ciclo econômico.
Entretanto, mais cedo ou mais tarde, quando as pessoas descobrem que, em
seus empreendimentos, elas se basearam em coisas que não existiam, a recessão
inevitavelmente chega.
Um sistema
bancário de reservas fracionárias honesto
O
sistema bancário de reservas fracionárias nada mais é do que um esquema Ponzi
em larga escala. Ele enriquece alguns à
custa de outros. Ele gera distúrbios
econômicos e serve como instrumento auxiliar dos governos e de outros grupos de
interesse.
O
melhor argumento a favor do sistema bancário de reservas fracionárias invoca a
liberdade de escolha e de contrato.
Deveria o sistema de reservas fracionárias ser proibido caso todos os
agentes envolvidos soubessem o que estão fazendo? Não, não deveria, pois nenhuma lei deveria
suprimir qualquer atividade insensata apenas porque ela é insensata. Porém, sejamos mais específicos sobre o que a
frase "todos os agentes envolvidos soubessem o que estão fazendo"
implicaria. Bancos de reservas
fracionárias teriam de utilizar uma linguagem diferente da que normalmente
utilizam, pois palavras como "depósito" são enganosas. Eles teriam de deixar claro que o dinheiro
"depositado" junto a eles é, na verdade, um crédito de duração não
especificada. E os "recibos de
armazenagem" que eles emitem teriam de ser apresentados não como dinheiro mas
como algum tipo extremamente líquido de nota promissória. Assim, bancos de reservas fracionárias
honestos teriam de instruir seus clientes mais ou menos da seguinte forma:
Quando você deposita seu ouro em nosso Banco RF,
você abre mão da sua propriedade sobre ele por um período de tempo
indefinido. Nós nos tornamos os
proprietários do ouro e podemos utilizá-lo da maneira que mais nos
aprouver. Em troca, damos a você
"recibos RF" no valor da quantia total do seu depósito, pagamos a você x% de
juros sobre o investimento, e prometemos fazer o possível para restituir seu
investimento em ouro quando você o demandar.
Se por algum motivo não formos capazes de fazer tal restituição, a
seguinte regra se aplica...
Nos
"recibos RF", haveria uma nota promissória do seguinte tipo:
O Banco RF promete ao portador desse recibo tentar
restituí-lo com o ouro de nossas reservas.
Porém, como os recibos RF não são 100% lastreados pelo ouro que
presentemente se encontra em nosso banco, em caso de impossibilidade de
restituição, as seguintes regras se aplicam...
É
perda de tempo especular sobre o sucesso que o sistema bancário de reservas fracionárias
teria caso apresentasse explicitamente essas cláusulas, as quais não existem
hoje. Em uma economia livre, o arranjo
estipulado poderia de fato ser atraente como um investimento com uma combinação
específica de riscos e benefícios, porém é fato que ele claramente em nada
beneficiaria o indivíduo que apenas tem a intenção de manter dinheiro consigo.
As
pessoas mantêm dinheiro consigo porque elas querem ter a certeza de que o
dinheiro vai estar ali quando precisarem dele (caso contrário, já teriam se
desfeito dele há muito tempo). É,
portanto, seguro dizer que um sistema bancário de reservas fracionárias honesto
teria uma existência apenas marginal em uma economia genuinamente livre.
Veja também:
O sistema bancário de reservas fracionárias
O sistema bancário brasileiro e seus detalhes quase nunca mencionados
Como funcionaria o padrão-ouro
_________________________________________________
Notas
[1] Mises originalmente concedeu algumas vantagens para o
sistema bancário de reservas fracionárias; porém, mais tarde, repudiou essa
concessão. No cômputo geral, ele sempre
foi um sincero e aberto oponente dessa prática.
Sobre isso, ver o importante trabalho de Salerno (1993), em particular
pp. 139ff. Ver também Hülsmann (2000).
[2] Ver em particular Hoppe 1994; Huerta de Soto 1994, 1995,
1998a, e 1998b; Hülsmann 1996a, 1996b, e 1998; e Hoppe, Hülsmann, e Block 1998.
Ver também Reisman 1996.
[3] Ver, por
exemplo, Selgin and White 1996.
[4] Quanto a esse ponto, os defensores das reservas fracionárias
normalmente dizem que há uma distinção legal entre insolvência e "falta de
liquidez". Sou incapaz de ver qualquer
diferença econômica entre ambos os termos.
[5] Estritamente falando, essa afirmação é verdadeira apenas
para dinheiro metálico (moeda-commodity), e não para dinheiro de papel de curso
forçado. Ver Hülsmann 1998. Essa distinção pode ser ignorada aqui porque
estamos interessados exclusivamente nas diferenças entre aumentos na oferta de
dinheiro metálico e aumentos na oferta de recibos fiduciários.
_____________________________________________
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