[Este artigo é um capítulo extraído do XV volume da série "Pensamentos Liberais", livro lançado em 4 de abril de 2011 pelo IEE]
|
Charge sobre a revolução no Egito
|
Estive neste mês de janeiro de 2011 em Myanmar, também conhecido como
Birmânia
[1]. Surpreendi-me com essa terra de gente
simples, governada por meio da repressão e do medo durante mais de 60 anos de
uma junta militar cruel e opressiva. Na
Birmânia, celulares de estrangeiros não funcionam (não há
roaming), cartões de crédito não são aceitos,
e-mails são proibidos e, ao passo em que a taxa oficial de câmbio é
de 6 kyats por dólar, a taxa no mercado livre é de 800 kyats por dólar.
Enquanto lá estive, li as notícias sobre a luta do povo da Tunísia
contra o Estado policial lá vigente, e sobre como ativistas digitais utilizaram
o Facebook e celulares para driblar a censura e organizar-se de forma decisiva
para derrubar o ditador Ben Ali, surpreendendo o mundo.
Ao chegar ao Brasil há algumas semanas, conversei com meu amigo e
vice-presidente do IEE, Ricardo Gomes, sobre sua visita neste mês a Cuba, para
entrega do Prêmio Liberdade de Imprensa a Yoani Sánchez. Ricardo descreveu-me a saga de Yoani para
publicar seus textos. A cubana incorre
em custos exorbitantes para acesso à web
e tira fotos dos manuscritos de seus textos, que por sua vez são copiadas para pen drives, de forma a minimizar o tempo
on-line e despistar censores.
A partir do dia 25 de janeiro[2], acompanhei, pelo
live feed da AlJazeera na internet,
as manifestações dos revoltosos contra o ditador Mubarak no Egito. No momento em que escrevo, dia 11 de
fevereiro, Mubarak acaba de renunciar, e a praça Tahrir está em júbilo. Alguns dos
principais líderes e heróis da revolução foram blogueiros (também chamados de netizens, net+citizens) e ativistas digitais (ou hacktivistas), que utilizam as redes sociais como Twitter e
Facebook, muitas vezes anonimamente, tanto como fonte de ideias quanto para
mobilização on-line e off-line. E notou-se a ausência de partidos políticos,
grupos religiosos e outras organizações e indivíduos conhecidos no alto comando
do levante. Cristãos, muçulmanos e não religiosos protestaram unidos[3], e juntos limparam as ruas, policiaram a vizinhança,
protegeram os museus e se abstiveram de portar mensagens com teor partidário ou
religioso.
O que há em comum entre os recentes acontecimentos? O que está acontecendo no mundo? Qual o papel
da internet daqui para frente?
Cyberutópicos - que acreditam que a internet nos levará à liberdade e à democracia
plenas — e cybercéticos — que
duvidam que a internet tenha qualquer relação com a liberdade ou a política — vêm
travando um debate há algum tempo.
Porém, os recentes acontecimentos parecem indicar que uma terceira
visão, que chamarei de cyber-realista,
parece ser a que melhor reflete os últimos acontecimentos.

|
Uma das líderes da revolução no Egito |
A internet triunfou: os protestos
on-line
transcenderam os botões de "Curtir" e o "ReTweet", e inspiraram o levante no
mundo real. Por outro lado, os governos
mostraram a face negra do autoritarismo covarde, e não surpreendentemente
fizeram uso da ilegalidade e de legislação sem legitimidade para conter os
avanços dos dissidentes. O governo
egípcio, por exemplo, obrigou operadoras de telefonia como a Vodafone e outras
a transmitir, desde o início dos protestos, mensagens em massa clamando os "
homens honestos e fiéis (à pátria)" a
confrontar "
os traidores e criminosos"
e a "
proteger nosso povo e a honra",
participando de marchas pró-Mubarak
[4]. Adicionalmente, para surpresa de alguns
cyberutópicos, com uma simples tacada o
governo egípcio ordenou que os quatro provedores de internet, assim como os de
telefonia, interrompessem totalmente as conexões no dia 27 de janeiro, isolando
o Egito do mundo por vários dias. A
insurreição continuou firme, no entanto, e teve êxito com a renúncia de Mubarak
no dia 11 de fevereiro.
Mas o que podemos dizer sobre o futuro da censura e da liberdade no
Brasil? Devemos ser cybercéticos, ou cyber-realistas? O que podemos esperar da internet? Antes de dissecar a questão, no entanto, é
importante traçar uma retrospectiva histórica da mídia e da censura.
O que a história tem a dizer
Uma das frases marcantes do economista austríaco Ludwig von Mises é "Somente ideias podem suplantar ideias".
Ideias, no entanto, não se disseminam no vácuo.
Durante milênios, as ideias disseminaram-se por métodos tradicionais,
tais como boca a boca, papiros e pergaminhos.
Os governos, desde sempre, lutam contra a massificação da informação não
controlada. A batalha entre a censura e
a livre expressão é milenar. Sócrates
foi condenado à morte por "corromper os jovens", e os governantes, na antiga
República Romana, instituíram censores[5] a partir do
século V a.C., para regular os "bons costumes".
A partir do século XV, o custo da disseminação de informações no
Ocidente diminuiu substancialmente devido à tecnologia da prensa tipográfica e à
criação do livro no formato moderno. Nessa época, como resposta às ideias de
Lutero e outros, consideradas perigosas, a Igreja Católica baniu e queimou
milhares de livros e processou autores por heresia, inclusive condenando vários
à fogueira[6].
À medida que o número de jornais cresceu e a informação passou a ser mais
bem difundida na Europa do século XVI e XVII, cresceu também a preocupação dos
governantes quanto à sua sustentabilidade no poder. Os impostos eram coletados presencialmente,
sob ameaça de confisco dos bens remanescentes ou prisão, em caso de
inadimplência. E com o crescente número
de guerras europeias, os governos aumentaram os impostos, provocando reações da
população. Os jornais serviram de meio
para algumas críticas da população, assustando os governantes, que contavam com
os jornais como veículos exclusivos de divulgação de propaganda governamental.
O copyright, por exemplo, teve
origem nos esforços dos governos europeus de controlar o conteúdo dos livros e
jornais. Com o copyright foram
estabelecidos "direitos de impressão de cópias", que serviam como controles
tanto para a produção quanto para a comercialização de livros, controles esses
por meio dos quais o governo conseguia regular o conteúdo e obter espaço
importante para a divulgação de propaganda.
Do outro lado do Atlântico, é possível que a Revolução Americana de 1776
não houvesse ocorrido não fosse a crucial participação da imprensa nas décadas
que a antecederam. Nesse período, a circulação de jornais cresceu
exponencialmente, beneficiada por uma modesta liberalização dos herméticos
controles da coroa inglesa à imprensa, especialmente nas colônias[7].
O panfleto de Thomas Paine — "Common
Sense" — dissecou argumentos para a libertação das colônias em uma época
em que ainda não havia consenso sobre a independência da Inglaterra. Durante
seu primeiro ano de circulação, 500.000 cópias foram vendidas, em numerosas 25
edições. Tal número é ainda mais impressionante se levarmos em conta a
população total das colônias à época — apenas 2.400.000 habitantes, incluindo
escravos e índios, crianças e idosos. "Common
Sense" teve crucial importância para a consolidação das ideias de
independência.
Neste século XXI, no entanto, o principal meio de disseminação de ideias
— principalmente daquelas ideias antagônicas ao status quo e ao mainstream
— tem sido a internet. Durante o século
XX, as ideias eram principalmente difundidas por livros, editoriais em jornais,
revistas especializadas e alguns programas selecionados de televisão. De alguns
anos para cá, porém, jornais passaram a ser principalmente provedores de
serviços, e subsidiariamente provedores de notícias locais, de esportes e de
política. Os jornais dotados de conteúdo editorial e análises profundas — veiculadores
de ideias no segmento de impressos diários — estão perdendo espaço
mundialmente.
Adicionalmente, inclusive no que tange a noticiário sem análise, a
internet já supera os jornais. Nos Estados Unidos, desde 2008, a internet
supera os jornais como fonte de notícias em geral, e hoje cerca de 41% dos
americanos obtêm notícias pela internet, que é superada apenas da televisão,
com 66% de participação[8]. E entre os homens com idade entre 18 e 49
anos, a internet já supera a televisão como fonte de notícias[9].
E ainda mais recentemente, os livros e jornais estão migrando para
formato eletrônico, e são utilizados em dispositivos como o iPad, Kindle e
celulares[10].
O rádio, a televisão e o negócio de livros possuem características muito
diferentes das da internet. Nenhum deles viabiliza a divulgação de ideias pela
massa de cidadãos comuns. Tampouco são desenhados para comunicação interpessoal
em massa. A
internet e as novas tecnologias, por outro lado, não só viabilizam a divulgação
de ideias pelo cidadão comum[11] como também permitem
que os netizens tirem partido de
eventuais vulnerabilidades dos sistemas operados por governos ou empresas, agindo
à margem do Estado de Direito, como o WikiLeaks tem demonstrado.
Em suma, neste atual cenário, as barreiras à entrada de novos provedores
de ideias desapareceram, e a tecnologia permitiu a viabilização de inúmeros
nichos formados por produtores e consumidores de ideias questionadoras do
conformismo massificante comum à mídia de massa e ao mainstream[12]. Decerto, a internet não possui uma ideologia
nativa, mas sua estrutura e tecnologia favorecem o dinamismo de pensatas,
liberais ou não, que outrora não obtinham eco.
A internet pode ser controlada?
Há tempos circula um mito persistente: o de que "não se pode controlar a disseminação de informação na internet". O
mito sustenta que governos não são capazes de conter tal disseminação,
principalmente por conta da tecnologia na qual a internet se baseia. Segundo o
mito, não é necessário se preocupar, pois o governo já teria perdido essa
guerra. Afirma-se que a informação relevante virá à tona, de alguma forma, pela
característica da rede: descentralizada, sem governança central, e na qual a
informação viaja por rotas alternativas e redundantes. Ainda que a maior parte
da rede mundial fique inoperante, a informação é capaz de ser transmitida
adequadamente entre as partes remanescentes. De fato, a internet foi
originalmente concebida de forma a resistir a um ataque nuclear.
Certamente tendo o contexto acima em mente, nos primeiros anos da
internet, John Gilmore, fundador da Electronic Frontier Foundation, declarou
que "a internet interpreta a censura como
dano, e a evita fazendo um desvio".
Tal assertiva é apenas parcialmente verdadeira. Talvez seja mesmo
impossível impedir que uma dada informação venha à tona na internet em algum
momento. Porém, o governo pode bloquear
e fechar sites, filtrar e censurar
informações, bloquear acessos por endereço IP[13],
tornar ilegais certos modos de expressão, perseguir disseminadores de
informação, entre outros meios. Em suma,
o governo pode tornar muito custosa a disseminação, alcançando na prática seu
objetivo.
A Birmânia, por exemplo, possui um firewall[14] nacional que isola o país e torna a internet local uma
mera intranet [15]
de informações amigáveis ao governo. O acesso à internet (sem censura) pelos
birmanos só é possível caso utilizem proxy
servers, que permitem acessar indiretamente os sites bloqueados, via triangulação. Há uma interminável lista de sites bloqueados, que inclui, entre outros,
aqueles de exilados, da mídia internacional, blogs e até sites de
bolsas de estudo no exterior. É também proibido por lei ter contas de e-mail não fornecidas pelo governo. Eu
não consegui acessar minhas contas, nem mesmo dos provedores brasileiros! Entretanto,
percebi que na capital Yangon há praticamente um cybercafé a cada quarteirão. A
população faz uso do anonimato propiciado pelos cybercafés para driblar a lei,
sem dúvida com alguma ajuda dos próprios funcionários para utilização dos proxy servers. O governo há algum tempo
obrigou a instalação de câmeras em todos os cybercafés, e também os obrigou a
enviar ao governo um print screen, a
cada cinco minutos, de todas as sessões dos usuários. Também são obrigados a
fornecer os números de identidade, telefone e endereço dos usuários, se
requisitados pela polícia. Assim prevê a legislação, chamada de Lei Eletrônica
de 1996.
A limitada velocidade de conexão também é usada pelo governo da Birmânia
como meio de conter a disseminação de ideias. A conexão padrão é de 512K, mas
usualmente essa conexão é compartilhada por vários usuários. Eu despendi cerca
de uma hora para fazer cinco pagamentos no site
do meu banco.
E o governo não hesitou em derrubar a "internet" (na verdade derrubou a intranet local) e as linhas de telefone
por longos períodos em maio e junho de 2009, enquanto durou o julgamento da
heroína vencedora do Nobel da Paz e líder da oposição Aung San Suu Kyi[16], pela alegada violação dos termos de sua prisão
domiciliar, por haver abrigado e alimentado o americano John Yettaw, que nadou
até sua casa, sem ser convidado, furando o bloqueio policial. E o governo fez o
mesmo durante a repressão aos protestos antigovernamentais de 2007 liderados
pelos monges (a "Revolução do Açafrão"), que causou a morte de mais de 130
pessoas. Entre o dia 28 de setembro e 6 de outubro de 2007, a internet não
funcionou e os cybercafés foram fechados, com a justificativa oficial de
"manutenção". Ainda hoje o mundo ignora os detalhes desse massacre hediondo
contra mulheres, ativistas e monges que protestavam pacificamente nas ruas de
Yangon, Mandalay e várias outras cidades.
Na Birmânia, o Facebook pode ser acessado parcialmente, na área de mural
— já o acesso às áreas de mensagens privadas é bloqueado. Uma amiga, que
incluiu um post no seu mural contendo
a palavra "Birmânia", recebeu uma mensagem de seu software antivírus indicando que havia sido instalado um software de keylogger no seu notebook.
O keylogger típico registra todas as
teclas pressionadas pelo usuário e envia esses dados para o instalador do software malicioso. Por sorte, minha
amiga ficou ciente do problema por meio de seu antivírus e teve extrema cautela
até sair do país.
Sim, permanece possível acessar e-mails
e internet na Birmânia (ilegalmente), mas a que preço? Ao preço de ser preso por anos a fio, caso
descoberto? Não, o exemplo da Birmânia
mostra que governos podem censurar a internet na prática.[17]
Além disso, os governos podem efetivamente tirar proveito da internet
para perseguir os ativistas, pesquisando seus hábitos, estudando suas
declarações, identificando seus nomes, instalando softwares maliciosos.
Finalmente, os governos podem usar a internet para fazer propaganda,
como no caso do governo Mubarak e no de vários países. Na China, por exemplo,
há cerca de 250.000 comentaristas treinados e pagos para sorrateira e
dissimuladamente defender o Partido Comunista em sites, redes sociais e chatrooms.[18]
A censura na internet no Brasil e no resto do mundo
Até agora foram analisados alguns exemplos considerados extremos, que,
portanto, parecem ter pouca relação com a realidade brasileira. Essa
interpretação é tentadora, mas enganosa.
Os países dotados de democracias consolidadas, como o Brasil, os Estados
Unidos, países da Europa Ocidental, a Austrália, o Canadá e outros supostamente
possuem razoáveis defesas às acometidas de seus governos contra disseminadores
de ideias consideradas "dissidentes" ou "subversivas". Porém, os donos do poder usualmente
aproveitam toda e qualquer oportunidade que possa servir de ensejo para o
estabelecimento de amarras ao livre discurso de ideias, bem como de
instrumentos legais para a perseguição de inimigos políticos. Tais janelas de
oportunidade surgem em ocasiões de insegurança e de temores da população, reais
ou imaginários, em relação a perigos externos, crises em geral, ocorrência de
crimes hediondos (v.g., abuso sexual infantil) e outros. E portanto, em nome de uma boa justificativa,
e de posse de um discurso de intenções que quase nunca tem a ver com as reais intenções, implementam leis e
regras que concederão ao governo o grau discricionário necessário para a
viabilização da censura a posteriori.[19]
É possível conjecturar sobre a trajetória futura de atuação dos inimigos
da liberdade de expressão nos países democráticos. É natural esperar que:
a) utilizem uma justificativa "nobre" e
"razoável", e que busquem o caminho de menor
esforço e menor risco, ou seja,
que escolham aquelas matérias para as quais boa parte da população clama por
uma atitude do governo;
b)
iniciem sua atuação com medidas de
escopo limitado e penalidades brandas; mas
caso ocasiões futuras abram brechas, é de se esperar que aumentem o escopo ou
as penalidades;
c) que tentem cooptar e tornar
corresponsáveis legais os intermediários da informação, como, por exemplo, os
provedores de acesso (ISPs) e de hospedagem de sites, bem como os blogueiros;
d) que mencionem iniciativas implementadas
por países com "credibilidade" como uma das justificativas para a implementação
de iniciativa similar no país.
A perseguição ao anonimato
Aquilo que Thomas Jefferson chamou, na Declaração de Independência, de "longo trem de abusos e usurpações",
começa em geral — no que se refere à censura — pela proibição ao anonimato. O anonimato protege o autor de eventuais
perseguições, de chantagens e de ataques maliciosos de ordem pessoal, e mantém
o foco nas ideias. Os fundadores dos
Estados Unidos sabiam da importância do anonimato, e o consagraram na
Constituição. Alexander Hamilton e James
Madison escreveram os "Federalist Papers"
sob o pseudônimo "Publius", e vários
outros fundadores utilizaram pseudônimos diversos de tempos em tempos. Recentemente, em 1995, a
Suprema Corte, declarou: "A proteção de
discursos anônimos é vital para a democracia. Permitir que dissidentes protejam
sua identidade os libera para expressar visões críticas defendidas por
minorias. O anonimato é a proteção contra a tirania da maioria".[20]
Adicionalmente, o anonimato on-line
protege aqueles que desejam reportar abusos e ilegalidades cometidos pelo
governo ou companhias, protege defensores de direitos humanos contra governos
repressores e auxilia vítimas de violência doméstica a reconstruírem suas vidas
em um ambiente ao qual seus violadores não cheguem.
No Egito, um dos maiores articuladores da revolução foi um anônimo
conhecido como ElShaheed (mártir, em português), que controla uma página no
Facebook denominada "We Are All Khaled
Said", que possui centenas de milhares de seguidores[21].
Já a Constituição do Brasil, por outro lado, proíbe expressamente o anonimato. Aproveitando a brecha gerada pela
lei suprema, será apresentado neste mês de fevereiro de 2011 um projeto de lei
de autoria do senador Magno Malta que prevê a ilegalidade de pseudônimos,
também conhecidos como perfis falsos,
na internet. Magno Malta inspirou-se no
exemplo da Califórnia, que, por sua vez, acaba de aprovar uma lei que prevê
multa e prisão para quem utilizar perfil falso na internet.
No Brasil, todos os que utilizam a internet precisam se identificar
junto ao seu provedor e incluir CPF e endereço, entre outros dados. E em São Paulo, a lei
12.228/06, promulgada por Geraldo Alckmin, obriga cybercafés a manterem um
cadastro completo de todos os usuários, incluindo o equipamento utilizado e os
horários detalhados[22], e prevê multa de até dez mil
reais.
A justificativa dos inimigos do anonimato on-line é quase sempre a de que o anonimato "dificulta a
identificação de criminosos virtuais".
As determinações legais, no entanto, não inibem os chamados "criminosos
virtuais". Como dizia meu pai, ministro
Helio Beltrão, "a excessiva exigência
burocrática só serve para dificultar a vida dos honestos sem intimidar os
desonestos, que são especialistas em falsificar documentos".
A frase é válida para o mundo virtual de hoje. Para obter-se o anonimato
on-line (com boas ou más intenções),
não é necessário mais que alguns recursos tecnológicos criativos, ou documentos
falsos (ou de "laranjas") para registro junto ao seu provedor de acesso ou de
hospedagem. Desta forma, há proteção
caso o governo resolva perseguir o anônimo, o que não ocorre com aqueles que
seguem a legislação fielmente.
Não há dúvida: a proibição ao anonimato tem como resultado principal a
inibição do discurso livre e desimpedido, por meio do constrangimento dos
honestos.
Normas sobre o conteúdo
O próximo vagão do longo trem de
abusos parece ser o estabelecimento de normas para reger o conteúdo
"apropriado" ou "equitativo".
A censura on-line é
normalmente justificada como meio necessário para conter discursos ou imagens
considerados "criminosos", como, por exemplo, os discursos discriminatórios, a
obscenidade, a "apologia" ao crime, o cyberbullying,[23] discursos subversivos à pátria, discursos incitando o
ódio, desrespeito a crenças religiosas, discursos relacionados à segurança
nacional.
Não há dúvida de que a maioria de nós considera inapropriados vários
entre os casos listados acima, mas isso não quer dizer que eles devam ser
considerados ilegais ou criminosos. Um
crime deve pressupor a existência de uma vítima,
que tenha sofrido dano físico à sua
pessoa ou propriedade (ou uma ameaça clara e presente de dano). Um "crime sem vítima" não deveria ser
considerado crime.
Parece-me um atentado ao bom senso considerar que conjuntos de palavras
ou meras imagens caracterizem crimes por si só. Palavras e imagens podem conter evidência de crime, como, por exemplo, uma confissão de um
assassinato ou uma fotografia de um estupro. No entanto, palavras ou imagens
não constituem um crime em si próprias e, portanto, sua publicação não deveria
ser restrita.
Como dito acima, uma vez estabelecidos os dispositivos legais, a
tendência natural dos governos é usá-los de forma mais agressiva e abrangente
do que o pretendido e declarado à época de sua promulgação. A tipificação dos supostos
crimes virtuais listados acima é, por sua natureza, arbitrária e vaga. O que
deve ser considerado "discriminatório", por exemplo? E o que poderia caracterizar uma "incitação
de ódio"? As lacunas dessas definições
são em grande medida apropriadas pelos governos em geral tendo em vista seu
próprio interesse.
No Canadá, uma comissão denominada Comissão Canadense de Direitos
Humanos (CCDH) tem o poder de processar aquele que publicar na internet algo "que possa expor um indivíduo à aversão ou
menosprezo". A falaciosa teoria por trás dessa norma parece ser a de que
palavras "danosas" necessariamente levam a atos danosos. Dado o caráter vago e arbitrário da
legislação, a comissão tem obtido cem por cento de condenação em seus
processos. Cada vez mais a CCDH tem usado seu poder de censura como arma
política, perseguindo cristãos e conservadores, entre outros.
Também no Canadá ganhou relevância o caso em que a Comissão de Direitos
Humanos e Cidadania de Alberta (CDHCA) — cujo nome parece ser pinçado ipsis literis do romance A Revolta de Atlas, de Ayn Rand — perseguiu
o ex-editor-chefe Ezra Levant, da revista Western Standard, que escreveu uma longa matéria que incluiu algumas das charges de
Maomé publicadas anteriormente por um jornal dinamarquês. O processo durou três anos, e Ezra foi
absolvido, mas sua defesa custou ao editor US$100.000 e seu emprego. Ele atribui sua absolvição às imagens que ele
fez de seu interrogatório e que tiveram 400.000 visualizações no YouTube em
poucos dias.
O governo da Austrália, por sua vez, instituiu uma blacklist contendo 1.370 sites,
que remete ao índice de livros banidos na Idade Média. Enquanto se aguarda a
aprovação da lei, que prevê multa de US$11.000 por dia a quem acessar algum dos
sites, os provedores de internet
podem (devem?) aderir ao projeto-piloto voluntariamente. Em tese, não se
conhecem os sites que oficialmente
integram a lista, uma vez que são secretos. Um cidadão, portanto, poderia
sofrer multa, sem se dar conta da contravenção cometida, ao acessar um site de uma lista secreta. A lista — que,
segundo o governo, contém 674 sites
relacionados à pornografia infantil e os demais relacionados a sexo ou temas
adultos[24] — foi posteriormente revelada ao WikiLeaks,
e constatou-se que contém sites de um
dentista, de uma operação de aluguel de empilhadeiras na Holanda e de um canil,
erros óbvios dos burocratas. A lista, que foi vendida à população como um
esforço para "conter a pornografia infantil", já está desvirtuada, e contém
inclusive um site sobre opiniões
sobre o aborto.
A Tailândia também instituiu uma blacklist
secreta com o mesmo objetivo declarado de conter a pornografia infantil.
Mas em apenas alguns meses já continha 1.200 sites banidos por criticar a família real. Vários outros países
estão passando por trajetórias similares.
Outras formas de censura
Uma medida que levanta preocupação é o Acordo de Comércio Anti-Pirataria
(chamado de ACTA). Tal acordo está sendo
costurado por países desenvolvidos com o objetivo de alcançar novos níveis de
sanções em propriedade intelectual, com destaque para o âmbito da
internet. Um de seus objetivos é
intensificar a coobrigação e a responsabilidade legal dos provedores de
internet, para que estes ativamente identifiquem e filtrem o conteúdo das
informações que circulem por sua rede.
Certamente isso levanta sérias questões não somente para a censura, mas
também para os direitos à liberdade e à privacidade.
Similarmente, em diversos países, provedores de hospedagem ou blogueiros
têm-se tornado co-responsáveis pelo conteúdo disponibilizado nas páginas
hospedadas ou administradas por eles. Esse artifício centraliza a
responsabilidade nas mãos de algumas poucas organizações e indivíduos visíveis,
aos quais os governos podem facilmente identificar e ameaçar com punições.
Recentemente, o senador dos Estados Unidos Joe Lieberman contatou
empresas como a Amazon para "solicitar" explicações de seu relacionamento com o
site WikiLeaks. Nos dias seguintes ao contato do senador, diversas
empresas além da própria Amazon, como PayPal, eBay, Mastercard, Visa e outras
declararam haver descontinuado seus serviços ao WikiLeaks após comunicação do
Departamento de Estado indicando que tais serviços seriam "ilegais". Ainda que não possua amparo legal, o exemplo
americano mostra que, quanto maior o poder do governo sobre o setor privado,
maior potência possuem eventuais ameaças tácitas a organizações privadas.
Conclusão
Os acontecimentos recentes, como a revolução no Egito, tiraram quaisquer
dúvidas sobre o vital papel que a disseminação livre e desimpedida de ideias,
com o auxílio da tecnologia e da internet, pode ter na conquista de mais
justiça e liberdade.
Deixaram claro, todavia, que os governos e os interesses especiais não
ficarão passivos e lutarão ferozmente, ainda que de forma dissimulada, para
conter pensamentos dissidentes. Uma
eventual sonolência da população significará a lenta e contínua perda dos
benefícios que temos obtido com o fluxo livre de ideias e informação via internet. Por outro lado, uma população assertiva e
ciente de seu poder como indivíduos soberanos, a exemplo dos revolucionários
egípcios, pode reverter as intrusões governamentais já estabelecidas e tomar
conta de seus destinos.
Por conta da liderança de tunisianos e egípcios, vários povos sedentos
de liberdade e justiça consideram hoje factível e desejável o que antes
julgavam impossível. Outros, no entanto, permanecem anestesiados e incrédulos
quanto ao que se pode alcançar. Espero
que nós brasileiros sejamos parte do primeiro time e que façamos coro ao
escritor Michael Kinsley, que afirmou: "os
limites da livre expressão não podem ser determinados pelas suscetibilidades
daqueles que não acreditam nela".
______________________________________________
Notas
[1] A população da Birmânia é de cerca de 60
milhões de habitantes.
[2] O dia 25 de janeiro foi o primeiro dia das
manifestações, e uma data escolhida a dedo pelos organizadores do
protesto. O dia 25 de janeiro
recentemente havia sido decretado feriado por Mubarak, e denominado o Dia
Nacional da Polícia. A polícia foi o
principal órgão de repressão do regime.
[3] Os cristãos fizeram cordão protetor dos
muçulmanos nos momentos de preces.
[4] A Vodafone veio a público somente dez dias
depois, e declarou que as mensagens foram veiculadas por ordem do governo. Adicionalmente, declarou que estava obrigada
a veicular, pois caso contrário cometeria uma ilegalidade.
[5] Também chamados de castigatores, os censores
podiam, além de determinar se ações individuais estavam de acordo com os bons
costumes (independente da lei), impor os seguintes atos: a) proibir alguém de
permanecer solteiro, quando o casamento e a reprodução fossem do interesse do
governo; b) proibir um determinado tipo de trabalho (teatro, por exemplo); c)
punir aqueles que não cuidassem devidamente de sua plantação, entre outros.
[6] Foi instituída uma lista de livros proibidos a
partir de então, que só foi formalmente abolida pela Igreja Católica em 1966,
por determinação do Papa Paulo VI.
[7] Entre inúmeros controles, os editores de livros
e jornais necessitavam de licenças de operação, que poderiam ser revogadas a
qualquer tempo pelo governo, que podia inclusive sujeitar os proprietários à
prisão. O irmão mais velho de Benjamin
Franklin, James, chegou a ficar preso por um mês.
[8] Fonte: Pew
Research Center
for the People & the Press. A internet só é superada pela televisão, com 66%. Jornais são fonte para 31%, e rádio, para
16%. A soma supera 100% porque os
entrevistados podem indicar mais de uma fonte.
[9] Nessa faixa etária, a internet é fonte de
notícias para 56% dos entrevistados, e a televisão é fonte para 55%.
[10] Rupert Murdoch acaba de lançar um "jornal" -
The Daily - disponível apenas no mundo virtual, via iPad. O custo de uma edição é cerca de R$0,25.
[11] No segmento de livros, por exemplo, a
tecnologia de print-on-demand viabilizou o chamado self-publishing, ou seja, as
publicações independentes de baixo volume por autores desconhecidos. O print-on-demand também viabiliza edições
com baixas tiragens: todos os dezessete livros publicados até agora pelo
Instituto Mises Brasil fazem uso dessa tecnologia.
[12] Os liberais e libertários formam um nicho que
certamente se beneficia das barreiras à entrada declinantes. Pessoalmente,
posso atestar que o Instituto Mises Brasil (e possivelmente outras organizações
similares) não existiria com o escopo e o tamanho atuais não fosse a internet.
[13] IP é o endereço atribuído a cada aparelho
(computador, celular, impressora, etc.) de uma rede que se comunica por
protocolo internet, e que portanto é indispensável para navegar na internet.
[14] Firewall é um componente de uma rede que
bloqueia acessos não autorizados, ao passo em que permite os acessos
autorizados.
[15] A intranet birmana é jocosamente denominada
de MWW, ou Myanmar Wide Web.
[16] Aung San Suu Kyi voltou ao país em 1988 para
cuidar de sua mãe enferma, e chegou a tempo de presenciar e participar dos
protestos pela democracia de agosto de 1988.
Ela foi presa sem julgamento em 1989, e permaneceu em prisão desde
então, por praticamente todo o tempo, até sua libertação há alguns meses, em
novembro de 2010.
[17] Em 2010, foram considerados "inimigos da
internet", pela organização Reporters Without Borders, os seguintes países:
Birmânia, China, Cuba, Egito, Irã, Coreia do Norte, Arábia Saudita, Síria,
Tunísia, Turquemenistão e Uzbequistão.
[18] Tais "comentaristas" são conhecidos como o
"Partido dos 50 Centavos". Procuram
conduzir e influenciar eventuais discussões antigovernamentais ou "sensíveis"
na direção da "linha do partido". Recentemente, o Partido dos 50 Centavos tem
atuado internacionalmente em vários sites de grande audiência fora da
China.
[19] A censura, claro, nunca é a justificativa
declarada pelo governo para a implementação da lei.
[20] Não há nos Estados Unidos, no entanto, um
direito líquido e certo à proteção de suas fontes jornalísticas em cortes
federais. Há diversos jornalistas condenados e presos por se recusarem a
revelar a fonte de documentos governamentais confidenciais ou sensíveis. A tecnologia do WikiLeaks e outros atende a
essa demanda por proteção das fontes.
[21] A autoria da página no Facebook tem sido
atribuída ao executivo do Google, o egípcio Wael Ghonim.
[22] A lei exige nome completo, data de
nascimento, endereço completo, telefone, número do RG, e proíbe o acesso em
caso de dados incompletos ou não apresentação do RG.
[23] Vagamente definido como "o uso da internet ou
outros aparatos para enviar textos ou imagens com a intenção de constranger ou
prejudicar a imagem de terceiros".
[24] Na rubrica "temas adultos", já há centenas de
sites de poker.