Quando
pensamos em 'ensino privado', normalmente o seguinte cenário vem à mente: os
pais, junto com seus filhos, têm uma ideia de qual linha de ensino o jovem
precisa ou gostaria de ter; estes, por sua vez, escolhem uma entidade que
oferece este tipo de ensino e, no final, todos ficam satisfeitos. Compramos ensino privado como compramos nossas
mercadorias na feira. Será?
No
Brasil, não funciona assim. O sistema de ensino privado é regulado em vários
níveis, sendo difícil dizer até que ponto existe liberdade de ensino no Brasil.
O sistema atual impossibilita iniciativas incríveis como a de Sugata Mitra, o
professor que começou a criar escolas informatizadas de baixo custo na Índia,
já que as escolas nunca conseguiriam receber a devida aprovação regulatória do
MEC. Este artigo visa a explicar como o
ensino é regulado, quais as consequências disso e de que forma podemos
contornar os problemas.
A Escola
Abrir
uma escola não é uma tarefa simples. Primeiro,
é preciso ter uma Entidade Mantenedora, ou seja, uma empresa ou associação que
comprove idoneidade e condições financeiras para mantê-la. Esta deve ser registrada junto à Secretaria de
Educação Estadual. Depois, ainda é
preciso consultar a Secretaria de Educação Municipal.
Também,
escolas não podem ser instaladas em qualquer lugar: normalmente existe um plano
urbanístico que determina onde a prefeitura acredita ser melhor. O estabelecimento também deve atender a requisitos
legais arquitetônicos (dimensões, adequação do espaço) para poder funcionar
como uma escola.
Enfim,
depois de resolvida a parte burocrática do empreendimento, é necessário enviar
para a Secretaria o "Projeto Político-Pedagógico", delineando que método será
usado para ensino, para avaliação e aprovação da Secretaria, para que a escola
possa funcionar dentro da legalidade.
A
barreira de entrada no mercado da educação é enorme, o que prejudica o setor e praticamente
elimina o aspecto regulatório e evolucionário que a livre-concorrência traz.
O Ensino
Falemos
da regulação do ensino propriamente dito. O projeto político-pedagógico deve seguir,
basicamente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e as
Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais definidas pelo Conselho Nacional de
Educação. Estas leis definem uma série
de especificidades para as escolas, como, por exemplo, um número de horas
mínimas de trabalho de cada professor (40 horas), a obrigatoriedade da oferta
da língua espanhola no Ensino Médio e também é a obrigatoriedade do ensino da
História e das Culturas afro-brasileira e Indígena.
O
tempo de duração deste ensino também é fixo: 9 anos de duração, e de matrícula
obrigatória para crianças a partir dos 6 anos. A LDB também delineia regras curriculares que
transmitem caráter ideológico, como por exemplo o currículo configurando-se
como "o conjunto de valores e práticas que proporcionam a produção, a
socialização de significados no espaço social e contribuem intensamente para a
construção de identidades socioculturais dos educandos... O currículo deve
difundir valores fundamentais do interesse social, dos direitos e deveres dos
cidadãos, do respeito ao bem comum e à ordem democrática".
As Diretrizes Nacionais apontam claramente que o papel da educação não é apenas
dever da família da criança, mas também da sociedade e do estado, porém não
deixam claro de que forma os demais cidadãos (a sociedade) devem exercer este
dever. Deixam claro que o papel da
Educação Básica não é ensinar a matéria, mas é o "desenvolvimento do educando
como pessoa humana, incluindo a formação ética e estética". Ou seja, o estado institui legalmente que a
educação moral dos nossos filhos deve ser decidida dentro da escola, e não deve
ser atribuída à família ou a outras entidades, de ensino ou não, que a família
possa vir a escolher.
O Vestibular
As
universidades públicas, por serem gratuitas ao usuário final e de qualidade (em
geral) superior, em boa parte por causa da concorrência pela vaga gratuita,
acabam atraindo alunos mais dedicados, em parte por receberem uma enorme verba
federal por aluno (em torno de R$15 mil por ano, 7 vezes mais do que qualquer
outra modalidade de ensino público). O
método de ingresso nestas universidades é o vestibular, que não deixa de ser
mais um braço de avaliação — de disciplinas ou de ideologia — por parte do
governo.
As
escolas, por sua vez, terminam por direcionar seu ensino para que o aluno
aprenda o conteúdo do vestibular das universidades públicas: as escolas
privadas fazem isso para atrair mais alunos, já que, como empresas, buscam
lucrar; e as públicas fazem isso pois seguem a mesma cartilha do MEC — mas que
infelizmente têm uma péssima atuação, e seus alunos terminam por necessitar de
um handicap no momento do ingresso na faculdade: as chamadas cotas
para escolas públicas.
O ENEM
O
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) cresce a cada ano, e é estratégia do MEC torná-lo
o único o exame para a entrada nas universidades federais. O exame, como pôde ser visto e vivenciado nos
últimos anos, não apenas é completamente desorganizado, como também custa
milhões aos cofres públicos (cerca de R$200 milhões) e é tomado pela ideologia
política dos órgãos governantes do estado, chegando a ter, por exemplo,
questões de matemática envolvendo o Bolsa Família e questões de história em que
o aluno deve avaliar (positivamente, caso queira acertar a questão) se as leis
de regulamentação do trabalho brasileiras são benéficas para a sociedade.
O
ENEM também concede aos jovens com mais de 18 anos que tiverem resultado
satisfatório no exame o certificado de conclusão do ensino médio, mesmo sem o
terem completado. Assim, o Exame mantém o monopólio da maneira mais fácil de
completar a escola, atraindo ainda mais estudantes que buscam um diploma fácil
e corrompido.
Tendo
este privilégio do monopólio e sendo futuramente a principal forma de seleção
no ensino superior brasileiro, o ENEM piora mais ainda mais a autonomia das
escolas privadas e a chance surgir nestas inovações tanto no conteúdo como na
forma de educar.
Questão
do ENEM 2011: ideologia escancarada. [Foto: Anthony Ling]
Os Professores
Todos
os professores de escolas (privadas e públicas) devem ter formação em cursos
denominados "Licenciatura", obrigatoriamente. Para dar aula de Biologia, por exemplo, não
adianta ser o Jacques Cousteau ou o Richard Dawkins: segundo a legislação,
somente pessoas que tiveram esta formação específica podem ensinar outras em
escolas sem estar cometendo um crime.
Professores também têm um piso salarial de R$950,00, definido nacionalmente,
independente de região. Este limite mínimo
é mais uma barreira de entrada para aqueles que estão dispostos a trabalhar por
um valor menor, e muitas vezes uma impossibilidade financeira em regiões mais
pobres do país.
Quanto à definição de conteúdo, já existem também horas mínimas determinadas
para cada componente do currículo (Matemática, História, Artes, Educação Física
e outras disciplinas que conhecemos), porém a ênfase do ensino muitas vezes é
determinada, desde o início do processo educacional, para o Vestibular das
escolas superiores federais.
Os Pais
Sendo
assim, pelo fato de as escolas não apresentarem grandes diferenças em termos de
conteúdo a ser ensinado (o qual, ao meu ver, seria a maior diferença entre as
escolas caso existisse uma verdadeira competição no ensino privado), os pais
normalmente optam pelas escolas que têm uma infraestrutura melhor (quadras de
futebol, salas com ar condicionado, lousa eletrônica, etc.), o que normalmente
não influencia na qualidade do ensino - e/ou pelas escolas que definem um certo
caráter de status na sociedade: a escola da elite, a escola da religião X. Se os pais se recusarem a colocarem seus
filhos em escolas creditadas pelo MEC, eles sofrerão ameaças de apreensão de
seus filhos pelo Conselho Tutelar.
Os Alunos
Os
alunos são as vítimas desta história toda. Eles são obrigados a estudar nas instituições
de ensino reguladas pelo estado e não têm nem mesmo a opção de escolher o que
vão aprender — nem juntamente com seus pais. Muitos países permitem um direcionamento no
ensino desde os primeiros anos de escola. No Brasil, inclusive, era assim, podendo-se
escolher entre o ensino "Científico" ou o ensino "Clássico", no período do
Colegial (antigo Ensino Médio). Com a
LDB, aprovada em 1996 pelo então presidente Fernando Henrique, isso mudou.
Neste pobre cenário, bem interpretado pelo economista e sociólogo Bryan Caplan
em uma situação semelhante nos Estados Unidos, a escola formal passa a ter uma
função quase que apenas de sinalização de um status e para interação social,
com uma pequena função de ensinar. Isso
é claramente comprovado na forma que os alunos abordam o seu aprendizado: ficam
felizes se não há aula, fazem de tudo para ter menos trabalho nas pesquisas,
decoram a matéria e esquecem tudo no ano seguinte. E, como não poderia faltar, compram diplomas.
A
Escola tornou-se um fim em si mesmo, e não um meio para o jovem aprender o que
lhe interessa ou o que ele irá utilizar no futuro. Estudar a Batalha de Canudos, aprender a
resolver polinômios ou entender a estrutura orgânica da Vitamina C tornaram-se
apenas requisitos a mais da parte burocrática que é o ensino formal brasileiro
da atualidade, sem ter utilidade nem provocar interesse na vasta maioria dos
alunos hoje matriculados.
A Solução
Para
um cenário precário como este, não há solução a curto prazo. Porém, há maneiras de contornar o problema por
enquanto, e esperar por mudanças mais estruturais a longo prazo.
Os pais felizmente podem influenciar alguma coisa na educação de seus filhos,
já que as escolas brasileiras ainda podem escolher a forma de educar, a qual pode
ter variações. Há muitas escolas no Brasil que optam pela Educação
Montessoriana, que propõe "a tarefa de favorecer, no seu sentido mais
completo, o desenvolvimento do potencial criativo, da iniciativa, da
independência, da disciplina interna e da confiança em si mesmo.". Com essa metodologia, as crianças e jovens que
estudam por esse sistema são estimulados a buscar o aprendizado que mais lhe
interessa e a ter mais senso crítico, opinião própria e criatividade, ao
contrário da educação tradicional, que propõe uma educação "de cima para
baixo", dividindo hierarquicamente alunos e professores, onde o "discípulo"
deve obedecer à autoridade do seu "mestre".
Em Porto Alegre fui
recebido pelo Colégio Província de São Pedro, que adota este método, e fiquei
bastante impressionado com a diferença do formato da sala de aula e de como é
conduzido o aprendizado. Exatamente como
mostra a reportagem da revista Veja, abaixo, as crianças se divertem em sala de
aula, já que aprender é algo prazeroso. Não é de se surpreender que os alunos
do Província são reconhecidos na cidade por terem uma forma independente de
pensar — ou em termos mais coloquiais, são mais "alternativos".
A médio e longo prazo o que deveríamos esperar do sistema de ensino é uma
descentralização da atuação do MEC, dando mais autonomia aos estados e cidades
para decidirem qual a sua forma de regular o ensino, permitindo uma melhor
adaptação de cada região às suas particularidades culturais. Em seguida, seria interessante ver uma
diminuição da regulação em nível nacional, permitindo uma concorrência mais
livre entre as escolas com maior inovação e empreendedorismo no campo da
educação.
Desta
forma, iniciativas como a do Prof. Mitra com certeza surgiriam pelo país
inteiro, revolucionando a educação no nosso país. Infelizmente o cenário atual
caminha no sentido contrário a isso: em matéria recente do Estadão,
chamada "A
'centralização' do ensino", o jornal exemplifica a estratégia do
MEC nos últimos tempos, que nos torna cada vez menos livres para escolher o que
e como aprendemos.
Referências:
Lei nº 9.394: Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional
Lei
nº 11.738: Piso Salarial Nacional
O
Globo: "Aluno da educação básica custa R$2632 ao ano"
Ensino
Médio em diálogo: "Enem pode garantir certificado de conclusão do Ensino Médio"
Secretaria de
Estado de Educação de Minas Gerais: "Credenciamento de entidade mantenedora de
instituição de ensino particular"
Conteúdo
Escola: "Montando uma escola de Educação Infantil - Pasta de Documentos"
Organização Montessori do Brasil
Bryan
Caplan, "Education and Signaling"
Estadão.com.br: "A
'centralização' do ensino"
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