segunda-feira, 22 nov 2010
A
relação entre libertarianismo e religião é longa, antiga e tormentosa.
É
inegável que Ayn Rand teve uma duradoura, forte e profunda relação com o
libertarianismo. Embora ela nos
rejeitasse e nos tratasse como "hippies da direita", muitos de nós ainda somos
fascinados com ela, inspirados por ela e em dívida para com ela por ter nos
apresentado a defesa moral da livre iniciativa.
Eu certamente me incluo nessa categoria.
Uma
das mais fortes influências que ela teve sobre o movimento libertário foi o seu
ateísmo beligerante. Para muitos
seguidores da filosofia da liberdade, uma agressiva rejeição a Deus e a todas
as coisas religiosas pode perfeitamente ser vista como um axioma básico dessa
visão de mundo. Confesso que essa também
foi a minha posição nesse assunto durante muitos anos. Essa era também a posição de um rico e
potencial doador do Mises Institute, o qual teria contribuído fartamente caso o
Instituto mudasse sua visão em relação a esse assunto e passasse a adotar uma
postura agressivamente contrária a todas as religiões. Felizmente, Lew Rockwell se recusou a
desvirtuar a missão de seu Instituto em relação a esse quesito, e ficou sem a
doação. Embora seja ele próprio um
católico devoto, Rockwell se manteve fiel aos seus princípios: o Mises
Institute continuaria envolvido nos estudos da ciência econômica e da
liberdade, e nada teria contra qualquer religião em absoluto.
O
que fez com que eu mudasse minha postura?
Por que continuo hoje sendo tão ateu quanto sempre fui, porém, ao mesmo
tempo, um amigo e defensor da religião?
Nada tem a ver com o fato de que, dos últimos 19 anos, passei 15 deles sendo
empregado por instituições jesuítas católicas.
Fui professor do College of the
Holy Cross de 1991 a 1997 e, desde 2001, sou professor da Universidade
Loyola em Nova
Orleans.
Para
alguns — aqueles ainda encantados com a visão randiana acerca de religião e
liberdade —, já é ruim o suficiente que um libertário tenha uma visão positiva
sobre a religião. Para a maioria, pode
parecer uma total contradição lógica um ateu como eu ser um grande defensor e
até mesmo um admirador da religião.
Permita-me explicar tudo.
Nesse
assunto em especial, sou guiado pelo aforismo "o inimigo do meu inimigo é meu
amigo". Embora tal raciocínio nem sempre
seja verdadeiro, nesse caso em específico creio que seja.
Assim,
qual instituição é a maior inimiga da liberdade humana? Só pode haver uma resposta: o estado em
geral; e, em particular, a versão totalitária deste. Talvez não haja melhor exemplo de tal governo
do que a URSS e seus principais ditadores, Lênin e Stalin (embora a supremacia
em termos de números absolutos de inocentes assassinados pertença à China de
Mao). Podemos em seguida perguntar: quais
instituições esses dois respeitáveis russos escolheram para o opróbrio? Em primeiro lugar, a religião. Em segundo lugar, a família. Não foi nenhuma coincidência os soviéticos
terem aprovado leis que premiavam os filhos que delatassem os pais por
atividades anticomunistas. Certamente
não há melhor maneira de destruir uma família do que por meio dessa política
diabólica. E como eles tratavam a
religião? Essa é uma pergunta meramente
retórica: a religião foi transformada no inimigo público número um, e seus
praticantes foram cruelmente caçados e exterminados.
Por
que escolheram a religião e a família?
Porque ambas são as principais concorrentes do estado na busca pela
lealdada e obediência das pessoas. Os
comunistas estavam totalmente corretos — se formos nos basear em suas próprias
perspectivas diabólicas — em centrar sua artilharia sobre essas duas
instituições. Todas as pessoas que são inimigas
de um estado intrusivo, portanto, fariam bem em abraçar a religião e a família
como seus principais amigos, sejam essas pessoas ateias ou não, pais ou não.
A
principal razão por que a religião é um contínuo e eterno incômodo para os
líderes seculares advém do fato de que essa instituição define a autoridade
moral independentemente do poder dessa gente.
Todas as outras organizações da sociedade (com a possível exceção da
família) veem o estado como a fonte suprema das sanções éticas. Não obstante o fato de que alguns líderes
religiosos de fato já se ajoelharam perante oficiais de governo, existe uma
hostilidade natural e básica entre essas duas fontes de autoridade. O papa e outros líderes religiosos podem não
ter nenhum regimento de soldados, mas eles têm algo que falta aos presidentes e
primeiros-ministros, para grande desespero destes.
Eis
aí minha posição. Eu rejeito a religião,
todas as religiões, pois, como ateu, não estou convencido da existência de
Deus. Aliás, vou mais fundo. Sequer sou agnóstico: estou convencido da não-existência Dele. Entretanto, como um
animal político, eu entusiasticamente abraço essa instituição. Trata-se de um baluarte contra o
totalitarismo. Aquele que deseja se opor
às depredações do estado não poderá fazê-lo sem o apoio da religião. A oposição à religião, mesmo se baseada em
fundamentos intelectuais e não almejada como uma posição política, ainda assim
equivale a um apoio prático ao estado.
Mas
e quanto ao fato de que a maioria das religiões, senão todas, apóia a
existência do estado? Não importa. Apesar de que algumas religiões organizadas
podem frequentemente ser vistas como defensoras do estatismo, o fato é que
esses dois ditadores, Lênin e Stalin, já haviam entendido tudo: não obstante o
fato de pessoas religiosas frequentemente apoiarem o governo, essas duas
instituições, estatismo e religião, são, no fundo, inimigas. "Concordo" com Lênin e Stalin nesse quesito. Estritamente do ponto de vista deles, ambos
estavam totalmente corretos ao suprimirem brutalmente as práticas
religiosas. Isso faz com que seja ainda
mais importante que todos nós libertários, ateus ou não, apoiemos aqueles que
adoram a Deus. O inimigo do meu inimigo
é meu amigo.
Bem
sei que, nesse ponto, muitos ateus irão energicamente protestar apontando para
o fato de que inúmeras pessoas inocentes foram assassinadas em nome da
religião. É verdade. Infelizmente, é muito verdade. Entretanto, seria válido colocarmos um pouco
de perspectiva nessa conjuntura. Quantas
pessoas foram mortas por excessos religiosos, tais como a Inquisição? Embora as estimativas variem amplamente, as
melhores (ver aqui)
dão conta de que o número de mortes ocorridas durante essa triste época, a qual
durou vários séculos, está entre 3.000 e 10.000. Alguns especialistas, aqui, garantem
números ainda mais baixos, como 2.000.
É
claro que estamos falando de seres humanos assassinados, e cada assassinato
deve ser lamentado; porém, se considerarmos apenas as magnitudes relativas,
podemos positivamente dizer que tais números são completamente insignificantes
quando comparados à devastação infligida à raça humana pelos governos. De acordo com as melhores estimativas (ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui),
as vítimas do estatismo apenas no século XX se aproximam do ultrajante marco de
200 milhões. Não, não houve erro
tipográfico. 200 milhões de cadáveres
produzidos diretamente pelo estado!
Querer comparar algumas milhares de mortes injustificáveis produzidas
pela religião com várias centenas de milhões produzidas pelo estado é algo
totalmente desarrazoado. Sim, o
assassinato de uma única pessoa é deplorável.
Porém, se quisermos comparar religião e governo, devemos ter em mente
essas diferenças astronômicas.
Eis
uma lista de pessoas devotamente religiosas que eu conheço pessoalmente e que
fizeram grandes contribuições para a causa da liberdade:
William
Anderson, Peter Boettke, Art
Carden, Stephen W. Carson, Alejandro Chafuen, Paul Cwik, Gary
Galles, Jeff Herbener, Jörg
Guido Hülsmann, Rabino
Israel Kirzner, Robert
Murphy, Gary
North, Ron
Paul, Shawn Rittenour, Lew
Rockwell, Joann Rothbard, Hans
Sennholz, Edward Stringham, Timothy Terrell, David Theroux, Jeff
Tucker, Laurence
Vance, Tom
Woods, Steven Yates.
E não podemos também deixar de mencionar a Escola
de Salamanca, povoada e divulgada, principalmente, por padres como estes: Dominicanos: Francisco de Vitoria,
1485—1546; Domingo de Soto, 1494—1560; Juan de Medina, 1490—1546; Martin de
Azpilcueta (Navarrus), 1493—1586; Diego de Covarrubias y Leiva, 1512—1577;
Tomas de Mercado, 1530—1576. Jesuítas: Luis Molina (Molineus), 1535—1600;
Cardeal Juan de Lugo, 1583—1660; Leonard de Leys (Lessius), 1554—1623; Juan
de Mariana, 1536—1624.
Essa escola de pensamento é genuinamente nossa
predecessora moral e intelectual. Para a
contribuição da Escola de Salamanca para o movimento austro-libertário, ver aqui, aqui, aqui, aqui
e aqui.
Já é hora — aliás, já passou da hora — de o
movimento austro-libertário rejeitar a virulenta oposição randiana à
religião. Sim, Ayn Rand fez grandes
contribuições para os nossos esforços.
Não precisamos agir precipitadamente; não precisamos jogar fora o bebê
junto com a água da banheira. Mas é
certo que o sentimento anti-religião pertence a essa última atitude, e não à
primeira.
As opiniões acima expressadas são consistentes com
o ponto de vista do meu eterno mentor, Murray Rothbard. Esse brilhante erudito, que frequentemente
era chamado de "Senhor Libertário", justamente por representar a epítome do
libertarianismo, era uma pessoa extremamente favorável à religião, sendo
especialmente pró-catolicismo. Ele
atribuía os conceitos do individualismo e da liberdade (bem como quase tudo de positivo que havia na civilização ocidental) ao cristianismo, e argumentava com
veemência que, enquanto os libertários fizessem do ódio à religião um princípio
básico de organização, eles não chegariam a lugar algum, dado que a vasta
maioria das pessoas em todas as épocas e lugares sempre foi religiosa.