A pré-história da Escola Austríaca de economia pode ser encontrada nos trabalhos dos escolásticos espanhóis, escritos no período que ficou conhecido como "Século Dourado Espanhol", que vai de meados do século XVI até o fim do século XVII. [1]
Quem eram esses intelectuais espanhóis precursores da Escola Austríaca de economia? A maioria deles eram escolásticos que lecionavam ética e teologia na Universidade de Salamanca, na medieval cidade espanhola que fica a 240 quilômetros a noroeste de Madrid, perto da fronteira entre Espanha e Portugal. Esses escolásticos, em sua maioria dominicanos e jesuítas, articularam a tradição subjetivista, dinâmica e libertária na qual, duzentos e cinqüenta anos depois, Carl Menger e seus seguidores se basearam, dando-lhe grande importância.[2] Talvez o mais libertário de todos os escolásticos, particularmente em seus últimos trabalhos, tenha sido o padre jesuíta Juan de Mariana.
Mariana nasceu na cidade de Talavera de la Reina, perto de Toledo. Ele parece ter sido o filho ilegítimo de um cônego de Talavera, e aos dezesseis anos ele se juntou à Sociedade de Jesus, que acabara de ser criada. Aos vinte e quatro, ele foi convocado para ir a Roma lecionar teologia, sendo depois transferido para a escola que os jesuítas tinham na Sicília, e de lá para a Universidade de Paris. Em 1574, ele retornou à Espanha, morando e estudando em Toledo até sua morte aos oitenta e sete.
Não obstante o Padre Mariana tenha escrito muitos livros, o primeiro a ter
um conteúdo libertário foi De rege et regis institutione (Sobre o rei e a
instituição real), publicado em 1598, no qual ele fazia sua famosa defesa do
tiranicídio. De acordo com Mariana, qualquer cidadão pode justificadamente
matar um rei que crie impostos sem o consentimento das pessoas, confisque a
propriedade dos indivíduos e a desperdice, ou impeça a reunião de um parlamento
democrático.[3] As doutrinas contidas neste livro foram
aparentemente usadas para justificar o assassinato dos reis tiranos franceses
Henrique III e Henrique IV, e o livro foi queimado em Paris pelo carrasco como
resultado de um decreto publicado pelo Parlamento de Paris, em 4 de julho de
1610.[4]
Na Espanha,
apesar de as autoridades nunca terem sido entusiastas dele, o livro foi respeitado.
De fato, tudo o que Mariana fez foi pegar a idéia de que a lei natural é
moralmente superior ao poderio do estado e levá-la à sua conclusão lógica. Essa
idéia tinha previamente sido desenvolvida em detalhes pelo grande fundador do
direito internacional, o dominicano Francisco de Vitoria (1485-1546), que foi
quem começou a tradição escolástica espanhola de denunciar a conquista e
particularmente a escravização dos índios pelos espanhóis no Novo Mundo.
Mas talvez o
mais importante livro de Mariana seja a obra publicada em 1605 com o título de
De monetae mutatione (Sobre a alteração da moeda).[5] Nesse livro, Mariana começou a questionar se
o rei era o dono da propriedade de seus vassalos ou cidadãos, e chegou a
conclusão de que ele não era. O autor então fez sua distinção entre um rei e um
tirano e concluiu que "o tirano é aquele que esmaga tudo que está sob seus
pés e acredita que tudo lhe pertence; o rei restringe sua cobiça dentro dos
termos da razão e da justiça".
Disso,
Mariana deduziu que o rei não pode cobrar impostos sem o consentimento da
população, posto que impostos são simplesmente uma apropriação de parte da
riqueza de um indivíduo. Para que tal apropriação seja legítima, ambas as
partes têm que estar de acordo. Da mesma maneira, o rei também não pode criar
monopólios estatais, já que eles seriam simplesmente um meio disfarçado de se
coletar impostos.
O rei também
não pode — e essa é a parte mais importante do livro — obter receitas fiscais
extras diminuindo o conteúdo metálico das moedas. Mariana percebeu que a
redução do conteúdo de metais preciosos nas moedas, e o aumento do número de
moedas em circulação, é claramente uma forma de inflação (apesar de ele não
usar essa palavra, que era desconhecida à época), e que a inflação
inevitavelmente leva a um aumento de preços porque "se a moeda sofre uma
queda de seu valor legítimo, todos os bens encarecem inevitavelmente, na mesma
proporção da queda do valor da moeda, e todas as contas entram em
colapso".
Mariana
descreve as sérias conseqüências econômicas às quais a adulteração e a
manipulação por parte do governo no valor de mercado da moeda leva, da seguinte
maneira: "Somente um tolo iria tentar separar esses valores de tal maneira
que o preço legítimo tivesse que diferir do preço natural. Insensato, mais
ainda, perverso é o soberano que ordena que algo que as pessoas comuns valoram
em, digamos, cinco deva ser vendido a dez. Os homens são guiados nessa questão
pela estimativa comum encontrada nas considerações sobre a qualidade das
coisas, e pela sua abundância e escassez. Seria inútil para um Príncipe tentar
solapar esses princípios de comércio. É muito melhor deixá-los intactos ao
invés de atacá-los a força em detrimento do povo."[6]
Devemos notar
como Mariana se refere ao fato de que a "estimativa comum" dos homens
é a origem do valor das coisas, seguindo assim a tradicional doutrina
subjetivista dos escolásticos, que foi inicialmente proposta por Diego de
Covarrubias y Leyva. Covarrubias (1512-577), o filho de um famoso arquiteto, se
tornou bispo da cidade de Segovia e ministro do Rei Filipe II. Em 1554 ele
demonstrou, melhor do que qualquer um já havia feito antes, a teoria
subjetivista do valor, dizendo que "o valor de um artigo não depende de
sua natureza essencial, mas da estimativa subjetiva dos homens, mesmo se essa
estimativa for tola", ilustrando sua tese com o exemplo de que "nas
Índias, o trigo é mais precioso do que na Espanha porque os homens o estimam
mais favoravelmente, apesar de a natureza do trigo ser a mesma em ambos os
lugares".[7]
A concepção
subjetivista de Covarrubias foi completada por outro de seus contemporâneos
escolásticos, Luis Saravia de la
Calle, que foi o primeiro a demonstrar que
os preços determinam os custos, e não vice-versa. Saravia de la Calle
também tinha a distinção especial de escrever em espanhol, e não em
latim. Sua obra se chamava Instruccion
de mercaderes (Instrução aos mercadores), e lá pode-se ler que "aqueles que
mensuram o preço justo pelo trabalho, custos e riscos incorridos pela pessoa
que lida com a mercadoria estão cometendo um grande erro. O preço justo não é
encontrado pela contagem dos custos, mas pela estimativa comum".[8]
A concepção
subjetivista iniciada por Covarrubias também permitiu que outros escolásticos
espanhóis obtivessem um discernimento claro da verdadeira natureza dos preços
de mercado, e da impossibilidade de se alcançar um equilíbrio econômico. Assim,
o cardeal jesuíta Juan de Lugo, perguntando-se qual seria o preço de
equilíbrio, já no ano 1643 chegou à conclusão de que o equilíbrio dependia de
um número tão grande de circunstâncias específicas que apenas Deus seria capaz
de sabê-lo ("Pretium iustum mathematicum licet soli Deo notum").[9] Outro jesuíta, Juan de Salas, referindo-se às
possibilidades de saber informações específicas do mercado, chegou à mesma
conclusão hayekiana de que todo o mercado era tão complexo que "quas
exacte comprehendere et ponderare Dei est non hominum" (somente Deus,
e não o homem, pode entendê-lo exatamente).[10]
Ademais, os escolásticos espanhóis foram os primeiros a introduzir o
conceito dinâmico de concorrência (em latim, concurrentium), que é
melhor compreendido como um processo de rivalidade entre empresários. Por
exemplo, Jeronimo Castillo de Bovadilla (1547-?) escreveu que "os preços
irão cair como resultado da abundância, rivalidade (emulacion), e
concorrência (concurrencia) entre os vendedores." [11]
A mesma idéia é seguida de perto por Luis de Molina.[12] Covarrubias também antecipou muitas das
conclusões do Padre Mariana em seu estudo empírico sobre a história da
desvalorização da principal moeda daquela época, a Maravedi castelhana. Esse
estudo continha uma compilação de um grande número de estatísticas sobre a
evolução dos preços nos séculos anteriores e foi publicado em latim em seu
livro Veterum collatio numismatum (Compilação das moedas antigas).[13] Esse livro foi muito elogiado na Itália por
Davanzaty e Galiani e foi também citado por Carl Menger em seu livro Princípios de
Economia Política.[14]
Também
devemos notar como o Padre Mariana, ao explicar os efeitos da inflação, listou
os elementos básicos da teoria quantitativa da moeda, que havia sido
anteriormente explicada em detalhes completos por outro notável escolástico,
Martin Azpilcueta Navarro (também conhecido como Dr. Navarro), que nasceu em
Navarra (nordeste da Espanha, perto da França) em 1493. Azpilcueta viveu por
noventa e quatro anos e é famoso principalmente por explicar, em 1556, a
teoria quantitativa da moeda em seu livro Resolutory Commentary on
Exchanges. Observando
os efeitos sobre os preços espanhóis do maciço influxo de metais preciosos
vindos da América para a Espanha, Azpilcueta declarou que "como pode ser
observado por experiência própria, quando a França tem menos moeda que a
Espanha, o pão, o vinho, as roupas, a mão-de-obra e os serviços custam muito
menos; e mesmo na Espanha, quando havia menos moeda, as coisas que podiam ser
vendidas, bem como a mão-de-obra e os serviços dos homens, eram oferecidas por
bem menos do que após as Índias terem sido descobertas e terem enchido a
Espanha de ouro e prata. O motivo disso é que a moeda vale mais onde e quando
ela está em falta do que onde e quando ela está em abundância."[15]
Voltando ao
Padre Mariana, torna-se claro que sua mais importante contribuição foi perceber
que a inflação era um imposto que "taxa aqueles que tinham dinheiro antes
e, como conseqüência, são forçados a comprar as coisas a um preço mais
elevado". Além disso, Mariana argumentava que os efeitos da inflação não
podem ser resolvidos fixando-se impostos ou preços máximos, dado que
experiências já mostravam que essas ações sempre foram ineficazes. Além do
mais, dado que a inflação é um imposto, segue-se da sua teoria sobre a tirania
que seria necessário haver um consentimento das pessoas para essa ação. Mas,
mesmo que tal consentimento existisse, a inflação iria sempre ser um imposto
extremamente danoso e que iria desorganizar a vida econômica: "esse novo
tributo resultante de um metal desvalorizado, que é algo ilícito e maléfico se
feito sem o consentimento do reino, ou mesmo que feito com esse consentimento,
considero-o errôneo e nocivo em muitas maneiras."
Como se
poderia evitar que se recorresse ao confortável recurso da inflação? Equilibrando-se
o orçamento, sendo que para tal propósito Mariana basicamente propôs que se
gastasse menos com a família real porque "uma quantia moderada, gasta
corretamente, resplandece mais e apresenta uma maior grandiosidade do que uma
quantia supérflua gasta sem critério".
Ademais,
Mariana propôs que "o rei deveria reduzir seus favores"; em outras
palavras, ele não deveria gratificar os reais ou supostos serviços de seus
vassalos tão generosamente: "não há reino no mundo com tantos prêmios,
comissões, pensões, benefícios, e cargos; se eles todos fossem distribuídos de
maneira ordeira, haveria uma necessidade menor de se retirar recursos
adicionais do tesouro público ou de outros impostos".
Como podemos
ver, a falta de controle sobre o gasto público e a compra de apoio político
através de subsídios data de muito tempo atrás. Mariana também propôs que
"o rei deveria evitar empreendimentos e guerras desnecessários, arrancando
os membros cancerosos que não podem ser curados". Em resumo, ele
apresentou um programa completo para a redução do gasto público e para manter o
equilíbrio orçamentário. Algo que, mesmo para hoje, serve de modelo.
É óbvio que
se Padre Mariana conhecesse os mecanismos econômicos, criados pelos bancos, que
levam ao processo de expansão do crédito, e se ele soubesse dos efeitos desse
processo, ele os teria condenado como sendo roubo. Ele teria condenado não
apenas a adulteração das moedas feita pelo governo, mas também a ainda mais
nociva inflação creditícia criada pelos bancos. No entanto, outros escolásticos
espanhóis foram capazes de analisar a expansão do crédito feita pelos bancos.
Assim, de la
Calle foi muito crítico do sistema bancário
de reservas fracionárias. Ele afirmava que receber juros era incompatível com a
natureza de um depósito a vista (em conta-corrente), e que, seja como for, uma
taxa deveria ser paga ao banqueiro por manter o dinheiro sob sua custódia. Uma
conclusão similar é feita pelo mais famoso Azpilcueta Navarro. [16]
Molina era
simpático ao sistema bancário de reservas fracionárias e confundia a natureza
de dois diferentes contratos, empréstimos e depósitos, os quais Azpilcueta e
Saravia de la
Calle claramente já haviam diferenciado um
do outro, anteriormente. Um aspecto mais relevante é que Molina foi o primeiro
teorista a descobrir, em 1597 (portanto, bem antes de Pennington em 1826), que
os depósitos bancários são parte da oferta monetária. Ele até mesmo propôs o
nome "chirographis pecuniarium" (dinheiro escrito) para
se referir aos documentos escritos que eram aceitos no comércio como sendo
dinheiro bancário.[17] Portanto, os escolásticos se dividiam em duas
escolas incipientes. A primeira é um tipo de "Escola da Moeda",
composta por Saravia de la Calle,
Azpilcueta Navarro e Tomas de Mercado, que eram muito desconfiados das
atividades bancárias, as quais eles implicitamente exigiam que mantivessem uma
reserva de cem por cento. A segunda era um tipo de "Escola Bancária",
liderada pelo jesuíta Luis de Molina e Juan de Lugo, que eram bem mais
tolerantes a um sistema bancário de reservas fracionárias.[18] Ambos os grupos foram até certo ponto os
precursores do desenvolvimento teórico que só chegaria três séculos depois à
Inglaterra como resultado do debate entre a Escola da Moeda e a Escola
Bancária.
Murray Rothbard enfatiza quão importante
foi outra contribuição dos escolásticos espanhóis, especialmente Azpilcueta,
para ressuscitar o conceito vital de preferência temporal, originalmente
desenvolvida por um dos mais brilhantes pupilos de Tomás de Aquino, Giles
Lessines, que, já no ano 1285, escreveu "que os bens futuros não são
valorados tão grandemente quanto os mesmos bens disponíveis para o imediato
momento, nem permitem eles que seus donos atinjam a mesma utilidade. Por essa razão,
e por uma questão de justiça, deve-se considerar que eles tenham um valor mais
reduzido".[19]
Padre Mariana também escreveu outro importante livro, Discurso de las enfermedades
de la Compania
(Discurso sobre a enfermidade da ordem jesuíta), que foi publicado
postumamente. Nesse livro, Mariana criticava a hierarquia militar estabelecida
na ordem jesuíta, mas também desenvolveu o puro insight austríaco de que
é impossível equipar o estado com um conteúdo coordenador por causa da falta de
informação. Nas palavras de Mariana: "poder e comando é loucura. . . .
Roma está muito longe, o general nem sequer conhece as pessoas, os fatos, e
todas as circunstâncias que os cercam, sobre as quais depende o sucesso. . . .
É inevitável que muitos erros sérios serão cometidos e as pessoas com isso
fiquem insatisfeitas e passem a desprezar um governo tão cego. . . . É um
grande erro o cego querer guiar o de vista aguda".
Mariana conclui que, quando há muitas leis, "se todas elas não puderem
ser mantidas ou conhecidas, o respeito por todas elas está perdido".[20]
Sumarizando, o Padre Mariana e os escolásticos espanhóis foram capazes de
desenvolver os elementos essenciais daquelas que seriam mais tarde as bases
teóricas da Escola Austríaca de economia, especificamente as seguintes:
primeira, a teoria subjetiva do valor (Diego de Covarrubias y Leyva); segunda,
a relação adequada entre preços e custos (Luis Saravia de la Calle);
terceira, a natureza dinâmica do mercado e a impossibilidade do modelo de
equilíbrio (Juan de Lugo e Juan de Salas); quarta, o conceito dinâmico da concorrência
entendido como um processo de rivalidade entre vendedores (Castillo de
Bovadilla e Luis de Molina); quinta, a redescoberta do princípio da preferência
temporal (Martin Azpilcueta Navarro); sexta, a influência deturpadora do
crescimento inflacionário da moeda sobre os preços (Juan de Mariana, Diego de
Covarrubias, e Martin Azpilcueta Navarro); sétima, os efeitos econômicos
negativos do sistema bancário de reservas fracionárias (Luis Saravia de la Calle e
Martin Azpilcueta Navarro); oitava, depósitos bancários formam parte da oferta
monetária (Luis de Molina e Juan de Lugo); nona, a impossibilidade de se
organizar a sociedade através de comandos coercivos, devido à falta de
informações (Juan de Mariana); e décima, a tradição libertária de que qualquer
intervenção indevida no mercado por parte do estado é uma violação da lei
natural (Juan de Mariana).
Para poder entender a influência dos escolásticos espanhóis no posterior
desenvolvimento da Escola Austríaca de economia devemos nos lembrar que no
século XVI o Imperador Carlos V, que era o Rei da Espanha, enviou seu irmão
Fernando I para ser o Rei da Áustria. "Áustria" significa,
etimologicamente, "parte oriental do Império", e o Império naquele
tempo abrangia quase toda a Europa continental, com a única exceção da França,
que permanecia uma ilha isolada cercada por forças espanholas. Então é fácil
entender a origem da influência intelectual dos escolásticos espanhóis sobre a
Escola Austríaca, o que não foi algo puramente coincidente ou um mero capricho da
história, mas que se originou das íntimas relações históricas, políticas e
culturais que passaram a existir entre a Espanha e a Áustria desde o século XVI
em diante. Além
disso, a Itália também teve um papel importante nessas relações, atuando como
uma autêntica ponte cultural, econômica e financeira sobre a qual as relações
entre os dois pontos mais distantes do Império na Europa (Espanha e Viena)
fluíam. Portanto, há muitos argumentos importantes para defender a tese de que,
pelo menos em suas raízes, a Escola Austríaca é realmente uma Escola Espanhola.
E de fato, podemos dizer que o maior mérito de Carl Menger foi ter
redescoberto e abraçado essa tradição católica européia do pensamento
escolástico espanhol, que estava quase esquecido e havia sido interrompido como
conseqüência da Lenda Negra[21] contra a Espanha e devido a influência muito
negativa sobre a história do pensamento econômico de Adam Smith e seus seguidores
da Escola Britânica Clássica.[22]
Felizmente, e apesar do opressivo imperialismo intelectual da Escola Britânica
Clássica, a tradição da Europa continental nunca foi totalmente esquecida.
Economistas como Cantillon, Turgot e Say mantiveram a tocha do subjetivismo
acesa. Mesmo na Espanha, nos anos de decadência dos séculos XVIII e XIX, a
velha tradição escolástica sobreviveu apesar do complexo de inferioridade
perante o mundo intelectual britânico, coisa bem típica daqueles anos.
Prova disso é a maneira como um outro escritor católico espanhol resolveu o
"paradoxo do valor" e claramente demonstrou a teoria da utilidade
marginal vinte e sete anos antes de Carl Menger. Trata-se do catalão Jaime
Balmes (1810-1848). Durante sua curta vida, ele se tornou o mais importante
filósofo tomista espanhol de seu tempo. Em 1844, ele publicou um artigo
intitulado "True idea of value or thoughts on the origin, nature, and
variety of prices" ("A verdadeira idéia do valor, ou pensamentos
sobre a origem, a natureza e a variedade de preços"), no qual ele resolveu
o paradoxo do valor e claramente demonstrou a idéia da utilidade marginal.
Balmes pensou, "Por que uma pedra preciosa vale mais do que um pedaço de
pão?" E ele próprio respondeu, "Não é difícil de explicar. Sendo o
valor de um objeto a sua utilidade. . . se o número de unidades desse objeto
aumenta, a necessidade por qualquer um deles em particular cai; por ser
possível escolher dentre várias unidades, nenhuma delas é indispensável. Por
essa razão há uma relação necessária entre o aumento ou a diminuição do valor,
e a escassez ou abundância do objeto."[23]
Dessa maneira, Balmes pôde fechar o círculo da tradição continental
européia, que estava pronta para ser assumida, completada e otimizada alguns
anos mais tarde por Carl Menger e seus seguidores da Escola Austríaca de
economia.
LITERATURAS
Azpilcueta Navarro, Martin. 1965. Comentario resolutorio de cambios.
Madri: Consejo Superior de Investigaciones Cientificas.
Chafuen, Alejandro. 1986. Christians for Freedom: Late Scholastic Economics.
San Francisco: Ignatius Press.
Grice-Hutchinson, Marjorie. 1952.
The School of Salamanca: Readings
in Spanish Monetary Theory, 1544-1605. Oxford: Clarendon Press.
Leoni, Bruno. 1991. Freedom
and the Law. Indianapolis, Ind.: Liberty
Fund.
Mariana, Juan de. 1768. Discurso de las enfermedades de la Compania. Madrid: Don Gabriel Ram¡rez.
Moss, Laurence, and
Christopher Ryan, eds. 1993. Economic Thought in Spain. Cheltenham, U.K.:
Edward Elgar.
Roover, Raymond de. 1955.
"Scholastic Economics: Survival and Lasting Influence from the Sixteenth
Century to Adam Smith." Quarterly Journal of Economics 69, no. 2
(May).
Rothbard, Murray N. 1995.Economic Thought Before Adam Smith. Vol. 1. An Austrian Perspective
on the History of Economic Thought. Cheltenham,
U.K.: Edward
Elgar.
——1976. "New Light
on the Prehistory of the Austrian
School." In Edwin
Dolan, ed., The Foundations of Modern Austrian Economics. Kansas City: Sheed and
Ward.
Soto, Jesus Huerta de.
1996. "New Light on the Prehistory of the Theory of Banking and the School of Salamanca."Review of
Austrian Economics 9, no. 2.
NOTAS
[1] Murray N. Rothbard desenvolveu essa tese em 1974, no
ensaio intitulado "New Light on the Prehistory of the Austrian School",
que ele apresentou em uma conferência em South Royalton,
Vermont, e que marcou o início da notável reaparição da Escola Austríaca. O
ensaio foi publicado dois anos depois em The Foundations
of Modern Austrian Economics, de Edwin Dolan, ed. (Kansas City: Sheed e Ward, 1976), pp. 52-74.
Anos depois, ele aprofundou essa tese em sua monumental obra Economic
Thought Before Adam Smith, vol. 1, An Austrian Perspective on the
History of Economic Thought (Cheltenham, U.K.: Edward Elgar, 1995),
cápitulo 4, "The Late Spanish Scholastics," pp. 97-133.
Rothbard não foi o único economista austríaco a mostrar as origens
espanholas da Escola Austríaca. F.A. Hayek tinha o mesmo parecer, especialmente
depois de ter conhecido Bruno Leoni, o grande estudioso italiano e autor de Freedom
and the Law (Indianapolis, Ind.: Liberty Fund, 1991). Leoni conheceu Hayek
nos anos 1950, e convenceu-o de que as raízes intelectuais do liberalismo
econômico clássico eram européias e católicas, e deveriam ser procuradas na
Europa Mediterrânea, e não na Escócia. Uma das melhores alunas de Hayek,
Marjorie Grice-Hutchinson, se especializou em literatura espanhola e traduziu
para o inglês os principais textos dos escolásticos espanhóis, formando uma
obra que hoje é considerada um pequeno clássico, The School of Salamanca:
Readings in Spanish Monetary Theory, 1544-1605 (Oxford: Clarendon Press,
1952). Além desta, outra fonte
excelente é Economic Thought in Spain: Essays of Marjorie Grice-Hutchinson,
Laurence Moss e Christopher Ryan, eds. (Cheltenham, U.K.: Edward Elgar,
1993). Eu até tenho uma carta de Hayek, de 7 de janeiro de 1979, na qual ele me
pede para ler o artigo de Murray Rothbard, "The Prehistory of the Austrian
School", dizendo que ele e Grice-Hutchinson "demonstram que os
princípios básicos da teoria dos mercados competitivos foram trabalhados pelos
escolásticos espanhóis do século XVI, e que o liberalismo econômico não foi
delineado pelos calvinistas, mas pelos jesuítas espanhóis". Hayek concluía
sua carta dizendo que "eu posso lhe garantir, pelo meu conhecimento
pessoal das fontes, que o argumento de Rothbard é muito forte".
[2] O trabalho mais atual sobre os escolásticos espanhóis
é o livro de Alejandro Chafuen, Christians for Freedom: Late
Scholastic Economics (San Francisco: Ignatius Press, 1986).
[3]. Mariana descreve um tirano da seguinte
maneira:
"Ele confisca a propriedade dos indivíduos e a desperdiça,
impelido que está pelos vícios, indignos de um rei, da luxúria, avareza,
crueldade e fraude. . . . Tiranos, na verdade, tentam prejudicar e arruinar a
todos, mas eles dirigem seus ataques especialmente contra os ricos e os homens
justos de todo o reinado. Eles consideram o bom mais suspeito do que o mal; e a
virtude que lhes falta é a mais temível para eles . . . . Eles expulsam os
homens de bem da comunidade sob o princípio de que o que quer que seja exaltado
no reino deve ser escondido . . . . Eles exaurem todo o resto — seja através da
fabricação de controvérsias para que haja brigas intensas entre os cidadãos,
seja através da extração diária de tributos, seja através da criação de guerras
atrás de guerras — para que eles não possam se unir contra o tirano. Eles fazem
grandes construções às custas e ao sofrimento dos cidadãos. Assim nasceram as
pirâmides do Egito. . . . O tirano necessariamente teme que aqueles a quem ele
terroriza e mantém como escravos irão tentar derrubá-lo do poder. . . . Por
isso, ele proíbe os cidadãos de se congregarem, de se encontrarem em
assembléias e discutirem o conjunto da comunidade, tirando deles — através do
uso de alguma polícia secreta — a oportunidade de se expressar livremente, de
tal maneira que a eles não é permitido nem reclamar livremente".
Citado em Rothbard, Economic
Thought Before Adam Smith, pp. 118-119.
[4]. Ver Juan de Mariana,
Discurso de las enfermedades de la Compan¡a
(Madrid: Don
Gabriel Ramirez, 1768), p. 53, "Dissertation on the author, and the
legitimacy of this discourse."
[5] Farei citações por completo da última
edição espanhola deste livro, que foi publicado com o título de Tratado y
discurso sobre la moneda de vellon, com uma introdução feita por
Lucas Beltran (Madri: Instituto de Estudios Fiscales, 1987).
[6]. Citado em Rothbard, Economic
Thought Before Adam Smith, p. 120.
[7]. Diego de Covarrubias y Leyva, Omnia
Opera (Veneza, 1604), vol. 2, cap. 4, p. 131.
[8]. Luis Saravia de la Calle, Instruccion
de mercaderes (1544); republicado em Coleccion de Joyas Bibliograficas
(Madri, 1949), p. 53. O livro de Saravia trata o empreendedor (em espanhol, mercaderes)
de acordo com uma tradição católica européia que pode ser rastreada até São
Bernardino de Siena (1380-1444). Ver Rothbard, Economic Thought Before Adam
Smith, pp. 81 85.
[9]. Juan de Lugo (1583-1660), Disputationes
de iustitia et iure (Lyon, 1642), vol. 2, d. 26, s. 4, n. 40, p. 312.
[10]. Juan de Salas, Commentarii in
secundam secundae D. Thomae de contractibus (Lyon, 1617), vol. 4, no. 6,
p. 9.
[11]. Jeronimo Castillo de Bovadilla, Practica
para corregidores (Salamanca, 1585), vol. 2, cap.4, nº. 49. Ver também os
importantes comentários sobre os escolásticos e seu conceito dinâmico da
concorrência escritos por Oreste Popescu, Estudios en la historia del
pensamiento economico latinoamericano (Buenos Aires: Plaza e Jans, 1987),
pp. 141-159.
[12]. Luis de Molina, De iustitia et
iure (Cuenca, 1597), vol. 2, disp. 348, no. 4, e La teoria del justo
precio, Francisco Gomez Camacho, ed. (Madri: Editora Nacional, 1981), p.
169. Raymond de Roover, ignorando o trabalho de Castillo de Bovadilla,
reconhece como "Molina até mesmo introduz o conceito de concorrência ao
declarar que a competição e a rivalidade entre compradores irão aumentar os
preços". Veja seu artigo
"Scholastic Economics: Survival and Lasting Influence from the Sixteenth
Century to Adam Smith," Quarterly Journal of Economics 69, nº 2,
(Maio de 1955): 169.
[13]. Incluído em Covarrubias, Omnia
Opera, vol. 1, pp. 669 710.
[14]. Carl Menger, Principles
of Economics (New York: New York University Press, 1981), p. 317.
[15]. Martin Azpilcueta Navarro, Comentario
resolutorio de cambios (Madri: Consejo Superior de Investigaciones
Cient¡ficas, 1965), pp. 74 75.
[16]. Ver Jesus Huerta de Soto, "New Light on the Prehistory of the Theory
of Banking and the School
of Salamanca," Review
of Austrian Economics 9, nº. 2 (1996): 59-81.
[17]. Luis de Molina, Tratado sobre
los cambios, introdução de Francisco Gomez Camacho (Madri: Instituto de
Estudios Fiscales, 1990), p. 146. Ver também o memorando de James Pennington, de 13 de fevereiro de 1826,
"On the Private Banking Establishments of the Metropolis," incluído
como apêndice em
Thomas Tooke, A Letter to Lord
Grenville; On the Effects Ascribed to the Resumption of Cash Payments on the
Value of the Currency (Londres: John Murray, 1826).
[18]. No entanto, de acordo com o Padre
Bernard W. Dempsey, se os membros desse segundo grupo da Escola de Salamanca
tivessem tido um conhecimento teórico detalhado do funcionamento e das
implicações de todo o processo econômico que é gerado pelo sistema bancário de
reservas fracionárias, ele teria sido descrito como um sistema de usura
institucional perverso, vasto e ilegítimo, até mesmo pelos próprios Molina,
Lessius e Lugo. Ver Padre
Bernard W. Dempsey, Interest and Usury (Washington, D.C.: American
Council of Public Affairs, 1943), p. 210.
[19]. Idem, p. 214, n. 31.
[20]. Mariana, Discurso de las
enfermedades de la Compania,
pp. 151-155, 216.
[21]. Estórias que descreviam a Espanha e
os espanhóis como cruéis, intolerantes e fanáticos. Acredita-se que essa
propaganda negativa foi influenciada por rivalidades nacionais e religiosas e
estimuladas por historiadores protestantes e escritores anglo-saxões, que
queriam descrever o período do imperialismo espanhol de maneira negativa. [N. do T]
[22]. Ver Leland B. Yeager,
"Book Review," Review of Austrian Economics 9, nº. 1 (1996):
183, onde ele diz:
"Adam Smith fez algumas contribuições anteriores sobre o valor
subjetivo, sobre o empreendedorismo e deu ênfase aos mercados do mundo real e à
precificação. Mas depois trocou tudo por uma teoria do valor-trabalho e um foco
predominante no longo prazo do "preço natural" de equilíbrio, um
mundo onde se assumia que não havia empreendimentos. Ele misturou calvinismo
com economia, como no seu apoio à proibição da usura e sua distinção entre
ocupações produtivas e não-produtivas. Ele não herdou o laissez-faire de vários
economistas italianos e franceses do século XVIII, introduzindo vários
lugares-comuns e qualificações. Seu trabalho foi desordenado e infestado de
contradições.
[23]. Jaime Balmes, "Verdadera idea
del valor o reflexiones sobre el origen, naturaleza y variedad de los
precios," em Obras Completas
(Madri: B.A.C., 1949), vol. 5, pp. 615-624. Balmes também descreveu a
personalidade de Juan de Mariana com as seguintes palavras gráficas:
"A impressão geral que Mariana passa é única: um teólogo
completo, um perfeito scholar em latim, um profundo conhecedor de grego
e de línguas orientais, um brilhante homem das letras, um estimável economista,
um político de grande presciência; isso é só sua cabeça; adicione a isso uma
vida impecável, uma moralidade austera, um coração que não conhece a falsidade,
incapaz da lisonja, que bate fortemente ao mero nome 'liberdade', como aquele
dos ferozes republicanos da Grécia e de Roma; uma voz firme e intrépida, que se
levanta contra todos os tipos de abuso, sem qualquer consideração pelo grande,
sem estremecer quando se dirige a reis; e considere que tudo isso se ajuntou em
um homem que mora em um pequeno cubículo dos jesuítas de Toledo, e você
certamente encontrará um conjunto de virtudes e detalhes que raramente se
coincidem em uma única pessoa."
Ver o artigo "Mariana," em Obras Completas,
vol. 12, pp. 78 79.