Amiúde, leitores neófitos ou simplesmente descrentes nos fundamentos de uma sociedade
livre questionam os artigos que denunciam os casos de intervenção do estado
sobre a economia, sobre a propriedade privada ou mesmo sobre a vida íntima das
pessoas. Na mente deles, é inconcebível que as coisas possam funcionar de forma
eficaz e pacífica sem regras que forneçam, digamos assim, o "sistema
operacional", que para eles, é uma prerrogativa estatal.
Estas
pessoas não estão absolutamente erradas. Todo jogo tem regras, e assim,
necessariamente, demanda alguém que zele por elas. O que elas não compreendem, por pura falta de
vivência — e aqui estamos falando de uma questão cultural — é que uma
sociedade livre tem como estabelecer tais normas de atuação de forma mais
eficiente e idônea que o estado.
O
que venho trazer a estas pessoas hoje é justamente a demonstração disto, mas
não somente em teoria, como também com exemplos concretos. Em todo o mundo, existem estes ou aqueles
serviços que são prestados de forma privada, sendo que frequentemente se saem
melhor do que os seus contrapares estatais, e o serviço de regulação privada
fornecido pelas "sociedades classificadoras" é um deles.
As
sociedades classificadoras tiveram início com a Marinha Mercante, sendo a mais
antiga o "Lloyd
Register", fundado na Grã-Bretanha, em 1760. Outras semelhantes são o ABS (American Bureau
of Shipping), o Bureau
Veritas e o Det
Norske Veritas, entre outros. Atualmente,
as sociedades classificadoras expandiram suas atividades, atuando em plantas
industriais, oleodutos, linhas férreas, construção civil, e muitas outras
atividades.
Sociedades
classificadoras são entidades de certificação técnica. Embora privadas, isto é, destituídas de poder
estatal, desenvolvem normas técnicas e de procedimentos cuja observância,
apesar de voluntária, não é descuidada. Estas
entidades são chamadas de "classificadoras" justamente porque
"classificam" o objeto de sua normalização e auditoria, segundo a
qualidade da construção, o seu destino e o estado de manutenção.
Ao
classificar um navio, para ficarmos no caso da marinha mercante, tal entidade
certifica que ele está apto a executar determinado serviço (por exemplo,
transportar alimentos perecíveis ou substâncias químicas), sob tal ou qual
condição (tropical, água doce, com gelo, com dificuldade de manobra, pelo Canal
do Panamá, etc.), e, com a nota que ela lhe atribuir, teremos aí então uma
escala de gradação que compara as diversas embarcações registradas no cadastro
da instituição.
Quanto
maior a nota atribuída, mais confiável é o navio e, por causa disto, os
contratos de seguro tornam-se mais viáveis e mais baratos; os fretes conseguem
melhores preços, e torna-se mais facilitado o acesso aos melhores portos e,
consequentemente, aos melhores mercados.
Logicamente,
o próprio preço do frete também realiza uma função econômica da mais alta
importância, pois os preços mais altos para o transporte mais seguro e
eficiente são contratados para os bens com maior valor agregado. De uma forma geral, demandam tais serviços os
alimentos perecíveis, tais como o chocolate, carne ou frango, assim como os
aparelhos eletrônicos delicados, ou os derivados de petróleo e produtos
químicos perigosos, enquanto que o transporte de madeira, materiais de
construção, grãos e minerais a granel pode ser executado por embarcações mais
simples. Como se pode observar, há um critério o mais sensato possível para a
melhor utilização dos recursos.
Neste
sistema, prevalece um equilíbrio de salvaguarda de interesses, onde a tradição
e a confiança são o maior patrimônio. Já
no estaleiro, o navio deverá ser construído segundo as normas estipuladas pela
sociedade classificadora contratada pelo futuro proprietário da embarcação. Quanto mais prestígio e tradição usufruir esta
sociedade, mais caros serão os seus serviços, e curioso, mais severas serão as
suas futuras e periódicas inspeções, às quais o proprietário e o armador
haverão de se submeter fielmente sob pena de multa ou mesmo desclassificação do
seu patrimônio.
Observemos
aqui as vantagens em relação à normalização estatal. Em primeiríssimo lugar, as regras são aceitas
por todos, prevalecendo um ambiente de legitimidade das operações, e por isto
mesmo, de um cumprimento mais espontâneo por parte dos envolvidos. Em seguida, tais normalizações são
constantemente julgadas por seus clientes, de modo que não podem ser
negligentes e tampouco excessivamente exigentes, ou caso contrário os usuários
buscarão os concorrentes; em outras palavras, elas necessariamente têm de
buscar o "ótimo possível e viável". Por isto mesmo, como um terceiro motivo, a
normalização privada não se presta ao desvio de finalidade, como acontece já
como regra geral quanto à legislação estatal, cuja perfeita ilustração temos
com o Incra, que estipula índices de produtividade cada vez mais altos para
viabilizar a desapropriação de terras dos agricultores. Corrupção, então, nem pensar: os auditores em
geral são engenheiros muito competentes que recebem altos salários, de modo que
um escândalo lhes arruinaria a carreira. Finalmente, por dependerem fortemente da
reputação, os envolvidos não se podem prestar a caprichos de
discricionariedade, tal como podemos constatar no Paraná e no Pará, onde os
governadores Roberto Requião e Ana Júlia Carepa, respectivamente, descumprem
sistematicamente as ordens judiciais de reintegração de posse das terras
ocupadas pelo MST.
Somente
para concluir, é bom que estas pessoas céticas saibam que muito da nossa
legislação estatal foi erguida copiando a legislação privada. A ABNT ainda usa normas da S.A.E. (Society of
Automotive Enginners), uma entidade particular. Portanto, uma sociedade livre não é
necessariamente caótica, como as pessoas mais culturalmente ligadas à idéia de
um controle estatal costumam pensar, e isto porque as pessoas em geral têm
interesse que suas atividades sejam bem-sucedidas.