segunda-feira, 26 jul 2010
Um
leitor manda-me a seguinte pergunta: Por que o Japão, mesmo com tantos
estímulos monetários desde 1990, não tem inflação?
E
a minha resposta direta é: simplesmente porque não houve estímulos monetários, apenas estímulos fiscais.
O
leitor mais iniciado poderá se espantar com a resposta acima, uma vez que é público
e notório que o Banco Central do Japão (BOJ) vem mantendo sua taxa básica de
juros em níveis ridículos há anos. Sendo
assim, duas perguntas tornam-se inevitáveis: como é possível dizer que não
houve expansão monetária no Japão quando se sabe que o BOJ manteve os juros
perto de zero durante anos? É possível
manter juros baixos e, ao mesmo tempo, não haver expansão monetária?
Antes
de partir para a empiria e mostrar dados que comprovam o que estou dizendo, vou
antes reter-me um pouco na sempre indispensável teoria.
Juros altos x expansão monetária
Como
tentei deixar claro nesse
artigo sobre a taxa SELIC, quando o banco central quer reduzir os juros,
ele expande a base monetária — isto é, ele cria dinheiro do nada e compra
títulos da dívida que estão em posse do sistema bancário. Tal medida fará com que haja mais dinheiro em
posse dos bancos, os quais poderão agora emprestar mais a preços menores. Ou seja, aumenta-se a oferta de dinheiro,
diminui-se seu preço.
De
forma inversa, quando o banco central quer aumentar os juros, ele vende títulos
para os bancos e, com isso, reduz a quantidade de dinheiro que o sistema
bancário tem disponível para empréstimos.
Menor oferta de dinheiro, maior o seu preço.
Dessa
explicação, é comum tirar a seguinte conclusão: se os juros estão baixos, é
sinal de que o banco central está injetando dinheiro no sistema; e se os juros
estão extremamente baixos, é sinal então de que o banco central está injetando
quantidades cada vez maiores de dinheiro no sistema.
Entretanto,
tal relação não é tão direta assim. E é
justamente isso que torna o estudo da ciência econômica algo tão fascinante,
para não dizer divertido. Simplesmente
não existe uma relação matematicamente exata entre as variáveis. Da mesma forma que um aumento na quantidade
de dinheiro terá um efeito imprevisível sobre os preços (você apenas sabe que os
preços seriam menores caso não tivesse ocorrido esse aumento na quantidade de
dinheiro, mas é incapaz de saber com exatidão qual será relação matemática exata
entre ambos), um aumento na oferta monetária possui uma relação imprevisível
com os juros.
É
perfeitamente possível o banco central expandir a base monetária e, ainda
assim, provocar um aumento dos juros. E,
da mesma forma, é perfeitamente possível o banco central simplesmente parar de
criar dinheiro e, com isso, obter uma redução dos juros.
Eis
aí um fato que poucos compreendem. É possível
haver grande expansão monetária em um ambiente de juros altos, bem como haver
desprezível (ou até mesmo nula) expansão monetária com juros baixos.
Um
bom exemplo de cada caso seria o Brasil, para o primeiro caso, e a Suíça, para
o segundo. Embora soe estranho a
princípio, o problema fica mais fácil quando se analisa os fundamentos da
política monetária.
Por
exemplo, pela teoria, se a oferta monetária fosse congelada, essa repentina
"escassez" de moeda geraria um aumento de juros muito alto no mercado
interbancário. Isso de fato é verdade no curto prazo — afinal, se a impressão
de dinheiro cessou, a quantidade a ser emprestada entre os bancos parou de
aumentar, e essa súbita paralisia pode gerar um aumento temporário de juros.
Entretanto,
uma vez entendida que a quantidade de dinheiro não vai mais aumentar, os
agentes econômicos (desculpe o jargão economicista) perceberão que de nada
adiantará cobrar juros nominais altos: afinal, como eles seriam pagos? Em um cenário de quantidade de moeda fixa, se
você emprestar 100 reais e cobrar 10% de juros, não haverá como receber 110
reais, pois não está havendo aumento na oferta monetária. Assim, se você não cobrar juros (muito)
menores, simplesmente não fará empréstimo algum. Esse raciocínio, aliás, não é exclusividade
austríaca. Milton Friedman — monetarista convicto que no final da vida passou
a defender a extinção do banco central — também concluiu que era isso que
ocorreria.
Esse
cenário descrito acima ocorre, por exemplo, na Suíça, país de banco central
tradicionalmente conservador (no sentido de incorrer em baixíssimas expansões
monetárias) e de juros (no caso, refiro-me à SELIC deles) também baixos.
Já
o cenário inverso ocorre no Brasil. Se o BC pratica expansões monetárias mais
vultosas e a economia é fechada (o que significa que as pressões inflacionárias
não podem ser abrandadas pelas importações), então grande parte dessa expansão
irá se traduzir em grande aumento de preços. Sendo assim, os bancos embutem essas
expectativas inflacionárias no valor dos juros que eles cobram. Ou seja: a maior expansão monetária gerou, ao
contrário do imaginado, um aumento nos juros (tanto na SELIC quanto nos juros
cobrados das pessoas físicas e jurídicas).
Logo,
é perfeitamente possível haver juros altos concomitantes a grandes expansões
monetárias, e juros baixos concomitante a pequenas (e até mesmo nulas)
expansões monetárias.
E
o Japão pertence ao segundo caso.
A empiria japonesa — agregados monetários
Como
qualquer outro banco central, o Banco Central do Japão controla a base
monetária de seu país. Ele faz isso
comprando e vendendo títulos da dívida do governo em posse do sistema bancário. A base monetária é a única variável monetária
que está sob controle direto de um banco central. Ela é o melhor indicador para se saber qual a
postura adotada por um banco central.
O
gráfico a seguir, fornecido
pelo Fed, o banco central americano, mostra o comportamento da base monetária
japonesa desde 1992.

O
eixo vertical, à esquerda, mostra a variação percentual da base monetária em
relação ao ano imediatamente anterior.
De 1992 a 1999, a base monetária cresceu anualmente a uma taxa sempre
inferior a 10%. Durante um rápido
período entre 1999 e 2000 ela chegou a uma taxa de crescimento de 15%, porém
despencando logo em seguida para 0%. De
2001 a 2003, um ano de recessão para o país, ela cresceu a taxas mais
vigorosas. Entretanto, esse crescimento
foi praticamente anulado pela postura mais contracionista adotada a partir de
meados de 2003, quando a taxa de crescimento começou a diminuir até se tornar
negativa desde o início de 2006 até meados de 2007. Desde então o crescimento tem sido
praticamente nulo.
Ou
seja, de 1992 até 2008, o Banco Central japonês adotou uma política monetária,
no mínimo, contida.
Para
se ter uma ideia, desde a criação do real, o Banco Central brasileiro, o
campeão dos juros altos, jamais praticou uma taxa de crescimento da base
monetária menor do que 10% ao ano. De
1996 a 2008, a média da expansão da base monetária brasileira foi de mais de
18% ao ano, e jamais praticando contração, como fez o BOJ em 2006-2007.
Entretanto,
a base monetária não é o melhor indicador monetário para se "prever" o
comportamento dos preços. Os agregados
monetários M1 e M2 fazem isso com mais acurácia. O leitor mais aficionado pode ler esta publicação
do Banco Central japonês e ver que a definição que eles dão para o M1
(papel-moeda em poder do público + depósitos à vista) e o M2 (M1 + depósitos a
prazo) é praticamente idêntica à do Banco Central brasileiro. Eis o gráfico da taxa de variação anual de
ambas as variáveis:

Nota-se
que de 1992 a 2002, o M2 japonês cresceu a taxas inferiores a 3%, e de 2003 até
o início de 2009, o crescimento foi ainda menor. O M1 praticamente seguiu o mesmo padrão de
comportamento, apresentando apenas eventuais surtos localizados, principalmente
em 2001-2003, ano de recessão. Fora esse
período, e além de um período entre 1995 e 1996, quando chegou a 15%, o
crescimento do M1 sempre esteve abaixo de 10%.
E de 2003 até o presente, M1 cresceu menos de 5% ao ano.
Comparando-se
novamente com o Brasil, desde a criação do real o M1 brasileiro jamais ficou
abaixo de 10%. De 1995 a 2008, a taxa
média de crescimento anual do M1 foi de 19%.
A do M2 foi de 15%, com picos de 40%.
Ou
seja, novamente pode-se dizer que os agregados monetários japoneses cresceram a
taxas extremamente contidas, principalmente o M2.
A empiria japonesa — índice de preços
Vejamos
agora como se comportaram os preços ao consumidor japonês. O gráfico é o penúltimo desta
página. (Por favor, perdoe a
incompetência deste articulista, que não conseguiu copiá-lo para cá).
De
1992 a 1999, a inflação de preços esteve em sua maior parte ao redor de
0%. Em 1997 os preços subiram módicos
2%, a maior taxa do período. De 1998 a
2007, a taxa anual foi ligeiramente deflacionária, mas nunca houve deflação maior
do que 1% durante um período de 12 meses.
Em 2008, os preços subiram 2% novamente, e depois voltaram a cair.
A empiria japonesa — crescimento econômico
Como
mostra esse
gráfico, de 1990 a 2008, o PIB real (já considerando preços e produção)
japonês subiu de 450 trilhões de ienes para 560 trilhões. Um aumento de 24%, ou 1,2% ao ano. Para um país rico e com taxa de fecundidade
nula, tal crescimento da riqueza per capita é bastante razoável — no mínimo,
não é catastrófico. Entretanto, quando
se considera a taxa de poupança dos japoneses, tal crescimento está muito aquém
do potencial.
Conclusão
Quando
se compreende a teoria, a realidade japonesa torna-se perfeitamente
compreensível. Embora não tenha havido
uma sistêmica deflação de preços — ao contrário do que apregoa uma
aterrorizada mídia —, tampouco houve qualquer motivo para que tivesse havido
uma inflação de preços no Japão.
Como
mostrou o gráfico, o M2 se manteve praticamente estável desde 1992, sempre em
níveis mínimos. A base monetária e o M1,
embora tenham apresentado surtos esporádicos, cresceram a maior parte do tempo
a taxas anuais menores que 10%, valores módicos para os padrões monetários
atuais.
Tudo
isso significa que, em resposta a uma suave expansão monetária, o crescimento
econômico ocorrido, embora bastante tímido, foi suficiente para fazer os preços
declinaram levemente. Tal comportamento
é consistente com a teoria monetária ensinada tanto pela Escola Austríaca
quanto pela Escola de Chicago. Um
aumento do produto (como demonstrado, média de 1,2% ao ano) em conjunto com um
aumento muito pequeno da oferta monetária (em especial do M2) gera preços em
queda.
Eis
o cenário ideal: inflação monetária nula e economia crescendo de 2 a 3% ao
ano. Em teoria, nesse ambiente os preços
ao consumidor iriam cair por volta de 2 a 3% ao ano. O Japão, durante quase duas décadas, tem
estado muito próximo deste ideal — mais próximo do que qualquer outro país
industrializado.
A
Escola Austríaca é a favor de inflação monetária zero, de modo que os preços
apresentem uma queda constante e suave.
Já a Escola de Chicago defende uma política de preços estáveis, o que
exige uma oferta monetária crescendo lenta porém constantemente. Nesses termos, o Japão é mais Chicago do que
austríaco, porém, em termos
exclusivamente monetários e de preços, é o país que mais se aproximou da
Escola Austríaca nas últimas duas décadas.
Fiz
questão de enfatizar o trecho acima porque, embora o banco central japonês
tenha tido um comportamento decente, o mesmo não pode ser dito do governo
japonês, que durante esse mesmo período vem praticando uma insana política de
déficits e endividamento crescente.
A
dívida, que era de 65% do PIB em 1992, pulou para incríveis 185% do PIB em
2009. Os déficits anuais constantemente
ultrapassaram os 6% do PIB. (Veja no
último gráfico desta
página). Essa política fiscal foi,
sem dúvida, uma das principais causas do baixo crescimento econômico japonês —
para um povo que poupa muito, era de se esperar taxas de crescimento anuais
mais robustas do que 1,2%. Porém, como o
governo consome toda essa poupança para financiar seus déficits, os
investimentos ficam comprometidos, pois não há recursos sobrantes para financiá-los. E isso engessa o crescimento.
Se
o governo japonês cortasse gastos e equilibrasse seu orçamento, parando de
incorrer em déficits, a poupança dos japoneses deixaria de ser utilizada para
financiar o governo, passando a ser liberada para investimentos realmente
produtivos, o que daria um grande impulso à economia. Isso, em conjunto com a baixa expansão
monetária praticada pelo BOJ, elevaria enormemente o padrão de vida dos
japoneses.
Não
há nenhuma "armadilha da liquidez" no Japão.
Tampouco houve falta de estímulos fiscais. Também não houve problema de estímulos
monetários, dado que a taxa de juros sempre foi baixa. O que vem ocorrendo no Japão é um exemplo
prático de duas teorias em conflito: keynesianismo na política fiscal e
chicaguismo na política monetária.
Na
humilde opinião deste articulista, o que vem emperrando a economia japonesa é
justamente a política fiscal.
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