Imagine
a seguinte situação: você está jogado em alto mar, rodeado de tubarões famintos,
e avista um bote com um menino de uns 14, 15 anos de idade. Porém o bote não aguenta você e o menino, de
forma que, para se salvar, você terá que jogar o menino para os tubarões. Mas, como foi dito, o bote é do menino, e não
seu. Você iniciaria agressão contra o
menino? Roubaria o bote para salvar sua
vida? Imagine outra situação: um monstro
devorador de planetas ameaça acabar com a vida na terra (devorando o planeta) a
menos que um indivíduo por dia seja sacrificado em sua homenagem. Você apoiaria e até lutaria pelo sacrifício de
algum desconhecido de Burkina Faso para salvar a terra?
Esses
são alguns exemplos dados por pessoas que contestam a validade da chamada
"ética absoluta dos direitos de propriedade" (vou chamá-la de EADP daqui para
frente). Essas pessoas basicamente
confundem uma moral individual baseada em valorações individuais com o que é
certo e o porquê disso ser certo. Peguemos
o primeiro caso do bote. O fato de você
morrer se não matar o outro inocente não torna matar o outro inocente correto
só porque é você quem morrerá. Não há
dúvida que sua vida vale mais para você do que a vida de um menino de 15 anos
que você nunca viu na vida, mas isso não lhe dá o direito de matá-lo. O mesmo vale para o caso do monstro devorador
de planetas. Sua vida e de seus familiares
valem mais, para você, do que a vida de um desconhecido de Burkina Faso, mas
isso não lhe dá o direito de matá-lo.
Esses
exemplos, ao contrário do que seus defensores imaginam, não mostram falhas da
ética absoluta de direitos de propriedade (EADP). Eles mostram sua força e sua total correção
aos problemas que realmente temos que enfrentar no nosso mundo. Veja que, por mais que você precise, necessite
ou tenha convicção de que pode usar outro indivíduo como meio, de que pode
escravizar outro indivíduo, ela reafirma de modo intransigente que o outro é
outro, e está fora da sua jurisdição, da sua vontade. O outro não é um meio para satisfazer seus
objetivos, sejam lá quais objetivos são esses.
Peguemos
essa característica de "soberania individual" e apliquemos para uma série de
problemas reais. Ao utilizar o tal
"monstro devorador de planetas" — eu nunca vi um e realmente duvido que algum
exista, mas nós tivemos instituições ou mesmo pessoas que se julgavam "monstros
devoradores de planetas" —, refiro-me a reis absolutistas e a governos /arranjos
tribais totalitários do passado por todo o mundo (e eu diria por quase toda
nossa história).
Em
muitas civilizações, sacrifícios humanos eram realizados de forma explícita
exatamente com o argumento de "sobrevivência", a não destruição da tribo ou
sociedade por algum deus misterioso. Mais
tarde, o próprio rei era deus. Quando o
rei deixou de ser deus, a sociedade, um ente mítico e sem existência
independente dos indivíduos que a compõe, ocupou o lugar de divindade. Quando alguém usa "monstros devoradores de
planeta" para, por meio das nossas próprias valorações individuais em relação à
vida, atacar direitos de propriedade, o que esse alguém está realmente fazendo
é repetindo o mesmo discurso de destruição e totalitarismo que foi praticado
durante a maior parte da nossa história. É óbvio que alguém que recorre a monstros
devoradores de planeta não está interessada nos mesmos; o que ele quer é
defender, no mundo real, a prática de "sacrifícios humanos", principalmente para
a realização de seus próprios objetivos e valores.
Os
direitos naturais, a saber, autopropriedade e direito de propriedade sobre bens
externos, são derivados a partir do reconhecimento do que é um ser humano, da
sua natureza e do correspondente modo de sobrevivência dada por essa natureza
em um mundo que é o que é — e não um mundo com devoradores de planetas, fadas
e criaturas com super poderes. O nome
"natural" vem exatamente desse fato: de algo ser de um humano por ele ser o que
é, por ter uma dada natureza. É algo que
independe completamente da concordância ou discordância de um terceiro. Direitos naturais não são "concessões" de
absolutamente ninguém, seja um indivíduo, seja um governo, seja uma sociedade. Eles simplesmente são originados do que um ser
humano é. Estão fora do escopo de
"coisas escolhíveis" por seres humanos.
Tudo
isso é deixado de lado pelos ditos "pragmáticos", cientistas e "filósofos"
sociais que se arrogam o poder de "organizar" a sociedade, de "escolher" se um
indivíduo deve ou não ser sacrificado. Indivíduos
são tratados como meros meios, como peões em um tabuleiro de xadrez que podem
ser destruídos na busca de algum "objetivo maior". Em uma situação dessas (de escolha de
sacrifícios), é o próprio indivíduo que deve decidir se tal objetivo vale ou
não "seu sacrifício", se ele aceita ou não arriscar, ou mesmo dar a sua vida,
por aquele fim.
Peguemos
alguns exemplos normalmente usados nessas situações. Imaginemos uma guerra como a Segunda Guerra
Mundial — de grandes proporções, onde a vitória de um determinado lado
representa o totalitarismo, a barbárie, o oposto do que um liberal geralmente
defende (exatamente a situação da Segunda Guerra e o nazismo). Um indivíduo que vive no "lado bom" não deve
ser obrigado a lutar na guerra, justamente porque a vida é dele, o corpo é dele
e só ele tem o direito de decidir sobre o que fazer com sua vida. Não importa que ele seja vital para a vitória
do lado bom, que estará salvando muitas pessoas ou mesmo dando a si próprio um
futuro melhor. É ele quem deve decidir
se essas coisas valem ou não a pena, se sua vida deve ou não ser colocada em
risco por essas coisas. Nenhum outro
indivíduo tem domínio sobre ele. Indivíduos são soberanos, autoproprietários;
eles não estão sob o jugo de absolutamente nenhum outro ser humano.
As
pessoas podem chamar um indivíduo que se nega a ir a uma guerra dessas de
"traidor", "covarde" ou algo do tipo, mas elas podem fazer apenas isso e mais
nada. Elas não têm nenhum direito de
propriedade sobre ele, não são seus senhores. O "covarde" é tão senhor de si mesmo quanto os
outros são deles mesmos. "Covardia" não
é crime, é um mero "uso" das suas propriedades. É, enfim, um ato legítimo, um
direito seu. Se a covardia é desprezível
moralmente, isso não é um problema relacionado ao uso da força; não dá a
ninguém o direito de agredir e escravizar o outro.
Inúmeras
situações como essa da guerra são colocadas como "indo contra" a EADP, quando
tais situações, na verdade, não apresentam problema algum, apenas um
desconforto moral naqueles que dizem que o problema é "complexo" ou insolúvel —
justamente porque a solução correta e clara vai contra as "preferências morais"
do sujeito.
Vejamos
outro caso, o de consumo de drogas. É
normal as pessoas argumentarem coisas do tipo: "as drogas devem ser proibidas
porque elas destroem famílias, destroem vidas e, em última instância, até
sociedades". Ora, se "destruir" não
significa qualquer invasão de propriedade, então todo indivíduo tem direito "de
destruir" o que for. Nenhum indivíduo
tem qualquer obrigação legal de "manter a sociedade", nem mesmo de "manter sua
vida". Ele é livre para se destruir e mandar
uma banana para a sociedade. Não há
qualquer contradição ou problema lógico, racional, de correspondência com a
realidade nesse seu direito. Há um
problema com algumas claras "preferências" nossas em relação ao nosso entorno
social, em relação a ações de terceiros, mas ninguém é obrigado a construir
para nós um entorno social adequado, uma vez que esse entorno, no fundo, não é
uma propriedade nossa e sim ações de terceiros junto a suas propriedades.
Muitos
de nós, senão a maioria, preferimos um mundo onde as pessoas produzam, tenham
bons modos, sejam cordiais, tenham preferências morais, altos valores e troquem
bens entre si, o que elevaria em muito nosso padrão de vida. Porém, se as pessoas resolverem, no lugar de
produzir e viver "adequadamente", se drogar, isso é um direito delas, desde
que, é claro, elas não invadam direitos de propriedade de terceiros. O bem estar de todos, muito provavelmente,
despencaria, mas isso novamente é um problema de preferências e valorações, e não
tem qualquer contradição com a questão do uso da força. Um indivíduo tem direito de viver a vida dele
como ele bem entender; ele não tem de viver como mais me agrada ou me dá mais
bem-estar. O fato de você ficar
horrorizado com as escolhas "não invasivas" de outras pessoas não lhe dá
direito algum sobre essa outra pessoa.
Mais ainda: não representa problema ou erro algum em relação à EADP.
Ademais,
um direito de propriedade "não absoluto" é uma contradição de termos. Se eu tenho propriedade sobre algo, isso significa
que posso usar esse algo como bem entender, significa que eu dou a última
palavra sobre a alocação desse algo. Só
a minha opinião e valoração importam. Se
existir um arranjo do tipo "nos assuntos X,Y,Z você decide, e no restante eu
decido", o verdadeiro proprietário é o fulano que estipulou tal regra, pois é
ele quem está dando a última palavra sobre o bem em questão, e não você. Ele é o proprietário. Se, por exemplo, o indivíduo pode "se acabar"
em situações "normais", mas não pode viver como bem quiser em uma "situação de
emergência" ou de guerra, se nessas situações é outra pessoa, e não ele, quem
decide sobre a sua própria vida, então é essa outra pessoa o verdadeiro
proprietário do sujeito, e não ele próprio. O indivíduo em questão não viveria por
direito, ele viveria por concessão, por benevolência de alguém. Os liberais não aceitam isso. Qualquer indivíduo vive por direito, vive
como escolhe viver, vive porque a vida é dele e absolutamente ninguém tem o
direito de tirá-la.
Mas
mesmo a questão do "direito à vida" não está livre de confusões e vem sendo
usada como bucha de canhão contra a EADP. Muitos afirmam que alguns libertários colocam
o direito de propriedade acima do direito à vida. Quem afirma algo assim não sabe o que é
direito à vida. Direito à vida significa
apenas que a vida, "você mesmo", é uma propriedade sua, ou seja, você decide o
que faz consigo mesmo. Você é soberano
nessa questão, você é a "última palavra". Não quer dizer que alguém tenha que
sustentá-lo ou manter sua vida. Assim
como qualquer direito, a única obrigação imposta a terceiros é a de não
agressão a esse direito. O seu direito à
vida não lhe dá direito de propriedade algum sobre bens de terceiros. Isso é uma contradição: se um bem é de outro,
por definição é esse outro quem diz quando esse bem deixa de ser dele, e não
qualquer ação a priori de terceiros. Se
fosse assim, o dono original não seria proprietário do bem.
Dito
isso, imagine que um pára-quedista caia em um navio (que não é dele) em alto
mar, cheio de tubarões. O dono do navio,
diante do ocorrido, diz: "saia imediatamente do meu navio!" O pára-quedista responde: "mas se eu sair,
morrerei!" O dono do navio retruca: "isso
não é problema meu, saia agora!" O dono
do navio está no seu direito? Ele pode
usar a força e retirar o sujeito do navio? A resposta é sim e isso em nada
viola o "direito à vida" do pára-quedista. O pára-quedista não adquire a propriedade do
navio por depender do navio. Isso
implicaria uma negação do direito de propriedade do real dono do navio. Mais do que isso, direito à vida não significa
que alguém seja obrigado a fornecer bens para sustentar ou manter a vida de
ninguém. O dono do navio, como
proprietário do navio, pode negar abrigo ao pára-quedista e tem direito de usar
a força que for necessária para restabelecer seu direito de propriedade sobre o
navio.
Novamente
voltamos à questão do que é correto em relação ao uso da força e de morais/preferências
individuais. Você pode achar a decisão
do dono do navio em não dar abrigo ao pára-quedista um horror, afinal "a vida é
o nosso bem mais precioso". A sua vida é
o bem mais precioso para você, mas a vida de um desconhecido pode ou não ser
algo valioso para você. Além disso, o
quanto você ou qualquer outro valora a vida de quem quer que seja é irrelevante
na questão de quem é o proprietário do quê, e, portanto, de quem tem direito de
decidir sobre a alocação de um dado objeto. A questão da valoração da vida e se ela é ou
não o "bem mais precioso que temos" também não tem relação alguma com a questão
do direito à vida. Se ela é o bem mais
precioso que temos, você "odiaria" perder a sua, mas isso não torna ninguém
obrigado a ajudar você a mantê-la, nem a dar bens a você para esse propósito
independente do amor que você tenha pela sua vida. E mesmo quem não valora muito sua própria
vida, continua tendo direito a ela. Um
"louco" que se droga, se destrói, brinca de "roleta russa", continua sendo dono
de si mesmo, e continua sendo crime "usá-lo" contra a vontade dele.
Valorações
pessoais sobre "bens específicos" não têm relevância alguma na determinação do
que é de quem, isto é, na determinação do correto uso da força (embora,
obviamente, nos casos possíveis, o processo de mercado tenderá a alocar os bens
para aqueles que mais o valoram).
Direitos
de Propriedade e Consequências
Uma
das discussões mais presentes entre liberais é a suposta oposição entre
direitos de propriedade absolutos e consequências. Essa é uma falsa dicotomia com uma quantidade
de erros impressionante que demandaria um texto inteiro. Só comentarei alguns pontos mais óbvios. Normalmente os "consequencialistas" afirmam o
seguinte: você é dono de você mesmo e dos bens que produziu não por serem
direitos naturais, mas porque, sendo o arranjo feito dessa forma, teremos boas consequências.
Essa é uma "tese" bastante interessante para
a explicação de por que uma "ética legal", mais ou menos com esses princípios,
prevaleceu (pelo menos por enquanto nos países de maior sucesso). Porém, ela é equivocada no campo "normativo",
do certo e do errado.
Primeiro,
inexiste um direito de propriedade que dependa de conseqüências. Se o direito de propriedade é somente válido
quando as consequências são boas, então ele não é direito de propriedade. Nem mesmo os bens específicos que você chama
de "minhas propriedades" são realmente sua propriedade. Assim como no caso da vida, aqueles bens estão
com você por concessão, apenas enquanto você os utiliza, não invasivamente, de
uma determinada forma. Se você se
desviar dessa forma, o verdadeiro proprietário, que lhe "concedeu" o uso e
alocação desses bens, os tomará de você.
O
próprio conceito de propriedade (total controle, disposição sobre algo) se
torna contraditório quando esse título de propriedade depende de uma condição
permanente externa à vontade do proprietário para ser mantido. Se eu perco o bem por não utilizá-lo de uma
determinada forma ditada "por alguém", então eu nunca fui realmente o proprietário
desse bem. Não existe, portanto, direito
de propriedade condicionado a "boas consequências". Ou se é proprietário de um bem — logo,
podendo-se fazer o que quiser com ele —, ou não. O que temos no caso defendido pelos
consequencialistas é uma mera concessão de uso de bens, algo como uma "posse",
que pode ser cortada assim que o sujeito "sair da linha".
O
segundo ponto é o próprio significado de "boas consequências". Embora as pessoas possam, em linhas bem
gerais, concordar com o que seja "boas conseqüências", basta um problema um
pouco mais especifico e o conceito se torna inútil. Por exemplo, podemos concordar que "boas
consequências" significa permitir que seres humanos busquem sua felicidade,
seus objetivos etc. É algo bem genérico,
e que já demanda uma série de complicações. Por exemplo, a felicidade de um serial killer
pode ser "matar o maior número de pessoas".
Logo, provavelmente teríamos que arrumar uma outra definição mais específica
de felicidade; teríamos de enfrentar problemas práticos como "o que me deixa
feliz pode não ser o mesmo para você ou para outro indivíduo", ou ainda "por que
a definição de felicidade de X vale e a de Y não?".
Para
complicar ainda mais, podemos ter os próprios meios relevantes na valoração dos
agentes (e, em geral, eles são) conflitando com outros valores. Por exemplo, peguemos o problema clássico
entre minarquistas e anarcocapitalistas. Os dois defendem o direito natural como a lei
correta, como o justo (pelo menos dizem defender). Mas os minarquistas acreditam que o governo é
um meio mais adequado para se obter o fim comum desejado, "o respeito ao
direito natural". Os anarcocapitalistas
acreditam que o governo não é o meio adequado e apontam para o fato do próprio
governo já violar esses direitos, além de, muitas vezes, negarem que exista um
"fim social" a ser atingido.
O
que seria "boas conseqüências" nesse caso? A existência de um governo que protege mais ou
menos os direitos naturais, mas viola o próprio direito natural, e que trata os
indivíduos como "meios" (afinal, a própria problemática de se achar que existe
uma opção entre governo (coerção) e mercados, que existe "um fim coletivo", é
baseada nessa idéia de indivíduos como meio, da negação de sua autonomia, de
sua auto-propriedade) ou o mundo alternativo "desconhecido" do anarcocapitalismo,
que não possui um governo, ou seja, que não se apóia em uma frontal violação de
toda uma ética individualista, mas que, pelo menos no imaginário popular,
tenderia para um caos?
Quem
mais chegou perto de um conceito interessante de "boas consequências" foram os
economistas "neoclássicos". Porém, o
conceito deles desagradaria boa parte dos moralistas que defendem essa
bandeira. "Boas consequências" tem duas variantes possíveis dentro da classe
dos "economistas filósofos": a da maximização da "utilidade social" e a da
maximização da riqueza (medida em valores monetários). Dentro da primeira corrente, temos uma longa
trajetória desde Bentham, com a sua "soma de utilidades", passando por Arrow e
seu teorema da impossibilidade, Sen, Rawls, até os modernos teóricos da
"escolha social". Boa parte da pesquisa
em "agregações de preferências", "escolha social" está limitada por um fato
básico: utilidade é imensurável e incomparável interpessoalmente (o que acaba
desaguando no teorema da impossibilidade de Arrow).
Essa
é a barreira intransponível em todas as considerações sobre "boas consequências"
baseadas em preferências e valorações. Se
alguém prefere X a Y e outro, Y a X, não temos como dizer que atender o
primeiro significa "objetivamente" boas conseqüências, ao passo que atender o
segundo significa "más conseqüências". Apenas
em casos muito extremos (como X é viver e Y é morrer) podemos dizer algo, mas, mesmo
nesses casos, há possibilidades de a coisa não ser tão óbvia (um suicida
certamente não prefere viver).
Quando
passamos para a segunda variante, o da maximização de riquezas, os problemas se
tornam ainda maiores. Embora a
maximização de riquezas aparentemente resolva coisas como comparação e
mensuração (afinal, valores monetários são mensuráveis e podem ser facilmente
somados), eles não servem para muita coisa se 1) se distanciam completamente da
relação com bem-estar e 2) se referem a bens não "corriqueiros", bens que não
podem ser facilmente comprados e vendidos.
No
quesito 1, peguemos uma cena do filme Hotel
Ruanda para exemplificar. O
personagem principal, para evitar o assassinato da sua família e de alguns
amigos, oferece um pagamento ao capitão do exército (que iria assassiná-los)
pelas suas liberdades. Pelo oferecido, o
capitão só libera a família. Em seguida,
ele permite que todos os que "sobraram" deem ao capitão o que tiverem para
"comprar sua liberdade". Quase todos dão
muito pouca coisa. Isso significa que
eles valoram pouco suas vidas? Não. Significa
apenas que são (ou estavam) pobres. Quando
a valoração (em termos de valores monetários) de um bem é muito dependente da
renda que se tem (efeito renda é considerável), pode existir uma substancial
separação entre valores monetários e bem-estar. O fato de eu dar apenas R$100,00 pela minha
vida pode significar apenas que eu sou pobre, não que eu realmente valoro a
minha vida em somente R$100. Logo,
políticas baseadas em valores monetários podem não ter relação nenhuma com bem-estar
e, consequentemente, podem estar longe de qualquer conceito relevante de "boas
conseqüências".
Uma
solução para o problema acima é a idéia de "conjunto de escolhas". Imagine que todos os bens possam ser trocados
em mercados, comprados e vendidos normalmente. Em um problema econômico clássico, um agente
com uma dada restrição orçamentária vai escolher a cesta de bens disponível,
dentro dessa restrição orçamentária, que mais lhe traz bem estar. Supondo que bens são escassos, um aumento da
restrição orçamentária necessariamente o deixa em melhor situação, pois, nesse
caso, é possível comprar uma cesta com mais bens. E o que isso tem a ver com políticas públicas?
Ora, se for possível mostrar que uma
política gera "lucro monetário" (ou seja, os benefícios monetários superam os
custos), então, em tese, é possível redistribuir o lucro de forma a deixar
todos os agentes com uma restrição orçamentária maior e, consequentemente,
aumentar o seu bem-estar (pela questão do aumento do conjunto de cestas
disponíveis). Essa seria uma política
que claramente geraria "boas consequências".
O
problema da solução acima é que muitos bens não estão disponíveis para serem
comprados e vendidos e não possuem um "preço de mercado", ou seja, não são bens
corriqueiros. Imagine, por exemplo, o
modelo descrito acima na avaliação da política de "escravizar pessoas" ou de "sacrificar
uma minoria". Um caso menos dramático:
imagine que uma intervenção no mercado, uma violação de propriedades, gere
"lucro" (benefícios superam os custos mais óbvios como peso morto de uma taxa,
custo de fiscalização etc..). Quanto
custa violar um princípio? Certamente é
bastante complicado mensurar isso com uma precisão suficiente para falar em
"lucro" ou "prejuízo" de uma política.
No entanto, é inegável que isso traz custos consideráveis - um exemplo
que ficou famoso graças ao economista James Buchanan é a violação da moralidade
do "orçamento público equilibrado". Um
déficit orçamentário, em geral, custa realmente para a sociedade o peso morto
gerado pela expectativa de tributação futura. Mas quanto custa perder a "vergonha" por gerar
déficits orçamentários? Em suma, quanto
custa o caminho da servidão?
Além
desses problemas, o comandante da política necessitaria saber os custos
individuais gerados sobre os envolvidos para se fazer essa posterior
distribuição do bolo de forma a "elevar" a restrição orçamentária de todos,
para valer a idéia de aumento de bem-estar (e de boas conseqüências). Isso, além de impraticável, geralmente tem
custos e acaba por gerar capturas e rent
seeking, o que termina em mais custos.
Ainda
contra o próprio conceito de "boas conseqüências" tendo como base a maximização
de riqueza (em valores monetários), temos também o caso da valoração do próprio
meio. Quanto um anarquista estaria
disposto a pagar para usar o setor privado no lugar do governo para realizar
determinada ação? Quanto um liberal
estaria disposto a pagar para não usar o governo como "distribuidor de bens"?
Por
fim, o conceito de "boas consequências" exige uma clarividência que
dificilmente algum ser humano possui, e se possuir, raramente conseguirá
convencer os outros com base nela. A
necessidade dessa clarividência aparece em muitos exemplos práticos — o das
drogas é um dos mais claros nesse sentido. É comum o argumento de que "a liberação das
drogas é um direito do indivíduo se aceitarmos a EADP, mas geraria péssimas consequências,
pois as famílias se destruiriam, teríamos aumento de crimes e o colapso do
tecido social". É um "argumento" muito
comum e é inegável que exige uma "clarividência sobre-humana", ainda mais
diante do verdadeiro e presente caos que a proibição gera.
Usei
o exemplo das drogas, mas esse tipo de argumento aparece em todo lugar, a todo o
momento. Inclusive, apareceu na época do movimento abolicionista - "acabar com
a escravidão irá destruir a sociedade, a economia". A bem da verdade, continuamos ouvindo
exatamente o mesmo argumento da boca dos tais "consequencialistas".