quinta-feira, 20 0aio 2010
Apesar de existir acordo generalizado quanto ao
fato de a Escola Austríaca ter nascido em 1871, com a publicação do livro de
Carl Menger (1840-1921) intitulado
Princípios
de Economia Política, na realidade, o principal mérito deste autor
consistiu em ter sabido recolher e impulsionar uma tradição do pensamento de
origem católica e européia continental que se pode fazer remontar até ao
nascimento do pensamento filosófico na Grécia e, de forma ainda mais intensa,
até à tradição de pensamento jurídico, filosófico e político da Roma
clássica.
Efetivamente, na Roma clássica descobriu-se que
o direito é basicamente consuetudinário e que as instituições jurídicas (assim
como as linguísticas e as econômicas) surgem como resultado de um longo
processo evolutivo, incorporando um enorme volume de informação e conhecimentos
que supera, e muito, a capacidade mental de qualquer governante, por mais sábio
e bem intencionado que ele possa ser.
Assim, sabemos graças a Cícero (De republica,
II, 1-2), a forma como, para Catão: "o motivo pelo qual o nosso sistema
político foi superior ao de todos os outros países é este: os sistemas
políticos dos países restantes foram criados introduzindo leis e instituições
de acordo com o parecer pessoal de indivíduos específicos, tais como Minos em
Creta e Licurgo em Esparta. De forma diferente, a nossa república romana não se
deve à criação pessoal de um homem, mas de muitos. Não foi fundada
durante a vida de um indivíduo particular, mas sim durante uma sucessão de
séculos e gerações. Porque
nunca houve no mundo um homem com inteligência suficiente para tudo
prever, e porque mesmo se pudéssemos concentrar todos os
cérebros na cabeça de um mesmo homem, lhe seria
impossível considerar tudo ao mesmo tempo sem ter
acumulado a experiência que deriva da prática ao longo de
um largo período da história".
O núcleo desta ideia essencial constituirá o
ponto fulcral do argumento de Ludwig von Mises sobre a impossibilidade teórica
da planificação socialista, e será conservado e reforçado na Idade Média graças
ao humanismo cristão e à filosofia tomista do direito natural, concebido como
um corpo ético prévio e superior ao poder de cada governo terreno. Pedro
Juan de Olivi, São Bernardino de Sena e Santo António de Florença, entre
outros, teorizaram sobre o papel protagonista que a capacidade empresarial e
criativa do ser humano tem como impulsionadora da economia de mercado e da
civilização. No entanto, o testemunho principal desta linha de pensamento
foi recolhido, divulgado e aperfeiçoado pelo conjunto de grandes teóricos
constituído pelos escolásticos do Século de Ouro espanhol os quais, sem
qualquer dúvida, deverão ser considerados como os principais precursores da
Escola Austríaca de Economia.
Os escolásticos do Século de Ouro espanhol como
precursores da Escola Austríaca
Para Friedrich A. Hayek, os princípios
teóricos da economia de mercado, assim como os elementos básicos do liberalismo
econômico, não foram concebidos, como geralmente se acredita, pelos calvinistas
e protestantes escoceses, sendo que, pelo contrário, são o resultado do esforço
doutrinário empreendido pelos dominicanos e jesuítas membros da Escola de
Salamanca durante o Século de Ouro espanhol. Hayek chegou mesmo ao
extremo de citar dois dos nossos escolásticos, Luís de Molina e Juan de Lugo,
no seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel da Economia em 1974. Este
economista austríaco começou a convencer-se da origem católica e espanhola da
análise econômica austríaca a partir dos anos de 1950, graças à influência do
professor italiano Bruno Leoni. Leoni convenceu Hayek de que as raízes da
concepção dinâmica e subjetivista da economia eram de origem continental e de
que, portanto, deveriam ser procuradas na Europa mediterrânica e na tradição
grega, romana e tomista, mais do que na tradição dos filósofos escoceses do
século XVIII. Além disso, Hayek teve a sorte de, durante esses anos, ter
uma das suas melhores alunas, Marjorie Grice-Hutchinson, que se especializara
em latim e literatura espanhola, levando a cabo, sob a orientação de Hayek, um
trabalho de investigação sobre as contribuições dos escolásticos espanhóis no
âmbito da economia, trabalho esse que, com o tempo, se converteu num pequeno
clássico.
Quem foram estes precursores intelectuais da
moderna Escola Austríaca de Economia? A maioria deles foram dominicanos e
jesuítas, professores de moral e teologia em universidades que, como a de
Salamanca e a de Coimbra, constituíram os focos mais importantes do pensamento
durante o Século de Ouro espanhol. Analisaremos em seguida, de forma
sintética, quais foram as suas principais contribuições para o que mais tarde
seriam os elementos básicos da análise econômica austríaca.
Talvez devamos começar fazendo menção a Diego
de Covarrubias y Leyva. Covarrubias (1512-1577), filho de um famoso
arquiteto, chegou a bispo da cidade de Segóvia (em cuja catedral se encontra
enterrado), sendo durante vários anos ministro do rei Filipe II. Em 1555,
Covarrubias expôs melhor do que ninguém até então a essência da teoria
subjetiva do valor, em torno da qual gira todo o enquadramento da análise
econômica da Escola Austríaca, ao afirmar que "o valor de uma coisa não
depende da sua natureza objetiva, mas, antes, da estimação subjetiva dos
homens, mesmo que tal estimação seja insensata"; aludindo para ilustrar a
sua tese ao fato de que "nas Índias o trigo vale mais do que na Espanha
porque ali os homens o estimam mais, e isso apesar de a natureza do trigo ser a
mesma em ambos os lugares".
Covarrubias escreveu também um estudo sobre a
evolução histórica da diminuição do poder aquisitivo do maravedí, antecipando
muitas das conclusões teóricas sobre a teoria quantitativa da moeda que
posteriormente seriam expostas por Martín de Azpilcueta e Juan de Mariana, entre
outros. O estudo de Covarrubias incorpora um grande volume de dados
estatísticos sobre a evolução dos preços no século precedente àquele em que
viveu, e foi publicado em latim com o título de Veterum collatio numismatum. Esta
obra de Covarrubias é muito significativa, não apenas por ter sido
citada de maneira laudatória em séculos posteriores pelos italianos Davanzati e
Galiani, mas sobretudo por ser um dos livros citados por Carl Menger nos seus Princípios de Economia
Política.
A tradição subjetivista iniciada por
Covarrubias é continuada por outro notável escolástico, Luis Saravia de La
Calle, que é o primeiro a tornar clara a verdadeira relação que existe entre
preços e custos no mercado, no sentido de que, em todas as situações, são os
custos que tendem a seguir os preços e não o contrário, antecipando-se assim na
refutação dos erros da teoria objetiva do valor que seria posteriormente
desenvolvida pelos teóricos da escola clássica anglo-saxônica, e que viria a se
converter no fundamento da teoria da exploração de Karl Marx e dos seus
sucessores socialistas.
Assim, Saravia de la Calle, na sua obra Instrucción de mercaderes, publicada em castelhano em Medina del Campo
em 1544, escreveu que "os que medem o preço justo de uma coisa segundo o
trabalho, custos e riscos em que incorre quem produz a mercadoria cometem um
grave erro; porque o preço justo nasce da abundância ou falta de mercadorias,
de empresários e de moeda, e não dos custos, trabalhos e riscos".
Além disso, todo o livro de Saravia de la Calle
está centrado na função do empresário, que ele denomina "mercader",
seguindo assim a já mencionada tradição escolástica sobre o papel dinamizador
do empresário que remonta a Pedro João de Olivi, Santo António de Florença e,
principalmente, São Bernardino de Sena.
Outra notável contribuição dos nossos
escolásticos foi a introdução do conceito dinâmico de concorrência (em latim, concurrentium), entendida como o processo empresarial de
rivalidade que move o mercado e impulsiona o desenvolvimento da
sociedade. Esta ideia, que haverá de converter-se no coração da teoria do
mercado da Escola Austríaca, contrasta radicalmente com os modelos de
equilíbrio de concorrência perfeita, monopolística e de monopólio analisados
pelos neoclássicos, e levou também os escolásticos a concluir que os preços do
modelo de equilíbrio (que eles denominaram "preços matemáticos"), que
os teóricos neoclássicos socialistas pretenderam utilizar para justificar o
intervencionismo e a planificação do mercado, nunca poderiam chegar a ser
conhecidos. Assim, Raymond de Roover atribui a Luis de Molina o conceito
dinâmico de concorrência entendida como "o processo de rivalidade entre
compradores que tende a elevar o preço", e que nada tem a ver com o modelo
estático de "concorrência perfeita" que, no século XX, os denominados
"teóricos do socialismo de mercado" ingenuamente acreditaram poder
ser simulado num regime sem propriedade privada. Apesar disso, é Jerónimo
Castillo de Bovadilla quem melhor expõe esta concepção dinâmica da livre
concorrência entre empresários no seu livro Política para corregidores, publicado em Salamanca em 1585, onde ele afirma que a característica
mais positiva da concorrência é conseguir "emular" o concorrente.
Castillo de Bovadilla enuncia ainda a seguinte lei econômica, base da defesa do
mercado por parte de todo o economista austríaco: "os preços dos produtos
baixarão com a abundância, emulação e concorrência de vendedores".
Quanto à impossibilidade de os governantes ou
os analistas chegarem a conhecer os preços de
equilíbrio e os demais dados de que necessitam para intervir no
mercado ou para elaborar os seus modelos, destacam-se as
contribuições dos cardeais jesuítas espanhóis Juan de Lugo e
Juan de Salas. O primeiro, Juan de Lugo (1583-1660), questionando-se
sobre a determinação do preço de equilíbrio, já em
1643 havia concluído que depende de uma tão grande
quantidade de circunstâncias específicas que apenas Deus o
pode conhecer ("pretium iustum mathematicum licet
soli Deo notum"). O segundo, Juan de Salas, em 1617, referindo-se à possibilidade de que um governante possa chegar a conhecer a informação específica que dinamicamente se cria, descobre e usa no mercado, afirma que "quas exate comprehendere et ponderare Dei est non hominum", ou seja, que
apenas Deus, e não os homens, pode compreender e ponderar
exatamente toda a informação e o conhecimento que
são usados no processo de mercado pelos agentes econômicos com todas as suas circunstâncias particulares de tempo e de espaço (Salas, 1617: 4, nº 6, 9). Como veremos, tanto Juan
de Lugo como Juan de Salas antecipam, em mais de
três séculos, as mais refinadas contribuições dos mais
destacados pensadores austríacos (especialmente Mises e
Hayek).
Outro dos elementos essenciais do que depois se
converterá na análise econômica da Escola Austríaca é o princípio da
preferência temporal, segundo o qual, tudo o resto constante, os bens presentes
são sempre mais valorizados do que os bens futuros. Esta doutrina foi
redescoberta por Martín de Azpilcurta (o famoso doutor Navarro) em 1556, que por
sua vez a tomou de um dos melhores discípulos de São Tomás de Aquino, Giles de
Lessines que, já em 1285, havia afirmado que "os bens futuros não são tão
valorizados como os mesmos bens disponíveis de imediato, nem têm a mesma
utilidade para os seus proprietários. Por esta razão, o seu valor de
acordo com a justiça há de ser mais reduzido".
Os efeitos distorcivos da inflação, entendida
como toda a política estatal de crescimento da oferta monetária, foram também
estudados analiticamente pelos escolásticos. Neste âmbito, destaca-se o
trabalho do padre Juan de Mariana intitulado De monetae mutatione,
traduzido para castelhano posteriormente pelo autor com o título de Tratado y discurso sobre
la moneda de vellón que al presente se labra en castilla y
de algunos desórdenes y abusos (Mariana,
1987). Neste livro, publicado pela primeira vez em 1605, Mariana critica
a política seguida pelos governantes da sua época de baixar de forma deliberada
o valor da moeda, embora não utilize o termo "inflação", desconhecido
na época, explica a forma como os efeitos da mesma são o incremento dos preços
e a desorganização geral da economia real.
Mariana critica também a política de
estabelecimento de preços máximos para lutar contra os efeitos da inflação,
política que ele considera não só incapaz de produzir efeitos positivos, mas
também altamente danosa para o processo produtivo. Melhora-se assim a
análise muito mais simplista, por ser exclusivamente macroeconômica, efetuada
anteriormente por Martín de Azpilcueta em 1556, e antes dele por Copérnico no
seu livro Monetae cudendae
ratio, onde foi exposta pela
primeira vez a típica versão, muito simplificada e mecanicista, da teoria
quantitativa da moeda hoje tão divulgada. São também importantes as contribuições dos
nossos escolásticos para a teoria bancária.
Assim, por exemplo, é claríssima a crítica do
Doutor Saravia de la Calle ao exercício do sistema bancário com reserva
fracionária, no sentido de que a utilização em benefício próprio mediante
concessão de empréstimos a terceiros, de dinheiro que é depositado à vista nos
bancos é ilegítima e implica um pecado grave, doutrina que coincide plenamente
com a que foi estabelecida pelos autores clássicos do direito romano, e que
surge naturalmente da própria essência, causa e natureza jurídica do contrato
de depósito irregular de dinheiro.
Também Martín de Azpilcueta e Tomás de Mercado
desenvolveram uma análise rigorosa e muito exigente sobre a atividade bancária
que, embora não chegue aos níveis críticos de Saravia de la Calle, inclui um
excelente tratamento das exigências que a justiça impõe que se observem no
contrato de depósito bancário de dinheiro. Uns e outros, portanto, exigem
implicitamente que a atividade bancária se exerça com um coeficiente de caixa
de cem por cento, proposta esta que haverá de converter-se num dos elementos
fundamentais da análise austríaca relativa à teoria do crédito e dos ciclos econômicos.
Menos rigorosa e, portanto, mais compreensiva
com o exercício do sistema bancário de reserva fracionária, é a análise de Luis
de Molina e Juan de Lugo, ainda que, de acordo com Dempsey, se estes autores
tivessem conhecido detalhadamente o funcionamento e as implicações teóricas do
sistema bancário com reserva fracionária, tal como os mesmos foram
desenvolvidos por Mises, Hayek e o resto dos teóricos da Escola Austríaca, o
processo de expansão do crédito e inflação fiduciária originado pelo sistema
bancário com reserva fracionária teria sido considerado, pelos próprios Molina,
Lesio e Lugo como um vasto e ilegítimo processo de usura institucional.
Interessa, não obstante, ressaltar como Luis de
Molina foi o primeiro teórico a salientar que os depósitos e o dinheiro
bancário em geral, que ele denomina em latim chirographis pecuniarum, é parte integrante, da mesma forma que o dinheiro em espécie, da
oferta monetária. De fato, Molina expressou em 1597, muito antes de
Pennington em 1826, a ideia essencial de que o volume total de transações
monetárias que se efetua numa feira não poderia ser pago com a quantidade de
dinheiro metálico que na mesma muda de mãos, se não fosse pela utilização do dinheiro
que os bancos geram através do registro dos seus depósitos e da
emissão de cheques sobre os mesmos por parte dos
depositantes. De tal forma que, como resultado da atividade financeira
dos bancos, se cria a partir do nada uma nova quantidade de dinheiro sob a
forma de depósitos que é utilizada nas transações.
Finalmente, o padre Juan de Mariana escreveu
outro livro intitulado Discurso
sobre las enfermedades de La compañia, publicado com caráter póstumo em 1625. Neste livro, Mariana
realiza uma análise puramente austríaca relativa à impossibilidade de um
governo poder organizar a sociedade civil com base em ordens coercivas, e isto
devido à falta de informação. De fato, é impossível ao Estado obter a
informação de que necessita para dar um conteúdo coordenador às suas ordens,
pelo que a sua intervenção tende a criar desordem e caos. Assim, Mariana,
referindo-se ao governo, disse que "é um grande desatino que o cego queira
guiar aquele que vê", frisando que os governantes "não conhecem as
pessoas, nem os fatos, pelo menos, com todas as circunstâncias que os envolvem,
de que depende uma decisão acertada. É forçoso que se caia em muitos e
graves erros, e que isso cause descontentamento às pessoas e as leve a
menosprezar um governo tão cego"; conclui Mariana que "é louco o
poder e o mando", e que quando "as leis são muitas e em demasia, como
não se podem preservar todas, nem sequer saber, a todas se perde o
respeito".
Em suma, os escolásticos espanhóis do nosso
Século de Ouro foram já capazes de articular o que depois viriam a ser os
princípios mais importantes da Escola Austríaca de Economia e, em
concreto, os seguintes: primeiro, a teoria subjetiva do valor (Diego de
Covarrubias y Leyva); segundo, a descoberta da relação correta que existe
entre os preços e os custos (Luis Saravia de la Calle); terceiro, a natureza dinâmica do mercado e a impossibilidade de alcançar o
modelo de equilíbrio (Juan de Lugo e Juan de Salas); quarto, o conceito dinâmico de concorrência entendida como um processo
de rivalidade entre os vendedores (Castillo de Bovadilla e Luis de Molina), quinto, a redescoberta do princípio da preferência temporal (Martín de
Azpilcueta); sexto, o efeito profundamente distorcivo que a
inflação tem sobre a economia real (Juan de Mariana, Diego de Covarrubias e
Martín de Azpilcueta); sétimo, a análise crítica do sistema bancário
exercido com reserva fracionária (Luis Saravia de la Calle e Martín de
Azpilcueta); oitavo, a descoberta de que os depósitos bancários
são parte da oferta monetária (Luis de Molina e Juan de Lugo); nono,
a impossibilidade de organizar a sociedade através de ordens compulsivas, por
falta da informação necessária para dar um conteúdo coordenador às mesmas (Juan
de Mariana), e décimo, a tradição liberal de que toda a intervenção
injustificada no mercado constitui uma violação do direito natural (Juan de
Mariana).
Existem, portanto, razões fundadas para
concluir que a concepção subjetivista e dinâmica do mercado, ainda que tenha sido
retomada e definitivamente impulsionada por Menger em 1871, teve
início na Espanha. A tradição do pensamento econômico da Escola Austríaca
tem, pois, a sua origem intelectual na Espanha e mais concretamente numa
escola, a de Salamanca, que, da mesma forma que a moderna Escola Austríaca, e
em profundo contraste com o paradigma neoclássico, se caracteriza sobretudo
pelo grande realismo e rigor dos seus pressupostos analíticos.
A decadência da tradição escolástica e a
influência negativa de Adam Smith
Para compreender a influência dos
escolásticos espanhóis sobre o posterior desenvolvimento da Escola Austríaca de
Economia é preciso recordar, antes de tudo, que no século XVI, o imperador e
rei de Espanha Carlos V enviou o seu irmão Fernando I para ser rei da
Áustria. "Áustria" significa, etimologicamente, "parte
este do Império", Império que nessa altura compreendia praticamente a
totalidade da Europa continental, com a única exceção importante da França, que
permanecia isolada e rodeada por forças espanholas. É assim fácil
compreender a origem da influência intelectual dos escolásticos espanhóis sobre
a Escola Austríaca, e que não foi uma simples coincidência ou um mero capricho
da história, mas que foi o produto de íntimas relações históricas, políticas e
culturais que se desenvolveram entre a Espanha e a Áustria a partir do século
XVI. Estas relações haveriam de manter-se durante vários séculos e nas
mesmas também teve um papel importantíssimo a Itália, como ponte cultural
através da qual fluíram as relações intelectuais entre ambos os extremos do
Império (Espanha e Áustria). Por tudo isto, existem importantes
argumentos para defender a tese de que, pelo menos nas suas origens, a Escola
Austríaca é, em última instância, uma escola de tradição espanhola.
De fato, pode-se afirmar que o principal mérito
de Carl Menger consistiu em redescobrir e impulsionar esta tradição católica
continental de origem espanhola que, praticamente, estava esquecida e havia
caído em decadência como consequência, por um lado, do triunfo da reforma
protestante e da lenda negra contra tudo o que fosse espanhol e, por outro lado
e, sobretudo, devido à muito negativa influência que as teorias de Adam Smith e
do resto dos seus seguidores da Escola Clássica da Economia tiveram na história
do pensamento econômico. Com efeito, como indica Murray N. Rothbard, Adam
Smith abandonou as contribuições anteriores centradas na teoria subjetiva do
valor, a função empresarial e o interesse em explicar os preços que se
verificam no mercado real, substituindo a todas pela teoria do valor trabalho,
sobre a qual Marx construirá, como conclusão natural, toda a teoria socialista
da exploração.
Além disso, Adam Smith concentra-se
preferencialmente na explicação do "preço natural" de equilíbrio no
longo prazo, um modelo de equilíbrio em que a função empresarial prima
pela sua
ausência e se supõe que toda a informação necessária já está
disponível,
o que virá depois a ser utilizado pelos teóricos neoclássicos do
equilíbrio
para criticar supostas "falhas de mercado" e para justificar o
socialismo e a intervenção do estado sobre a economia e a sociedade
civil.
Por outro lado, Adam Smith impregnou a ciência
econômica de calvinismo, por exemplo, ao apoiar a proibição da usura e
ao
distinguir entre ocupações "produtivas" e
"improdutivas". Finalmente, Adam Smith rompeu com o
laissez-faire radical
dos seus antecessores jusnaturalistas
do continente (espanhóis, franceses e italianos) introduzindo na
história do pensamento
um "liberalismo" muito tíbio e tão empestado de exceções e
relativizações que muitos teóricos "social-democratas" de hoje poderiam
inclusivamente aceitar.
A influência negativa que, do ponto de vista da
Escola Austríaca, teve o pensamento da escola clássica anglo-saxônica sobre a
Ciência Econômica acentua-se com os sucessores de Adam Smith e, em especial,
com Jeremy Bentham, que inoculou o bacilo do mais estreito utilitarismo na
nossa disciplina, impulsionando com ele o desenvolvimento de toda uma análise
pseudocientífica de custos e benefícios (que se acredita que possam ser
conhecidos), e o surgimento de toda uma tradição de "engenheiros
sociais" que pretendem moldar a sociedade à sua vontade utilizando o poder
coercivo do estado.
Na Inglaterra, Stuart Mill culmina esta
tendência com o seu abandono do laissez-faire
e as suas numerosas concessões
ao socialismo, e na França, o triunfo do racionalismo construtivista de origem
cartesiana explica o domínio dos intervencionistas da École Polytechnique e do
socialismo cientifista de Saint-Simon e Comte. Afortunadamente, e apesar
do obscurecedor imperialismo intelectual que os teóricos da escola clássica
anglo-saxônica exerceram sobre a evolução da nossa disciplina, a tradição
continental de origem católica impulsionada pelos nossos escolásticos do Século
de Ouro espanhol nunca foi totalmente esquecida. Assim, esta corrente
doutrinal influenciou dois notáveis economistas, um irlandês, Cantillon, e
outro francês, Turgot, que podem em grande medida ser considerados os
verdadeiros fundadores da Ciência Econômica.
De fato, Cantillon, por volta do ano de 1730,
escreve o seu Ensaio sobre a
natureza do comércio em geral,
que, segundo Jevons, é o primeiro tratado sistemático de economia. Neste
livro, Cantillon realça a figura do empresário como motor do processo de mercado e explica
ainda que o aumento da quantidade de dinheiro não afeta de imediato o nível
geral de preços, uma vez que o seu impacto na economia real se dá por etapas,
ou seja, sucessivamente e através de um processo que inevitavelmente afeta e
distorce os preços relativos que surgem no mercado. Trata-se do famoso
efeito Cantillon, logo copiado por Hume, e que foi depois retomado por Mises e
Hayek na sua análise sobre a teoria do capital e dos ciclos.
Posteriormente, o marquês D'Argenson em 1751 e,
sobretudo, Turgot, muito antes que Adam Smith, já haviam articulado
perfeitamente o caráter disperso do conhecimento incorporado nas instituições
sociais entendidas como ordens espontâneas, e cuja análise se haveria de
converter num dos elementos essenciais do programa de investigação
hayekiano. Assim, Turgot, no seu Elogio
de Gournay, já em 1759,
concluiu que "não é preciso provar que cada indivíduo é o único que pode
julgar com conhecimento de causa o uso mais vantajoso das suas terras e do seu
esforço. Somente ele possui o conhecimento específico sem o qual até o
homem mais sábio se encontraria às cegas. Aprende com os seus intentos
repetidos, com os seus êxitos e com os seus fracassos, e assim vai adquirindo
um sentido especial para os negócios que é muito mais engenhoso do que o
conhecimento teórico que pode ser adquirido por um observador indiferente,
porque é impelido pela necessidade". Refere-se igualmente Turgot, e
neste aspecto segue o padre Juan de Mariana, à "completa impossibilidade
de dirigir através de regras rígidas e de um controlo contínuo a multiplicidade
de transações que, além de nunca poderem chegar a ser plenamente conhecidas
devido à sua imensidade, também dependem continuamente de uma multiplicidade de
circunstâncias em constante mudança que não podem controlar-se nem sequer
prever-se".
Mesmo na Espanha, e durante a longa decadência
dos séculos XVIII e XIX, a tradição dos nossos escolásticos não desapareceu
completamente, e isto apesar do enorme complexo de inferioridade face ao
universo intelectual anglo-saxônico típico daquela época. Prova disso é
que outro autor espanhol de tradição católica foi capaz de resolver o paradoxo
do valor e de enunciar com toda a clareza a lei da utilidade marginal vinte e
sete anos antes de Carl Menger publicar os seus Princípios de Economia Política. Trata-se do catalão Jaime Balmes
(1810-1848), que durante a sua curta vida se tornou o mais importante filósofo
tomista na Espanha do seu tempo. Assim, em 1844, publicou um artigo
intitulado "Verdadeira ideia do valor ou reflexões sobre a origem,
natureza e variedade dos preços", em que ele não só resolveu o paradoxo do
valor, como também expôs com toda a clareza a lei da utilidade marginal.
Balmes questiona-se "Como é que uma pedra
preciosa vale mais do que um pedaço de pão, do que um cômodo vestido, e talvez
até do que uma saudável e grata vivenda?"; e responde: "não é difícil
explicá-lo; sendo o valor de uma coisa a sua utilidade, ou aptidão para
satisfazer as nossas necessidades, quanto mais precisa for para a satisfação
delas maior será o seu valor; deve-se
considerar também que se o número de meios aumenta, diminui a
necessidade de cada um deles em particular, porque podendo-se
escolher entre muitos, nenhum é indispensável. Aqui está por que razão há uma
dependência necessária entre o aumento e diminuição do valor e a escassez e
abundância de uma coisa. Um pedaço de pão tem pouco valor, mas é porque
tem relação necessária com a satisfação das nossas necessidades, porque há
muita abundância de pão. Porém, diminuam
a sua abundância, e o seu valor rapidamente crescerá, até atingir um nível
qualquer, fenômeno que se verifica em tempo de escassez, e que se torna mais
palpável em todos os gêneros durante as calamidades da guerra numa praça
acossada por um muito prolongado assédio".
Desta forma, Balmes foi capaz de fechar o
círculo da tradição continental e deixá-lo preparado para que a mesma fosse
completada, aperfeiçoada e impulsionada, poucas décadas depois, por Carl
Menger, e pelo resto dos seus discípulos da Escola Austríaca de Economia.
Tradução
de André Azevedo Alves
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Esse artigo foi extraído do capítulo 3 do livro
A Escola Austríaca, disponível em nossa
biblioteca virtual.