Existem
três vertentes keynesianas, cada uma com muito pouco ou praticamente nada em comum com
as outras duas: os keynesianos ortodoxos, os neo-keynesianos e os
pós-keynesianos.
Os
keynesianos ortodoxos foram quase que totalmente dizimados pela estagflação da
década de 1970 nos EUA. Como eles
advogavam que o estado aumentasse os gastos para reduzir o desemprego e reduzisse
os gastos para reduzir a inflação de preços, eles simplesmente não tinham
solução para o que fazer quando ocorresse inflação e desemprego altos ao mesmo
tempo. Esse era um fenômeno que eles
julgavam impossível. Após a década de
70, a maioria sumiu de cena.
Entretanto,
ainda restaram alguns fósseis. Dentre
estes, o mais proeminente é James Kenneth Galbraith,
filho do lendário keynesiano ortodoxo John Kenneth
Galbraith. Suas colunas, que anualmente
atormentam o mundo no website The Nation,
mostram que James herdou a ignorância econômica de seu pai — só que com mais
vigor. Em sua última pérola, o ilustre
diz explicitamente que déficits são maravilhosos, que gastos estatais são
supimpas e que — está sentado? — é a dívida pública que faz uma economia
crescer.
Se
você acha que eu estou inventando ou exagerando, pode clicar aqui e conferir por
sua conta e risco. Se você não souber
inglês, esteja certo de que você está — parodiando Thomas Woods sobre Paul
Krugman — "vivendo uma vida muito mais tranquila que a minha".
Já
os neo-keynesianos são Keynes com sabor de Chicago. São vulgarmente chamados de
neoclássicos. Seus representantes mais
ilustres são Gregory Mankiw e Olivier Blanchard, ambos populares autores de
livros-texto de macroeconomia adotados pelas principais universidades do mundo. Coloque um neo-keynesiano e um chicaguista
numa mesa e eles trocarão muito mais carícias do que ofensas. São também inimigos figadais dos
pós-keynesianos.
Finalmente,
os pós-keynesianos. Estes se
autoproclamam os verdadeiros keynesianos.
Consideram os keynesianos ortodoxos muito pueris e os neo-keynesianos
muito ignorantes. Apenas eles, os
pós-keynesianos, realmente leram e entenderam Keynes — ou é o que eles
próprios dizem. O problema é que ler
Keynes é uma coisa, entender é outra. O
fato de A Teoria Geral ser
absolutamente incompreensível explica bem esse fenômeno bizarro: o mesmo livro gerou
três vertentes que não se entendem, não se bicam e se vituperam mutuamente.
Economicamente,
os pós-keynesianos estão, por assim dizer, à direita dos keynesianos ortodoxos
e à esquerda dos neo-keynesianos, que eles chamam de neoliberais. Quanto a estes últimos, as principais
diferenças estão na política monetária.
Para um pós-keynesiano, a moeda é o segredo de tudo. É ela quem gera a riqueza de uma
economia. Se o país não está crescendo,
se a economia está aquela pasmaceira, basta imprimir dinheiro e reduzir os
juros. O crescimento virá como que por
gravidade.
É
fácil encontrar nas universidades (e eu falo isso de experiência própria, pois
tive um professor pós-keynesiano) professores pós-keynesianos que dizem com
absoluta convicção que o banco central não deve ter parcimônia na impressão de
dinheiro. Quanto mais dinheiro, maiores
serão os salários, maior será a demanda, maior será o crescimento econômico. Inflação? "Ah, isso é perfeitamente
ajustável. Basta controlar os gastos do
governo". Desemprego? "É só aumentar os
gastos e duplicar a velocidade da impressora." Capital e produção? "Hein?! O
que é isso?"
Sim,
para um pós-keynesiano, a manipulação monetária é tudo. É da moeda que vem a riqueza. São os juros baixos, tendentes a zero, que
propiciam investimentos vultosos e profícuos.
O fato de o capital advir da poupança é, para eles, uma ficção. O fato de a produção ter necessariamente de
vir antes do consumo é bobagem. E, principalmente,
o fato de papel pintado gerar demanda mas não necessariamente gerar oferta
(pois oferta precisa de produção e produção precisa de capital e capital só
advém da poupança) é algo desimportante — na verdade, isso sequer é
considerado. Para um pós-keynesiano,
basta você imprimir dinheiro, que as coisas surgem.
Esse
professor pós-keynesiano que tive na universidade vivia tecendo loas ao Fed,
ainda em 2006. "Aquilo, sim, é que é um
banco central heterodoxo, pós-keynesiano mesmo!
Lá não tem essa bobagem de contenção monetária que praticamos
aqui". Isso, obviamente, foi antes da
crise econômica. É bem provável que hoje
ele não mais fale isso. No entanto, não
podemos ignorar a exatidão e a honestidade de sua análise.
Feitas
essas considerações, vamos ao título dessa postagem. Algumas pessoas já me perguntaram: "Afinal,
qual a ideologia de José Serra?" E eu
respondo sem pestanejar: "Pós-keynesiano".
Alguns
mais bem informados, que se esforçam para ter boa vontade com o tucano e que
fazem de tudo para tentar vê-lo como alguém mais amigável ao mercado do que sua
insípida rival, ainda tentam contra-argumentar recorrendo aos seguintes fatos:
ele foi o mais entusiasmado proponente da privatização da Vale e da telefonia,
foi um dos relatores da Lei
de Responsabilidade Fiscal, não é do tipo que, ao contrário de Lula, sai
dando aumentos desregrados para o funcionalismo público (prefere investir em
infraestrutura), não é de estourar o orçamento e incorrer em déficits, além de
ser a favor das concessões de estradas e aeroportos para a iniciativa privada.
E
eu retruco: "pós-keynesiano". Poucos
sabem, mas os pós-keynesianos, ao contrário do que o senso comum imagina, não
dão muita pelota para esse debate "empresa estatal vs. empresa privada". É perfeitamente possível você encontrar
pós-keynesianos a favor da privatização da Petrobras e da Eletrobras, por
exemplo. Da mesma forma, eles não acham
que o estado deva necessariamente mexer com minério, aço, aviões, petróleo,
fertilizante e nanotecnologia. Essa
fixação com empresa estatal é um fetiche puramente marxista, e não keynesiano.
Da
mesma forma, é bastante comum você ouvir pós-keynesiano defendendo orçamento
equilibrado. É lógico que, durante recessões,
essa defesa vai esmorecer; porém, ainda assim, seria correto dizer que, em
tempos normais, os pós-keynesianos são sim a favor de um orçamento equilibrado
— o que não quer dizer que eles sejam a favor do corte de gastos; no máximo,
uma restriçãozinha aqui e ali.
Agora,
como é possível imaginar, esse pessoal é casca-grossa justamente na área
monetária. Para eles, crédito fácil é
condição sine qua non para o crescimento econômico robusto. Dinheiro farto e juros baixos — por meio da
canetada — são o caminho da criação de riqueza e da prosperidade. E isso é muito mais perigoso do que criar
estatal de fertilizante. Estatal gera
desperdício e privilégios políticos; crédito fácil gera ciclos econômicos,
destroi capital, aumenta a pobreza e atrasa o progresso.
É
mais fácil selar a paz entre judeus e árabes do que convencer um pós-keynesiano
de que a estatização do
crédito e a manipulação dos juros — ambas as medidas explicitamente
defendidas por Keynes em A Teoria Geral
— são nefastas para a economia. Caixa
Econômica, Banco do Brasil e BNDES são entidades sacrossantas para um
pós-keynesiano. Bancos públicos, com seu
crédito facilitado, são os genuínos fomentadores do crescimento sustentável.
Já
o Banco Central, a instituição que é para o pós-keynesiano o que o GOSPLAN era
para o politburo, pode tanto ser uma entidade extremamente benévola — se
presidida por um pós-keynesiano que não tenha parcimônia com a impressora — ou
totalmente malévola — se presidida por um Gustavo Franco ou até mesmo por um
relaxado Henrique Meirelles, por exemplo.
O
histórico das declarações de Serra a respeito das políticas adotadas pelo Banco
Central confirma sua posição. Era
crítico ríspido do chicaguista Gustavo Franco (o que menos expandiu a base
monetária do país), por quem nutria "desprezo intelectual". Foi admirador de Armínio Fraga,
pós-keynesiano enrustido (o que mais expandiu a base monetária do país). E foi crítico, no início áspero, hoje
comedido, de Henrique Meirelles, também chicaguista (cuja expansão da base é um
meio termo entre Franco e Fraga).
Serra
é pós-keynesiano. E sua rival é uma
marxista mussoliniana (no sentido corporativista do termo). Estamos bem.