Em fevereiro de 2009, o Zimbábue era o único país do mundo sem dívidas. Ninguém devia nada a ninguém. Após o abandono da moeda local - o dólar
zimbabuano - como meio de troca, toda a dívida interna foi aniquilada e o país
apagou o passado e começou de novo.
Hoje o Zimbábue é um país sem um Banco Central operante e sem uma moeda
local que possa ser produzida e manipulada ao livre gosto de políticos. Desde fevereiro de 2009, não mais existe uma
entidade que sirva de emprestadora de última instância ao sistema bancário, o
que obriga os bancos a serem ultracautelosos em suas políticas de
empréstimo. O dólar americano tornou-se
a moeda de fato do país, embora o euro, a libra esterlina e o rand sul-africano
sejam aceitos em transações locais.
Políticas de controle de preços, de regulamentações cambiais e de controle
de fluxos de capital foram abandonadas.
O Zimbábue literalmente ingressou no mundo real com uma canetada. Agora o dinheiro flui para dentro e para fora
do país sem restrições. As prateleiras
dos supermercados, vazias até janeiros, hoje estão repletas de produtos.
Visitei recentemente o Zimbábue em companhia de um proeminente gestor de
fundos australiano. Como estudioso da
história monetária, eu estava interessado em ver o que acontece com um país que
sofreu de hiperinflação. Como as pessoas
enfrentaram o problema? Como o país está
progredindo agora? A atual situação do Zimbábue
é complicada pelo fato de o presidente Robert Mugabe estar determinado a
permanecer no poder a qualquer custo.
Tivemos a sorte de ter participado de entrevistas privadas com o novo
Primeiro Ministro, Morgan Tsvangirai (líder da oposição que concordou em
participar do governo), e com vários líderes empresariais. Isso nos forneceu um rápido retrato do
passado e do presente do Zimbábue
Existem denominadores comuns em todas as hiperinflações. Geralmente as finanças do governo atingem um
ponto tão crítico que os enormes déficits orçamentários não mais podem ser
financiados por impostos ou empréstimos.
Nesse cenário, sobram apenas duas opções: austeridade (com o governo
cortando seus gastos) ou o financiamento do déficit via impressão de dinheiro,
o que leva ao imposto inflacionário (a inflação é um imposto). Ambas são decisões políticas, mas a que gera
menor resistência é a impressão monetária.
Cortar gastos governamentais e demitir burocratas é um anátema para
quaisquer políticos.
No Zimbábue, Robert Mugabe outorgou a si próprio a missão de permanecer
presidente para o resto da vida. Para
tal, ele infiltrou seus apoiadores no exército e nas polícias. Ele também usou as finanças do governo para
financiar o clientelismo e comprar grupos de apoio. Seu uso da impressora era libertino e ninguém
tinha a coragem de se erguer contra ele.
Com o tempo, isso fez com que a inflação de preços fosse ganhando
robustez até o ponto em que as forças armadas começaram a se rebelar - elas
queriam mais dinheiro. Quando Mugabe
cedeu a essas demandas, o dólar zimbabuano afundou.
Logo após Mugabe ser eleito presidente em 1980, o dólar zimbabuano valia
mais do que o dólar americano. O
contínuo abuso do sistema financeiro acabou por produzir uma inflação
galopante. A maior cédula já emitida no
Zimbábue foi a de Cem Trilhões de Dólares, mostrada na figura abaixo. Essas cédulas hoje são itens de colecionador
e eu tive de dar US$2 para um vendedor de rua para adquirir a cédula mostrada
abaixo.

O pior trauma para o cidadão comum durante a hiperinflação foi a escassez de
comida. Isso se devia principalmente à
imposição de controle de preços. Se o
custo de produção de um item era $10 e os burocratas que controlavam os preços
instruíam que esse item só poderia ser vendido a $5, o empreendimento
rapidamente iria à bancarrota se vendesse ao preço decretado. O resultado previsível foi que a produção e
as importações simplesmente secaram, daí as prateleiras vazias nos supermercados.
As pessoas sobreviveram comprando nos países vizinhos e dependendo da
assistência vinda da África do Sul e de agências humanitárias
internacionais. As empresas sobreviveram
à hiperinflação com grande dificuldade e frequentemente ignorando leis. Embora as empresas tenham ficado sem dívidas
após fevereiro de 2009, elas também ficaram sem capital, com plantas e
equipamentos dilapidados - afinal, reparos e manutenções periódicas eram
despesas que não podiam ser bancadas.
Consequentemente, a maioria das empresas hoje necessita de uma urgente
recapitalização.
Houve um enorme êxodo de zimbabuanos ao longo dos anos, estimado em 3
milhões até antes de 2008. Muitos eram
pessoas qualificadas que foram submetidas à campanha de terror mugabeana. Durante os últimos estágios da hiperinflação,
houve um êxodo ainda maior porque as pessoas estavam famintas. A maioria delas foi para a África do Sul. Estima-se que a atual população do Zimbábue
esteja entre 10 e 12 milhões de pessoas, o que faz com que o número de pessoas
que fugiram do país seja significante em relação à população total.
A atual atividade econômica depende intensamente das remessas dos migrantes
zimbabuanos para suas famílias no Zimbábue.
Tão logo a situação política se resolva, é provável que muitos desses
migrantes queiram retornar ao país.
Alguns já o fizeram. Muitas
atividades que sumiram durante a hiperinflação, como os seguros, agora estão
ressuscitando.
Atividades de financiamento de crédito estão começando a ressurgir. Cartões de crédito Visa voltaram a operar com
êxito no Zimbábue, o que fará com que outras bandeiras certamente também se
interessem pelo mercado. Os bancos
tiveram ambos os lados (ativos e passivos) de seus balancetes devastados pela
hiperinflação e agora não têm um emprestador de última instância a quem
recorrer para pedir socorro. Assim, eles
estão compreensivelmente mais cautelosos para emprestar os depósitos que
lentamente estão voltando ao sistema. Os
bancos também perderam grande parte de seu capital líquido. O Barclays Bank sobreviveu porque tinha 40
filiais onde o banco era o dono dos imóveis, além de ter uma matriz forte a
quem recorrer. Essas propriedades e mais
alguns depósitos em moeda estrangeira representam o capital líquido com o qual
o banco atualmente opera.
Em um país sem dívidas, apenas com ativos, as pessoas e as empresas estão
subcapitalizadas. Como os bancos
adotaram políticas de empréstimo ultracautelosas, há uma enorme oportunidade
para estrangeiros investirem na indústria de fornecimento de crédito. Com o crédito estrangeiro, as indústrias
locais poderão importar capital e aumentar a produção, atendendo a uma
população faminta por bens e serviços.
Houve um acentuado aumento na atividade econômica desde fevereiro. Os salários reais aumentaram substancialmente
em relação a um ano atrás. Qualquer que
fosse o valor que os trabalhadores recebessem em dólares zimbabuanos durante a
hiperinflação, eles não conseguiam comprar praticamente nada. Hoje, mesmo o salário mínimo de cerca de
US$100 por mês permite compras básicas.
Um saco de 10kg de milho maís, alimento básico da dieta local, custa
US$3,50 e dura duas semanas. A demanda
por produtos e serviços vem crescendo rapidamente, fazendo com que os lucros
corporativos também estejam em ascensão.
A melhora econômica será expressiva quando Mugabe sair de cena. Quando isso ocorrer, agências humanitárias,
ONGs, instituições de caridade e mais investidores estrangeiros começarão a
injetar enormes volumes de fundos e auxílios no país. Atualmente eles se recusam a alocar quantias
mais significativas pelo fato de Mugabe ainda ser o presidente.
Com Mugabe fora do caminho e a economia se recuperando fortemente, é
razoável imaginar que grande parte dos zimbabuanos morando no exterior voltarão
ao país levando capital, qualificação, conhecimento e capacidade - fatores
esses que serão muito bem vindos. Com
efeito, muitos estrangeiros também se sentirão atraídos a investir no país
nessas circunstâncias.
É fascinante ver o quão rápido a economia está se recuperando. É um grande testemunho do que pode ocorrer em
um ambiente de livre iniciativa quando se eliminam controles e regulamentações
e se institui uma nova moeda na qual as pessoas confiam. Para ter essa característica, precisa ser uma
moeda que o governo não pode criar eletronicamente ou por meio de impressoras.
O futuro econômico do Zimbábue provavelmente está na mineração, agricultura,
turismo e indústrias de prestação de serviços, especialmente aquelas que
fornecem serviços para infraestrutura e manutenção. Ainda há muitos problemas, sendo o desemprego
crônico um dos principais; mas o futuro parece promissor além do horizonte
mugabeano. A população é uma das mais
educadas da África e a maioria das pessoas fala inglês. Com os ativos naturais que o país possui, há
escopo para um otimismo realista quanto ao futuro econômico, especialmente
quando as atuais dificuldades políticas forem superadas. A população foi brutalmente traumatizada pela
hiperinflação e pela situação política. Os zimbabuanos realmente merecem um
futuro mais decente.
Mugabe
No
início de 1980 o país, que até então se chamava Rodésia, tornou-se independente
da Grã-Bretanha e mudou seu nome para Zimbábue.
Mugabe, um ex-líder de guerrilhas que lutava pela independência,
surpreendeu a todos ganhando 63% do voto popular na primeira eleição. Apesar de alegações de fraude eleitoral e
intimidação de eleitores, os números foram tão avassaladores que Mugabe acabou
sendo reconhecido como o vencedor e ele viria a ser o novo presidente. O povo do Zimbábue, após décadas de conflitos
e tensões raciais, só queria paz.
Mugabe,
não obstante suas declarações iniciais de que seria um moderado, começou a
tomar medidas para se perpetuar na presidência, uma posição que ele queria
manter por toda a vida. Para surpresa de
todos, ele não revogou o Decreto de Manutenção da Lei e Ordem que havia sido
instaurado pelo regime branco para cobrir seus vários atos maléficos. Mugabe se baseou nos termos desse decreto
para justificar as coisas terríveis que ele viria a fazer nas três décadas
seguintes.
Essas
atrocidades estão bem detalhadas no livro Mugabe, de
Martin Meredith, e não há porque detalhá-las aqui. Basta apenas dizer que ele estava empenhado
em eliminar seus oponentes e punia qualquer um que o criticasse. Membros do seu partido socialista (Zanu-PF)
se infiltraram no exército e na polícia e ficaram à sua disposição para agir
como marginais sempre que necessário. Os
leais foram recompensados com uma gama de clientelismos e mimos.
Ele
encontrou um parceiro dócil e condescendente na figura de Gideon Gono, o
presidente do Banco Central do Zimbábue, que se tornou a fonte dos fundos que
Mugabe utilizava para pagar seu pessoal e administrar seus patrimônios. Desnecessário dizer que grande parte do dinheiro
veio da impressão de novos dólares zimbabuanos, o que fez com que a inflação
fosse aumentando gradualmente. Com o
tempo, o exército e as forças policiais foram ficando irritados, passando a
exigir publicamente salários mais altos.
O
trecho a seguir foi extraído da Wikipédia:
No dia 16 de fevereiro de 2006,
o presidente do Banco Central do Zimbábue, Gideon Gono, anunciou que o governo
havia imprimido Z$20,5 trilhões para comprar moeda estrangeira para dívidas
atrasadas com o FMI. No início de maio
de 2006, o governo do Zimbábue anunciou que iria imprimir mais Z$60
trilhões. Esse volume adicional era
necessário para financiar o recente aumento de 300% nos salários de soldados e
policiais, e de 200% nos salários de outros funcionários públicos. O dinheiro não havia sido previsto no
orçamento daquele ano fiscal, e o governo não disse de onde ele viria. No dia 29 de maio, o Banco Central anunciou
que seus planos de imprimir mais Z$60 trilhões (aproximadamente US$592,9
milhões no câmbio oficial) estavam temporariamente adiados após o governo não
ter conseguido captar moeda estrangeira para comprar tinta e papel especial
para imprimir o dinheiro.
No dia 27 de junho de 2007, foi
anunciado que Gideon Gono havia recebido ordens de Mugabe para imprimir mais
Z$1 trilhão para poder pagar o aumento dos salários de funcionários públicos e
soldados, que haviam subido 600% e 900%, respectivamente.
Claramente Mugabe foi o responsável pela hiperinflação. As causas foram aquelas sempre presentes
nesses eventos. Uma economia fraca,
grandes déficits orçamentários, incapacidade do governo em conseguir
empréstimos, tudo isso aliado à decisão política de não cortar gastos. Governos, em todo e qualquer lugar, são
relutantes em demitir seus empregados, especialmente aqueles ligados às forças
armadas. Estes podem ficar descontentes
e incitar um golpe militar. A única
fonte de financiamento que sobra é a criação de mais dinheiro.
Um fator muito importante na avaliação da atual situação é que Mugabe não
mais tem sua própria fonte privada de fundos - que o era o Banco Central do
Zimbábue - para manter seu sistema clientelista. O exército, a polícia e os funcionários
públicos agora são pagos pelo governo de coalizão, o que significa que são os
partidos, e não Mugabe, quem aprova os valores.
A base de apoio de Mugabe deve estar se desintegrando rapidamente. Ele também se tornou bastante impopular. Parece improvável que ele possa ganhar uma
eleição novamente, mesmo que ele consiga fazer com que seus gorilas recorram a
métodos intimidantes. Os zimbabuanos
hoje identificam Tsvangirai e seu partido (Movimento pela Mudança Democrática -
MMD) com o novo arranjo monetário e com as melhorias econômicas, ao passo que
Mugabe é corretamente apontado como o culpado pelo trauma de hiperinflação.
Conclusões
Tendo visto in loco o impacto da
hiperinflação, estou certo de que este é o menos desejável dos métodos de se
eliminar o endividamento excessivo. A
população foi traumatizada fisicamente (pela fome), mentalmente e
financeiramente. A maioria das pessoas
não tinha ativos estrangeiros ou ativos locais tangíveis, portanto elas
virtualmente perderam tudo. As empresas
sobreviveram utilizando habilidades raras, ignorando leis e protegendo seu
capital de giro - comprando moedas estrangeiras, ações e ativos.
A opção alternativa para se eliminar o endividamento excessivo é adotar a
dura decisão política de permitir que empresas "grandes demais para quebrar"
quebrem, e aceitar as desagradáveis consequências econômicas dessa medida. Os gastos excessivos do governo devem ser
restringidos. Uma moeda sólida, a
eliminação de todas as regulamentações e controles, e um mercado completamente
livre irão produzir resultados muito melhores no longo prazo. Se essa opção fosse adotada, o curto prazo
seria extremamente desagradável, o que possivelmente inclui uma depressão
econômica. É duvidoso que qualquer
governo atual tenha a coragem de seguir essa rota.
Infelizmente, isso significa que o mundo está seguindo o mesmo caminho de
destruição monetária que, no final, irá resultar em um modelo zimbabuano de
eliminação das dívidas - afinal, governos preferem abater suas dívidas via
impressão monetária, pois trata-se de uma medida menos impopular do que
impostos.
O Zimbábue ainda pode se comprovar um exemplo de recuperação, mostrando o
quão rapidamente um país pode se recuperar da devastação causada pela
hiperinflação e pela abolição da dívida interna quando se adota um genuíno
livre mercado.
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Esse
artigo
em português narra a situação no Zimbábue até o início de fevereiro de 2009.