Adam
Smith (1723-1790) é um mistério envolto em uma charada dentro de um
enigma. O mistério é a enorme e inaudita
disparidade entre a exaltada reputação de Smith e a realidade de sua dúbia
contribuição para o pensamento econômico.
A
reputação de Smith praticamente eclipsa o sol.
Desde o seu tempo até muito recentemente, pensava-se que ele havia
virtualmente recriado a ciência econômica.
Ele era universalmente aclamado com o
Pai Fundador. Livros sobre a história do
pensamento econômico, após alguns poucos e bem merecidos escárnios direcionados
aos mercantilistas e alguns acenos para os fisiocratas, invariavelmente começam
dizendo que Smith é o criador da disciplina da economia. Quaisquer erros que ele tenha cometido são
compreensivelmente desculpados como sendo as inevitáveis falhas de todo grande
pioneiro.
Inúmeras
palavras já foram escritas sobre ele. No
bicentenário de sua obra magna, Uma
Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações (1776),
houve uma verdadeira avalanche de livros, ensaios e penduricalhos sobre o
sereno professor escocês. Seu perfil
esculpido em um medalhão feito por James Tassie é conhecido em todo o mundo. Até mesmo um filme hagiográfico sobre Smith
foi feito por uma fundação pró-livre mercado durante o bicentenário, e
empreendedores e defensores do livre mercado há muito aclamam Adam Smith seu
santo padroeiro.
'Gravatas
de Adam Smith' foram utilizadas como insígnia de honra pelo alto escalão do
governo Reagan.
Por
outro lado, os marxistas, de certa forma com mais justiça, saúdam Smith como a
inspiração suprema de seu próprio Pai Fundador, Karl Marx. Com efeito, se pedíssemos ao cidadão comum
para citar dois economistas históricos dos quais ele já ouviu falar, Smith e
Marx provavelmente seriam os vencedores disparados da pesquisa.
Como já vimos, Smith
dificilmente foi o fundador da ciência econômica, uma ciência que existiu desde
os escolásticos medievais e, em sua forma moderna, desde Richard
Cantillon. Mas aquilo que os alemães
costumavam classificar como o Das
AdamSmithProblem[1] é algo muito mais severo do que
isso. Pois o problema não é apenas que
Smith não foi o fundador da ciência econômica.
O
problema é que ele não originou nada que fosse verdade, e tudo que ele originou
estava errado. Mesmo em uma época em que
havia menos citações e notas de rodapé do que a nossa, Adam Smith foi um
desavergonhado plagiador, pouco ou nunca reconhecendo suas fontes e roubando
grandes nacos, por exemplo, da obra de Cantillon. Muito pior foi a completa recusa de Smith em
citar ou reconhecer seu querido mentor Francis Hutcheson, de quem ele extraiu a
maioria de suas ideias bem como a organização de suas escritas sobre economia e
filosofia moral. Smith chegou até a
escrever uma carta privada à Universidade de Glasgow falando sobre o 'nunca a
ser esquecido Dr. Hutcheson', mas aparentemente a amnésia convenientemente o
acometeu quando foi escrever A Riqueza
das Nações para o público geral.[2]
Embora
fosse um inveterado plagiário, Smith sofria de um complexo de Colombo, e
acusava amigos próximos de estarem plagiando-o.
E mesmo sendo um plagiador, ele plagiava mal, acrescentando novas
falácias às verdades que coletava. Ao
castigar Adam Smith por seus erros, portanto, não estamos sendo anacrônicos,
punindo absurdamente pensadores do passado por não serem tão espertos quanto
nós, que viemos depois. Pois Smith não
apenas não contribuiu com nada de valor para o pensamento econômico, como
também sua economia foi uma grave deterioração da economia de seus
predecessores: de Cantillon, de Turgot, de seu professor Hutcheson, dos
escolásticos espanhóis, e até mesmo, bizarramente, de seus próprios trabalhos
anteriores, como Escritas sobre
Jurisprudência (não publicado, 1762-63, 1766) e a Teoria dos Sentimentos Morais (1759).
O
mistério de Adam Smith, portanto, é a imensa disparidade entre uma reputação
monstruosamente hiperinflacionada e a deplorável realidade. Mas o problema é pior do que isso; não é
apenas o fato de A Riqueza das Nações
ter desfrutado de uma terrivelmente exagerada reputação desde seus dias até
hoje. O problema é que A Riqueza das Nações de alguma forma
conseguiu cegar todos os homens, economistas e leigos igualmente, para o fato
de que outros economistas, que eram melhores, haviam existido e escrito antes
de 1776. A Riqueza das Nações exerceu no mundo um impacto tão colossal que
todo o conhecimento de economistas anteriores foi apagado - daí a reputação de
Smith como o Pai Fundador da ciência econômica.
O problema histórico é esse: como pôde ocorrer esse fenômeno com um
livro tão derivativo, tão profundamente falho, tão menos notório que seus
predecessores?
A
resposta certamente não é por causa de alguma lucidez ou clareza de estilo ou
de pensamento. Pois o tão reverenciado A Riqueza das Nações é um livro enorme,
prolixo, rudimentar e confuso, repleto de ambiguidades e profundas contradições
internas. É obviamente uma vantagem, na
história do pensamento social, para um livro ser enorme, prolixo, rudimentar e
confuso. Há uma vantagem sociológica em
ser ambíguo e obscuro. O estupefato
alemão Christian J. Kraus, ardoroso
smithiano, certa feita se referiu a A
Riqueza das Nações como a 'Bíblia' da economia política. De certa forma, o professor Kraus foi mais
sábio do que imaginava. Pois, de certa
maneira, A Riqueza das Nações é como
a Bíblia; é possível extrair variadas e contraditórias interpretações de várias
- ou até mesmo das mesmas - partes do livro.
Ademais,
a própria ambiguidade e obscuridade de uma obra podem fornecer um paraíso para
intelectuais, estudantes e seguidores. Progredir
e ter êxito na compreensão de um tratado obscuro e difícil, organizar segmentos
tenuemente percebidos em uma estrutura coerente - essas são as tarefas por si
mesmas gratificantes para intelectuais.
E tais livros também fornecem um bem vindo processo de exclusão embutido
em sua estrutura, de modo que somente um número relativamente pequeno de
adeptos pode regozijar-se de sua especialidade acerca de uma obra ou de um
sistema de pensamento. Dessa maneira
eles aumentam sua renda e prestígio relativos, e deixam para trás outros
admiradores que prontamente se encarregam de formar o grupo de aplauso para os
principais discípulos do Mestre.
Adam
Smith não fundou a ciência econômica, mas ele de fato criou o paradigma da
escola clássica britânica, e é sempre útil para o criador de um paradigma ser
rudimentar e confuso, deixando assim espaço para os discípulos que irão tentar
clarificar e sistematizar as contribuições do Mestre. Até os anos 1950, os economistas, ao menos
aqueles da tradição anglo-americana, reverenciavam Smith como o fundador, e
viam os posteriores desenvolvimentos da economia como um movimento linearmente
ascendente em direção à luz, com Smith sendo sucedido por Ricardo e John Stuart
Mill, e depois, após um pouco de divergência criada pelos austríacos nos anos
1870, com Alfred Marshall estabelecendo a economia neoclássica como sendo uma
disciplina neo-ricardiana - logo, neo-smithiana. De certo modo, John Maynard Keynes, aluno de
Marshall em Cambridge, pensou estar apenas preenchendo o vácuo da herança
ricardiana-marshalliana.
Dentro
desse enfatuado miasma de adoração a Smith, a História da Análise Econômica (1954) de Joseph A. Schumpeter surgiu
como um autêntico arrasa-quarteirão.
Oriundo das tradições continentais walrasianas e austríacas, ao invés do
classicismo britânico, Schumpeter conseguiu, virtualmente pela primeira vez,
lançar um olhar frio e realista sobre o celebrado escocês. Escrevendo com um desdém finamente
dissimulado, Schumpeter usualmente denegria a contribuição de Smith, e
essencialmente mantinha que Smith havia desviado a economia para um caminho
errado, um caminho infelizmente distinto daquele traçado por seus ancestrais
continentais.[3]
Desde
Schumpeter, os historiadores do pensamento econômico adotaram amplamente uma
posição de recuo. Smith, reconhecem eles,
não criou nada, mas foi o grande
sintetizador e sistematizador, o primeiro a pegar todos os segmentos dispersos
de seus predecessores e costurá-los de modo a formar uma estrutura coerente e
sistemática. Mas o trabalho de Smith foi
o oposto do coerente e do sistemático, e Ricardo e Say, seus dois maiores
discípulos, cada um deles se incumbiu da tarefa de moldar um sistema coerente
fora da bagunça smithiana.
Mais
ainda: embora seja verdade que os escritos pré-Smith eram incisivos porém
esparsos (Turgot), ou entranhados de filosofia moral (Hutcheson), é também
verdade que já havia dois tratados gerais sobre economia anteriores a A Riqueza das Nações. Um deles é Essai, a grande obra de Cantillon, a qual, após o advento de Smith,
caiu em atroz esquecimento, sendo resgatada apenas um século depois por Jevons;
e o outro, o primeiro livro a utilizar economia política em seu título, foi Principles
of Political Economy (1767), uma obsoleta obra em dois volumes de Sir James
Steuart (1712-80). Steuart, um jacobita
[partidários dos Stuarts, após a
abdicação de Jaime II do trono da Inglaterra em 1688] que esteve envolvido
na rebelião do príncipe Charles Edward Stuart
para restaurar a dinastia Stuart, passou grande parte da sua vida como exilado
na Alemanha, onde ele se tornou imbuído da metodologia e dos ideais do
'cameralismo' alemão.
O cameralismo foi uma forma virulenta de
mercantilismo absolutista que prosperou na Alemanha nos séculos XVII e
XVIII. Os cameralistas, mais ainda que
os mercantilistas europeus ocidentais, não eram de modo algum economistas -
isto é, eles não analisavam os processos do mercado; eram apenas conselheiros
técnicos dos soberanos, aconselhando como e de que maneira aumentar o poder
estatal sobre a economia. O livro de
Steuart seguia essa tradição. Quase nada
falava sobre economia; encarregava-se apenas de fazer apelos para maciças
intervenções governamentais e planejamentos centrais totalitários, desde detalhadas
regulações do comércio, passando por um sistema de cartéis compulsórios até
chegar a políticas monetárias inflacionistas.
Sua única 'contribuição' foi refinar e expandir noções fugazes e
rudimentares sobre a teoria do valor-trabalho, e elaborar uma teoria
proto-marxista sobre o inerente conflito de classes da sociedade. Ademais, Steuart havia escrito um calhamaço
ultramercantilista justamente na época em que o pensamento liberal clássico e
laissez-faire estava em ascensão e se tornando dominante ao menos na
Grã-Bretanha e na França.
Ainda que o livro de Steuart estivesse em
descompasso com o emergente espírito liberal clássico da época, estava errado
quem concluiu que a obra teria pouca ou nenhuma influência. O livro foi bem recebido, altamente respeitado,
e apresentou boas vendagens. E cinco
anos após sua publicação, em 1772, Steuart ganhou a batalha contra Adam Smith
para o posto de consultor monetário da Companhia das Índias Orientais.
Uma razão por que a visão de Schumpeter
surpreendeu a profissão econômica é que os historiadores do pensamento
econômico, similarmente aos historiadores de outras disciplinas, habitualmente
tratam o desenvolvimento da ciência como sendo uma marcha linear e ascendente
rumo à verdade. Cada cientista
pacientemente formula, testa e descarta hipóteses, de modo que assim cada um
que tenha êxito está sobre os ombros daquele que o precedeu. Essa 'teoria progressista da história da
ciência' foi hoje amplamente descartada em prol da mais realista teoria
kuhniana dos paradigmas. Para nossos
propósitos, o ponto importante da teoria de Kuhn é que muito poucas pessoas testam
pacientemente qualquer coisa, particularmente as hipóteses fundamentais, ou o
'paradigma' básico de suas teorias: e mudanças nos paradigmas podem ocorrer
mesmo quando a nova teoria é pior que a antiga.
Em resumo, o conhecimento pode ser e é
perdido da mesma forma que é ganho, e a ciência normalmente procede em
zigue-zague ao invés de linearmente.
Podemos acrescentar que isso seria particularmente verdade para as
ciências sociais ou humanas. Como
resultado, paradigmas e verdades básicas se perdem, e os economistas (bem como
as pessoas de outras disciplinas) podem piorar, e não melhorar, ao longo do
tempo. Os anos podem tanto trazer
progresso quanto retrocesso.
Schumpeter arremessou uma granada no templo
dos historiadores progressistas do pensamento econômico, especificamente dos
partidários da tradição de Smith-Ricardo-Marshall.[4]
Apresentamos assim nossa própria versão do Das AdamSmithProblem: como pôde uma obra
tão gravemente falha como A Riqueza das Nações rapidamente se tornar tão
dominante a ponto de apagar todas as outras alternativas? Mas antes de considerarmos essa questão,
temos de examinar os vários aspectos do pensamento smithiano em mais detalhes.
A
vida de Smith
Adam Smith nasceu em 1723 na pequena cidade
de Kirkcaldy, perto de Edimburgo. Seu
pai, também Adam Smith (1679-1723), que morreu pouco antes de ele nascer, foi
um eminente promotor de justiça militar da Escócia e depois o superintendente
fiscal da alfândega em Kirkcaldy, que havia se casado com uma moça pertencente
a uma rica família proprietária de terras.
O jovem Smith foi, portanto, criado pela mãe. A cidade de Kirkcaldy era militantemente
presbiteriana. Na escola em que estudou,
a escola Burgh, ele encontrou vários jovens escoceses presbiterianos, sendo que
um deles, John Drysdale, veio a ser por duas vezes o moderador da assembleia
geral da Igreja da Escócia.
Smith, de fato, veio de uma família de
funcionários da alfândega. Além de seu
pai, seu primo Hercules Scott Smith serviu como coletor da alfândega de
Kirkcaldy; seu guardião, outro que também se chamava Adam Smith, veio a ser
coletor alfandegário em Kirkcaldy bem como inspetor alfandegário em outros
portos escoceses. Finalmente, um outro
primo também chamado Adam Smith mais tarde veio a trabalhar como coletor
alfandegário em Alloa.
De 1737 a 1740, Adam Smith estudou na
Universidade de Glasgow, onde ele ficou fascinado pelas ideias de Francis
Hutcheson e absorveu os encantos do liberalismo clássico, do direito natural e
da economia política. Em 1740, Smith obteve
seu mestrado com louvor na Universidade de Glasgow. Sua mãe o havia batizado na fé episcopal, e
ela ansiava por ver o filho se tornar um ministro episcopal. Smith foi mandado ao Balliol College, em
Oxford, em uma bolsa de estudos destinada a promover futuros clérigos
episcopais. Porém ele se sentia infeliz
por causa do péssimo nível de instrução ofertada pela Oxford daqueles tempos, e
retornou após seis anos, aos 23 anos de idade, sem ter se ordenado. Não obstante seu batismo e a pressão de sua
mãe, Smith permaneceu um ardente presbiteriano e, ao retornar a Edimburgo em
1746, ele ficou desempregado por dois anos.
Finalmente, em 1748, Henry Home, mais conhecido
como Lord Kames, juiz e líder do iluminismo escocês, além de ser primo de David
Hume, decidiu promover uma série de palestras públicas em Edimburgo para educar
os advogados. Junto com o amigo de
infância de Smith, James Oswald de Dunnikier, Kames conseguiu fazer com que a
Sociedade Filosófica de Edimburgo patrocinasse Smith durante vários anos de
palestras sobre direito natural, literatura, liberdade de comércio e liberdade
individual. Em 1750, Adam Smith obteve a
cadeira de teoria da lógica em sua alma
mater, a Universidade de Glasgow, e não teve quaisquer dificuldades em
fazer a Confissão de Fé de Westminster perante o Presbitério de Glasgow. Finalmente, em 1752, Smith teve a satisfação
de ascender à cadeira de filosofia moral que pertenceu ao seu querido professor
Hutcheson, na qual ele ficaria por 12 anos.
As palestras de Smith em Edimburgo e Glasgow
foram muito populares, e a principal ênfase foi no 'sistema de liberdade
natural', no sistema de direito natural e no laissez-faire, o qual ele vinha até então promovendo com muito
menos qualificação do que em sua mais cuidadosa A Riqueza das Nações. Ele
também conseguiu converter muitos dos principais mercadores de Glasgow a esse
excitante novo credo. Smith também se
atirou com entusiasmo nas associações sociais e educacionais que estavam
começando a ser formadas pelo moderado clérigo presbiteriano, pelos professores
universitários, pelos literatos e pelos advogados, tanto em Glasgow quanto em
Edimburgo. É provável que David Hume
tenha assistido às palestras de Edimburgo em 1752, pois os dois se tornaram
amigos leais logo depois.
Smith foi um membro fundador da Sociedade
Literária de Glasgow no ano seguinte; a sociedade se engajava em discussões e
debates de alto nível, e se reunia diligentemente todas as quintas-feiras de
novembro a maio. Hume e Smith eram
membros, e em uma das primeiras sessões Smith leu uma descrição de alguns dos
recém impressos Discursos Políticos
de Hume. Estranhamente, os dois amigos,
claramente os membros mais brilhantes da Sociedade, eram extremamente
acanhados, e nunca disseram uma palavra em qualquer uma das discussões.
Não obstante seu acanhamento, Smith era um
ativo e inveterado sócio de clubes, tornando-se o principal membro da Sociedade
Filosófica de Edimburgo e da Sociedade Seleta (também de Edimburgo), que
prosperaram durante a década de 1750 e que se reuniam semanalmente, juntando a
moderada alta elite do clero, membros universitários e advogados. Smith também era membro ativo do Clube de
Economia Política de Glasgow, do Oyster Club (Edimburgo), do Simson's Club de
Glasgow, e do Poker Club (Edimburgo), fundado por seu amigo Adam Ferguson,
professor de filosofia moral da Universidade de Edimburgo, especificamente para
promover o 'espírito guerreiro'.
Como se isso não fosse o suficiente, Adam
Smith foi um dos principais contribuidores e editores da malograda Edinburgh Review (1755-56), dedicada amplamente
à defesa de seus amigos Hume e Kames contra a linha dura evangélica do clérigo
calvinista da Escócia. A Edinburgh Review foi fundada pelo jovem
e brilhante advogado Alexander Wedderburn (1733-1805), que viria a ser juiz,
depois membro do parlamento inglês e finalmente Juiz Supremo britânico
(1793-1801). Wedderburn era latitudinário
a ponto de defender a licença de bordeis.
Outros luminares da Edinburgh
Review eram membros da elite moderada: o político John Jardine (1715-60),
cuja filha se casou com o filho de Lord Kames; o poderoso reverendo William
Robertson, e o reverendo Hugh Blair (1718-1800), professor de retórica da
Universidade de Edimburgo.
A intensidade do presbiterianismo de Adam
Smith, ainda que ele não fosse fundamentalista, pode ser vista em sua relação
com Hugh Blair. Blair, um pastor da
igreja Greyfriars, em Edimburgo, estava em constante atrito com o clérigo
calvinista ortodoxo, que repetidamente o denunciava aos presbitérios de Glasgow
e Edimburgo. Em A Riqueza das Nações, Adam Smith prestou o seguinte encômio ao
clérigo presbiteriano: 'Talvez seja difícil encontrar em qualquer lugar da
Europa um grupo de homens mais erudito, decente, independente e respeitável do
que a maior parte do clérigo presbiteriano da Holanda, de Genebra, da Suíça e
da Escócia.' Seu velho amigo Blair,
embora ele próprio um dos principais clérigos presbiterianos, comentou em uma
carta a Smith: 'Você está, creio eu, sendo excessivamente benévolo para com o
Presbitério'.
Após Smith publicar sua filosofia moral em
sua obra A Teoria dos Sentimentos Morais
(1759), sua crescente fama lhe valeu uma posição altamente lucrativa em 1764
como tutor do jovem Duque
de Buccleuch. Por causa desses três
anos de tutoragem, os quais ele passou com o jovem duque na França, Smith foi
premiado com um salário anual vitalício de £300, duas vezes seu salário anual
em Glasgow. Durante esses três
agradáveis anos na França, ele foi apresentado a Turgot e aos fisiocratas. Tendo completado sua tarefa tutorial, Smith
voltou à sua cidade natal Kirkcaldy, onde, tranqüilo com seu ordenado
vitalício, ele trabalhou por dez anos para finalizar A Riqueza das Nações, a qual ele já havia começado durante sua
estadia na França.
A fama de A
Riqueza das Nações levou seu orgulhoso pupilo, o Duque de Buccleuch, a dar
a Smith, em 1778, o altamente bem pago posto de comissário da alfândega
escocesa em Edimburgo. Com um salário de
£600 anuais por esse posto governamental, o qual ele manteve até o dia de sua
morte em 1790, acrescido de sua bela pensão vitalícia, Adam Smith estava
ganhando perto de £1000 por ano - uma 'receita principesca', como um de
seus biógrafos descreveu. O próprio
Smith escreveu nessa época que ele estava 'tão rico quanto eu poderia
sonhar'. Ele lamentava apenas ter de
comparecer ao seu posto de trabalho na alfândega, o que lhe roubava tempo de
suas 'atividades literárias'.
Contudo, essa lamentação dificilmente era
verídica. Em contraste ao que diz a
maioria dos historiadores, que trataram o cargo alfandegário de Smith
embaraçosamente como uma sinecura à qual ele não comparecia e que ele havia
ganhado meramente como recompensa por suas conquistas intelectuais, pesquisas
recentes mostram que Smith trabalhava em tempo integral em seu posto,
frequentemente presidindo as reuniões diárias do conselho de comissários da
alfândega. Mais ainda: Smith quis essa
nomeação e aparentemente achou o cargo agradável e relaxante. É verdade que Smith gastou pouco tempo e
energia em estudos e escritas após sua nomeação; mas havia a disponibilidade de
licenças do trabalho, as quais Smith não demonstrou o menor interesse em
utilizar. Ademais, o que permitiu a Smith
buscar essa nomeação não foram bem seus feitos intelectuais; o cargo lhe foi
dado mais como recompensa pelos conselhos prestados como consultor para assuntos
tributários e orçamentais do governo britânico desde meados da década de 1760.[5]
A
divisão do trabalho
É apropriado começar a discutir A Riqueza das Nações focando a divisão
do trabalho, uma vez que o próprio Smith começa sua obra nesse ponto e dado
que, para Smith, essa divisão tinha importância crucial e decisiva. Seu professor Hutcheson também havia analisado
a importância da divisão do trabalho nas economias em desenvolvimento, assim
como haviam feito o mesmo Hume, Turgot, Mandeville, James Harris e outros
economistas.
Mas para Smith, a
divisão do trabalho assumiu uma importância excessiva e agigantada, relegando
às sombras questões cruciais como acumulação de capital e o crescimento do
conhecimento tecnológico. Como
Schumpeter demonstrou, nunca para um economista anterior ou posterior a Smith a
divisão do trabalho adquiriu tal posição de predominante importância.
Porém há mais problemas com a divisão do
trabalho smithiana, além do fato de ele ter exagerado sua importância. A mais velha e mais verdadeira percepção do
real motivo da especialização e das trocas é simplesmente o fato de que cada
lado de uma troca (que necessariamente envolve dois lados e duas mercadorias)
se beneficia (ou ao menos espera se beneficiar) dessa troca; de outra forma a
troca não ocorreria. Porém Smith
desafortunadamente desvia o foco principal desse fenômeno: segundo ele, ao
invés do benefício mútuo, há uma supostamente irracional e inata 'propensão a
permutar, trocar e cambiar', como se os seres humanos fossem toupeiras
comandadas por forças exteriores a seus próprios propósitos escolhidos.
Como demonstrou Edwin Cannan, Smith escolheu
essa direção porque ele rejeitava a ideia de que há diferenças inatas nos
talentos naturais e nas habilidades, o que naturalmente resultaria na busca por
ocupações diferentes e especializadas.
Smith, ao contrário, escolheu a posição igualitária e ambientalista -
ainda hoje dominante na economia neoclássica - de que todos os trabalhadores
são iguais, e que, portanto, a diferença entre eles é resultado, e não a causa, do sistema de divisão do trabalho.
Além disso, Smith foi incapaz de aplicar sua
análise da divisão do trabalho ao comércio internacional, o que teria fornecido
poderosa munição para suas próprias políticas de livre comércio. Coube a James Mill fazer tais aplicações em sua
excelente teoria das vantagens comparativas.
Ademais, domesticamente, Smith deu excessiva importância à divisão do
trabalho dentro de uma fábrica ou
indústria, ao mesmo tempo em que negligenciou a bem mais significativa divisão
do trabalho entre as indústrias.
Mas se Smith tinha um exagerado apreço pela
importância da divisão do trabalho, ele paradoxalmente semeou grandes problemas
para o futuro ao introduzir a moderna e crônica reclamação sociológica sobre
especialização, a qual foi rapidamente apropriada por Karl Marx e desde então
tem sido elevada ao estado de arte por socialistas ranzinzas que reclamam da
'alienação'. Não há como negar que Smith
se contradisse totalmente entre o Livro I e o Livro V de A Riqueza das Nações. No
primeiro, a divisão do trabalho sozinha explica a riqueza da sociedade
civilizada - e, com efeito, a divisão do trabalho é repetidamente equiparada a
'civilização' ao longo do livro. E ainda
assim, enquanto que no Livro I a divisão do trabalho é aclamada por expandir a
vivacidade e a inteligência da população, no Livro V ela é condenada por levar
à sua degeneração moral e intelectual, à perda de suas 'virtudes intelectuais,
sociais e guerreiras'. Não há como tal
contradição ser plausivelmente conciliada.[6]
Adam Smith, embora fosse ele próprio um
plagiário de marca maior, como já foi dito, sofria também do complexo de
Colombo, frequentemente acusando outras pessoas de estarem injustamente
plagiando-o. Em 1755, ele inclusive
chegou a reivindicar a invenção do conceito de laissez-faire, ou o sistema de liberdade natural, afirmando que
fora ele quem havia lecionado esses princípios desde as palestras de Edimburgo,
em 1749. Pode ser. Mas a alegação ignora que tais expressões já
haviam sido ditas por seus próprios professores, bem como por Hugo Grócio e
Pufendorf, para não mencionar Boisguilbert e os outros pensadores laissez-faire franceses do final do
século XVII.
Em 1769, o contencioso Smith acusou de plágio
o diretor William Robertson por ocasião da publicação do livro History
of the Reign of Charles V, de
autoria deste último. Não se sabe qual
seria o tópico do roubo literário, e é difícil imaginar, considerando a
distância entre a obra de Smith e o tema do livro de Robertson.
A mais famosa acusação de plágio lançada por
Smith foi contra seu amigo Adam Ferguson sobre a questão da divisão do
trabalho. O professor Hamowy mostrou que
Smith não terminou a amizade com seu velho amigo, como anteriormente
havia se pensado, por causa do uso que Ferguson fez do conceito de divisão do
trabalho em seu Ensaio Sobre a História da Sociedade Civil, de
1767. Pela visão de todos os escritores
que haviam empregado o conceito anteriormente, esse comportamento seria
ridículo, mesmo para Adam Smith. O
professor Hamowy supõe que o fim da amizade veio no início dos anos 1780, por
causa de uma discussão proposta por Ferguson, em seu clube, sobre aquilo que viria
a ser publicado mais tarde como parte de seu Principles of Moral and
Political Science, de 1792. Nesse
seu livro, Ferguson sumariza o exemplo da fábrica de alfinetes que constitui a
passagem mais famosa de A Riqueza das Nações. Smith descreve uma pequena fábrica de
alfinetes na qual dez trabalhadores, cada qual especializado em um diferente
aspecto do trabalho, poderiam produzir mais de 48.000 alfinetes por dia, ao
passo que se cada um desses dez fizesse todo o alfinete sozinho, eles poderiam
não fazer sequer um alfinete por dia, e certamente não mais do que 20. Dessa forma, a divisão do trabalho
multiplicou enormemente a produtividade de cada trabalhador. Em seu livro Principles, Ferguson
escreveu: 'Um agrupamento consistente de pessoas, no qual cada uma delas
executa apenas uma parte da fabricação de um alfinete, pode produzir muito mais
em um determinado intervalo de tempo do que talvez o dobro do número de
trabalhadores seria capaz caso cada um fosse produzir um alfinete inteiro ou
executar todas as etapas da construção desse diminuto artigo'.
Quando Smith censurou Ferguson por este não
reconhecer sua precedência no exemplo da fábrica de alfinetes, Ferguson
retorquiu dizendo que ele nada havia pegado emprestado de Smith, e que na
verdade ambos haviam retirado esse exemplo de uma fonte francesa 'a qual
Smith havia pegado antes dele'. Há
fortes evidências de que a 'fonte francesa' para ambos os escritores tenha sido
o artigo sobre epingles (alfinetes) na Encyclopédie (1755),
já que o artigo menciona 18 operações distintas necessárias para se fabricar um
alfinete, o mesmo número repetido por Smith em A Riqueza das Nações - embora
nas fábricas inglesas da época, 25 fosse o número mais comum de operações
necessárias.
Assim, Adam Smith terminou uma antiga e
duradoura amizade ao injustamente acusar Adam Ferguson de ter plagiado dele um
exemplo que, na verdade, ambos haviam retirado sem reconhecimento da Encyclopédie
francesa. O comentário feito pelo
reverendo Carlyle de que Smith possuía 'um pouco de ciúmes em seu temperamento'
parece ser uma enorme atenuação, e somos informados em seu registro obituário
na Monthly Review de 1790 que 'Smith vivia constantemente em tamanha apreensão
de ter suas ideias roubadas que, se ele visse algum de seus alunos anotando
suas apresentações, ele iria instantaneamente interrompê-lo e dizer "Odeio
escrevinhadores"'.[7]
O exemplo dado por Smith de uma pequena
fábrica francesa de alfinetes, ao invés de utilizar uma grande fábrica
britânica, realça um fato curioso sobre seu celebrado A Riqueza das Nações:
o renomado economista parecia não ter tido o menor conhecimento acerca da
Revolução Industrial que acontecia ao seu redor. Embora ele fosse amigo do Dr. John Roebuck, o
proprietário da siderurgia Carron, cuja inauguração em 1760 marcou o início da
Revolução Industrial na Escócia, Smith não demonstrou qualquer indicação de que
sabia de sua existência.
Não obstante ele fosse pelo menos um
conhecido do grande inventor James Watt, Smith não demonstrou ter qualquer
conhecimento de algumas das principais invenções de Watt. Ele não fez qualquer menção em seu famoso
livro ao boom na construção de canais que havia começado no início da década de
1760, à existência da próspera indústria têxtil de algodão, à indústria de
cerâmica ou aos novos métodos de fabricação de cerveja. Também não há referência à enorme queda nos
custos das viagens trazida pelas novas estradas pedagiadas.
Portanto, em contraste com aqueles historiadores
que o louvam por sua apreensão empírica das questões econômicas e industriais
contemporâneas, Adam Smith estava totalmente desatento em relação aos
importantes eventos econômicos que o rodeavam.
Grande parte de sua análise estava errada, e muitos dos fatos que ele
incluiu em seu A Riqueza das Nações eram obsoletos e foram coletados de
livros velhos mais de 30 anos.
Trabalho
produtivo vs. improdutivo
Uma das mais dúbias contribuições dos
fisiocratas para o pensamento econômico foi sua visão de que apenas a
agricultura era produtiva, que apenas a agricultura contribuía para que houvesse
excedentes - produit net - na economia.
Smith, fortemente influenciado pelos fisiocratas, manteve o infeliz
conceito de trabalho 'produtivo', mas o expandiu da agricultura para bens
materiais em geral. Para Smith,
portanto, o trabalho voltado para objetos materiais era 'produtivo'; mas o
trabalho voltado para, digamos, serviços, ou produção intangível, era
'improdutivo'.
A parcialidade de Smith em favor de objetos
materiais equivalia a uma propensão em favor de investimentos em bens de
capital, uma vez que um estoque de bens de capital por definição tem de estar
incorporado em objetos materiais. Bens
de consumo, por outro lado, podem tanto ser serviços intangíveis ou bens
quaisquer - sendo que, nesse caso, eles acabam sendo exauridos no processo de
consumo. A apologia de Smith à produção
material, portanto, era uma maneira indireta de defender investimentos na
acumulação de bens de capital em contraposição ao próprio objetivo de se
produzir bens de capital: aumentar o consumo.
Quando foi discutir exportações e
importações, Smith percebeu bem que não fazia sentido apenas acumular objetos
intermediários; o acúmulo só faria sentido se eles viessem a ser posteriormente
consumidos, isto é, se eles fabricassem algo.
Afinal, o único objetivo da produção é o consumo. Mas como o professor Roger Garrison
demonstrou, a consciência presbiteriana de Adam Smith o levou a valorizar o
trabalho per se, o trabalho como sua própria finalidade, e a rejeitar as
preferências temporais que existem no livre mercado entre poupança e
consumo.
Claramente Smith queria muito mais
investimento voltado para a produção futura e menos consumo presente do que o
mercado estaria disposto a escolher. Uma
das contradições de sua posição é que acumular mais bens de capital em detrimento
do consumo presente irá, no final, resultar em um maior padrão de vida apenas
se se permitir que esses meios de produção possam ser consumidos fabricando
bens. Afinal de que adianta ter meios de
produção se esses não podem ser consumidos?
Mas aparentemente Smith queria que houvesse um acúmulo cada vez maior de
meios de produção que nunca poderiam ser consumidos.
___________________________________________________
Notas
[1] Das AdamSmithProblem referia-se a apenas
um dos numerosos enigmas e contradições presentes na saga de Adam Smith: a
enorme disparidade entre os direitos naturais - as visões laissez-faire
contidas em sua obra A Teoria dos
Sentimentos Morais - e as visões muito mais limitadas contidas em sua
posterior e decisivamente influente A
Riqueza das Nações.
[2] Em um
iluminador artigo sobre 'Os Reconhecimentos de Adam Smith', o professor Salim
Rashad escreveu que 'Foi dito por Schumpeter que essa [não reconhecer as
fontes] era a prática daquela época.
Isso é incorreto. Se buscarmos
alguns dos trabalhos citados em A Riqueza
das Nações, como os Tratados sobre o
Comércio de Cereais de Charles Smith ou Memorandos
sobre o Algodão de John Smith, veremos ali um escrupuloso reconhecimento
desses autores em relação a suas dívidas intelectuais. Dentre os contemporâneos de Smith, Gibbon é
bem conhecido pelo cuidado que tinha em fornecer suas referências, o mesmo
sendo válido para o mais famoso escritor agrícola da época de Smith, Arthur
Young.' Salim Rashed in 'Adam Smith's Acknowledgements:
Neo-Plagiarism and the Wealth of Nations,' Journal of Libertarian Studies,
9 (Autumn 1990), p.11.
[3] A primeira e mais consistente peça
do moderno revisionismo sobre Smith veio um ano antes em dois excelentes e
iluminadores artigos de Emil Kauder: : 'Genesis of the Marginal Utility Theory:
From Aristotle to the End of the Eighteenth Century,' in J. Spengler e W. Allen
(eds), Essays in Economic Thought (Chicago: Rand McNally and Co., 1960),
pp. 277-87; e 'The Retarded Acceptance of the Marginal Utility Theory,' Quarterly
Journal of Economics (Nov. 1953), pp. 564-75. Porém a revisão de Schumpeter foi
muito mais influente.
[4] Infelizmente, desde a celebração do bicentenário de
Smith ocorrida em meados da década de 1970, começou uma tendência
contrarrevisionsta para tentar restaurar a atitude hagiográfica que dominava
antes dos anos 1950.
[5] Para uma
nova visão sobre o mandato de Smith na alfândega baseada em uma investigação
original das minutas - escritas à mão - do conselho de comissários da
alfândega, 1778-90, bem como das várias cartas escritas por Smith aos coletores
de impostos alfandegários lotados em outros portos da Escócia, ver o importante
artigo de Gary M. Anderson, William F. Shughart II e Robert D. Tollison, 'Adam
Smith in the Customhouse,' Journal of Political Economy, 93 (August
1985), pp. 740-59.
[6] O interesse sobre a alienação começou com o
influente Essay on the History of Civil Society (1767), escrito por Adam
Ferguson, amigo de Smith. Um tema
similar, entretanto, apareceu nas palestras não publicadas de Smith feitas em
Glasgow, 1763. Sobre a influência de
Ferguson, ver M.H. Abrams, Natural Supernaturalism (New York: W.W.
Norton, 1971), pp. 220-21, 508.
[7] Citado em Ronald Hamowy, 'Adam Smith, Adam
Ferguson, and the Division of Labour', Economica (August 1968), p. 253.