Enquanto toda a conversa atual se concentra em
recuperações econômicas e mercados financeiros fortificados, ninguém está
prestando atenção no pior dos eventos: a economia americana está em franca
deterioração. Embora hoje já seja
praticamente universal a conclusão de que antes do crash de 2008 a economia
americana estava em um curso insustentável, tudo indica que os comentaristas
financeiros - que aparentemente sofrem de amnésia - já se esqueceram desse
detalhe.
Se esses desequilíbrios na economia americana já
tivessem sido corrigidos, então talvez eu também estaria hoje fazendo coro a
essa euforia. Mas são abundantes as
evidências de que o país de modo algum saiu desse caminho perigoso.
Na semana passada, o Bureau
of Economic Analysis relatou que os gastos dos consumidores americanos,
medidos em porcentagem do PIB, aumentaram para 71%, um recorde do período
pós-guerra. Esse nível é notavelmente
maior do que o dos países industrializados, e amplamente maior do que os níveis
mantidos pela China e por outras economias emergentes. Ao mesmo tempo, a produção industrial americana
está em contração, o déficit comercial voltou a aumentar (após ter diminuído no
início do ano) e a taxa de poupança entrou em queda livre (após ter havido um
aumento no início do ano).
Os dados confirmam que os pacotes de estímulo
implementados pelo governo estão piorando os desequilíbrios estruturais da
economia americana. A recente
'recuperação' do PIB [o PIB americano
contraiu apenas 0,7% no segundo trimestre deste ano, sendo que havia contraído
6,4% no primeiro trimestre - ambas em taxas anualizadas] não é resultado de
um aumento da produção, mas meramente do fato de que os americanos estão se
endividando mais do que nunca. Foi
exatamente assim que o país entrou na atual encrenca. Nenhuma economia pode crescer indefinidamente
se estiver havendo mais endividamento (empréstimos) do que produção. Não apenas tal curso é insustentável, como
também toda essa nova dívida vai garantir uma recessão mais profunda assim que
a conta vier.
A atual recessão, que logo será chamada de depressão,
não irá terminar até que os hábitos de consumo dos americanos se alterem
radicalmente. Essa alteração será
desagradável, mas é justamente o balde de água fria de que uma economia
desarranjada precisa para voltar a ser viável.
Acredito que os gastos em consumo como porcentagem do PIB terão de
encolher temporariamente para 50% do PIB, antes de voltarem para a média
histórica de 65%. Tal mudança
significaria uma restauração da poupança dos indivíduos, um declínio no
endividamento e nos déficits comerciais e um aumento na produção
industrial. Essa, sim, seria uma real
recuperação.
Enquanto isso, quanto maior o aumento da porcentagem
dos gastos, mais doloroso será o derradeiro declínio.
Quando uma economia está de ressaca, como a americana,
os consumidores e o governo precisam gastar menos. Essa poupança irá liberar recursos que
poderão ser utilizados pelas empresas para investimentos em capital. As empresas, por sua vez, irão produzir mais
bens e empregar mais pessoas - aumentando a prosperidade do país. Entretanto, ao invés de permitir essa dolorosa
cura econômica, o governo americano prefere anestesiar os eleitores com doses
maciças de déficits orçamentários e crédito fácil - sendo que ambos exaurem a
poupança.
O principal fator que permite o governo americano manter
essa ilusão econômica é o privilégio singular de o dólar ser a moeda de reserva
mundial - e a disposição dos países credores em continuar mantendo esse
status. Ao comprarem dólares e
aplicá-los em títulos da dívida do Tesouro [coisa
que o banco central brasileiro vem fazendo com afinco], os países
produtivos dão aos políticos americanos carta branca para brincarem de Papai
Noel.
Os governos estrangeiros estão hoje criticando as
baixas taxas de juros utilizadas pelo Fed.
Ironicamente, ao financiarem a farra da gastança americana, esses mesmos governos estrangeiros estão ajudando nessa distorção. No recente encontro do G20 em Pittsburgh,
todos concordaram - inclusive Obama - que resolver os desequilíbrios econômicos
globais é a prioridade principal. Por
definição, tal atitude exige que os americanos gastem menos e poupem mais. Porém, como os bancos centrais estrangeiros
continuam financiando a dívida americana, os EUA continuam sem demonstrar
absolutamente nenhuma vontade política para encorajar essa mudança.
Normalmente, se os políticos aumentam o déficit
orçamentário do governo, os eleitores rapidamente passam a sofrer as
consequências: maior inflação e maiores juros.
Contudo, se os bancos centrais estrangeiros continuam fornecendo os
fundos para financiar esse déficit, essas consequências são indefinidamente
adiadas. Como resultado, nunca haverá
necessidade de os políticos americanos aceitarem as escolhas duras necessárias
para resolver os atuais desequilíbrios.
E quais as consequências disso?
Pergunte aos cidadãos daqueles países cujos governos
estão financiando a dívida americana.
São eles que estão arcando com o ônus.
Ocorre que, dentro desses países credores, uma minoria com boas conexões
de fato se beneficia dessa política (exportadores chineses, por exemplo), pois
ela impede a desvalorização do dólar. A
imensa maioria dos cidadãos restantes é incapaz de entender essa conexão. Seus impostos são utilizados para a compra de
dólares que são investidos em títulos do governo americano. Esses dólares caem na economia americana e
são utilizados para importar produtos estrangeiros. Essa medida, portanto, se transforma em
subsídios para uma determinada classe econômica (exportadores) dos países
estrangeiros. Com isso, os políticos desses
países têm os mesmos incentivos que os políticos americanos para continuar
jogando esse jogo.
A moral da história é que os governos estrangeiros
podem continuar alertando o governo americano sobre a necessidade de prudência
o quanto quiserem: se eles continuarem emprestando, os americanos continuarão
gastando. Qualquer pai sabe que se ele
determinar um horário para seu filho ir dormir, mas nunca impor qualquer
punição quando este for violado, a determinação não será obedecida. Meu pressentimento é que os governos
estrangeiros estão se cansando da conduta americana e estão a ponto de
finalmente impor alguma disciplina. Isso
significa que os dias do dólar como moeda de reserva mundial estão contados. E quando isso finalmente se consumar, começará
a forçosa austeridade americana - e mundial, consequentemente.