Após o estouro da bolha imobiliária nos EUA e
a consequente crise financeira que se alastrou pelo mundo, vários governos
criaram seus pacotes de socorro e estímulos, cuja principal função era impedir
a falência de várias empresas, em sua maioria do setor financeiro.
Um amigo meu, profissional das finanças e
estudante de economia austríaca, mandou-me o estimulante e-mail a seguir:
Pelo que entendi, parece que no início
da crise financeira, bem como durante a mesma, alguns austríacos pareciam estar
fazendo declarações contraditórias. De
um lado, vários austríacos previram que um desastre iminente estava próximo,
que nada poderia impedir o colapso vindouro, e que qualquer tentativa de
fazê-lo iria gerar terríveis conseqüências (hiperinflação, derretimento do
dólar, "décadas perdidas" de estilo japonês, etc.)
De outro lado, os austríacos se
posicionaram contra todas as medidas tomadas pelo Fed e pelo Tesouro americano
durante a crise. De acordo com os
austríacos, todos os prognósticos feitos pelo Fed/Tesouro - a saber, que caso
essas medidas não fossem tomadas, haveria calamidade, moratórias em cascata e
uma espiral de morte - eram, em sua maioria, apenas terrorismo econômico com o
intuito de expandir o poder federal.
Colocando de outra forma, quando o Fed e
o Tesouro começaram a dizer "precisamos implementar medidas drásticas, porque o
fim está próximo", os austríacos reagiram dizendo "Não! Deixem que as entidades
insolventes quebrem, não importa as consequências. O capital será redirecionado dos menos
capazes para os mais capazes, e todos estaremos melhor como resultado desse
rearranjo."
Peguemos um exemplo específico: em
setembro de 2008, uma determinada empresa de fundos mútuos ficou em situação
difícil assim que o Lehman Brothers quebrou.
Para cobrir suas posições, ela começou a retirar todas as suas
aplicações em investimentos supostamente seguros, como títulos comerciais. Mas o Fed conseguiu estancar esse
procedimento ao fornecer socorro a todas as empresas de fundos mútuos. Agora, suponha que, ao invés de socorrerem a
AIG e darem proteção a todos os fundos mútuos e a todos os papeis de curto
prazo, eles tivessem seguido a receita austríaca e deixassem todas as entidades
insolventes quebrarem. No pânico
decorrente dessa atitude, as consequências seriam difíceis de serem previstas,
mas provavelmente iriam muito além da ideia austríaca de 'uma recessão curta
porém profunda'.
É até possível tentar concatenar os
eventos. Em ordem sequencial, os
mercados de títulos comerciais iriam entrar em colapso, os mercados de títulos
corporativos (debêntures) iriam enlouquecer, as empresas que dependem da
rolagem de suas dívidas iriam quebrar e os bancos iriam falir em massa.
Isso seria algo bastante traumático. Será que no longo prazo estaríamos em melhor
situação caso ficássemos apenas assistindo à bancarrota de grande parte dos
bancos, financeiras, seguradoras e outras entidades alavancadas? Não estou sendo zombador; estou realmente
curioso quanto a isso.
Os austríacos podem divergir quanto à
severidade das consequências caso uma ou outra empresa não tivesse sido
socorrida. Porém, não creio que o único
bom argumento para se opor a um determinado socorro seja mostrando que não haveria
muita dor envolvida caso não houvesse essa ajuda. É possível você achar que haveria uma severa
retração econômica caso as autoridades não fizessem nada e, ainda assim, continuar se opondo a um pacote de socorro, pois sabe que essas ajudas apenas piorariam as coisas. Se
não vamos argumentar contra os socorros em termos ideológicos, então façamos
uma comparação entre custos e benefícios de um determinado pacote de ajuda
financeira.
Alguns defensores do salvamento de
instituições financeiras (não necessariamente austríacos) creem que todo o
problema está na crise da falta de crédito, e que, ao impedir que as empresas
quebrem, seria possível solucionar/evitar/corrigir o problema. Se fosse tão simples assim, então aqueles
ideólogos austríacos que são contra todos os tipos de socorro seriam realmente
seres malévolos, desprezíveis e de mentalidade estreita.
A diferença entre os austríacos e as outras
escolas de economia é que nós entendemos que todo o problema está, não na
recessão, mas na expansão econômica artificial (o boom) - que é quando o
sistema de preços foi desorganizado e o capital foi mal alocado. A recessão, portanto, seria o processo no qual
esse problema é corrigido. A única
maneira de fazer com que a economia volte a ter um crescimento sustentável é
deixar que ela passe completamente pela recessão - que nada mais é que um
processo de rearranjo e correção. O
custo das intervenções e dos pacotes de socorro é que, quando eles "funcionam",
eles impedem que o sistema de preços funcione corretamente. Ou seja, as intervenções impedem que o
sistema de preços possa reorganizar a estrutura do capital, o que vai prolongar
o período de desperdício de recursos e de destruição de riquezas. As intervenções nada mais são do que uma
tentativa de preservar preços fictícios - preços que foram deformados durante a
expansão artificial e que agora na recessão estão tentando voltar ao seu nível
real.
Um dos mais fortes argumentos contra os
socorros é que eles não corrigem nada, mas apenas adiam o inevitável processo
de ajuste para algum momento futuro. De
uma forma ou de outra, esse mesmo processo de ajuste que teria ocorrido sem a
intervenção irá ter de ocorrer mais cedo ou mais tarde. Tão logo as empresas esgotem todos os recursos
que receberam como socorro, a contínua pressão exercida pelo sistema de preços
irá obrigá-las a liquidar seus maus investimentos, a reduzir o valor contábil
de seus ativos, ou a se ajustarem por qualquer outro meio exigido pelo processo
de correção. Caso elas não façam isso,
irão à falência. Ao sustentarem um
sistema deturpado e ineficiente, as intervenções podem criar risco moral e
atrair mais participantes, o que fará com que mais capital seja consumido e mais
riqueza seja destruída.
Deixar que a recessão ocorra agora ou
empurrar para mais tarde? O sistema
político geralmente tenta empurrar a dor para o futuro. Porém a melhor a escolha seria deixar que
tudo ocorresse o mais cedo possível (pois quanto mais se adiar, maior será a
dor no futuro, uma vez que os desarranjos serão ainda maiores). Isso faria com que a economia retornasse a
uma base sólida, na qual o crescimento é financiado pela poupança - o que
permitiria um futuro melhor. Mas se uma
intervenção pode empurrar o processo de ajuste para um futuro distante, então
por que não ter uma série de pacotes de socorro e adiar eternamente o dia do
julgamento final? Isso não pode ser
feito: haverá um momento em que não mais haverá escolhas - e no qual teremos de
enfrentar algumas consequências. Ou a
economia será progressivamente socializada, o que equivale a uma permanente
depressão, ou algo ainda mais dramático irá ocorrer: hiperinflação, uma crise
monetária, ou uma falha sistêmica tão grande que não haverá recursos
suficientes a serem confiscados do contribuinte para ocultá-la.
Seria possível escolher cuidadosamente dentre
os vários tipos de intervenção, e implementar somente aquelas que vão impedir
alguma crise sistêmica do tipo efeito dominó, ao mesmo tempo em que se permite
que outras empresas quebrem? Não estou
certo de que alguém tenha como distinguir qual é qual. Entretanto, um fato que permite que a
consequência das quebras seja mais moderada é que o "colapso" de entidades
financeiras não significa que elas vão deixar de existir; se houver um genuíno
primado da lei, as empresas falidas irão apenas transferir seus bons ativos
para os portadores de seus títulos. Os
bons setores dessas empresas ainda têm seus empregados, sua marca, seus ativos
físicos e todas as partes boas de seus balancetes (das quais vale a pena ser o
proprietário). Como Ben Stein disse a
Peter Schiff naquele vídeo
antológico, a Merrill Lynch (hoje incorporada pelo Bank of America) é uma
"empresa maravilhosamente bem gerida". E
ele estava certo no que se referia ao setor varejista dessa empresa - foi a
entrada dela no mercado de hipotecas com uma alavancagem excessiva que a levou
à lona.
Já as outras variáveis que meu missivista
menciona - fundos mútuos, títulos comerciais, debêntures -, todas elas
representam algo real. Basta seguir o
rastro de seus papeis, que os portadores chegarão aos reais ativos que os
representam. Esses valores mobiliários
de modo algum iriam desaparecer; eles seriam apenas re-precificados e
adquiridos por novos empreendedores. O
essencial para o funcionamento desse processo seria a eficiência do
procedimento de falência em transferir ativos e solucionar reivindicações.
Tudo isso obedecido, não há motivos para uma recessão ser duradoura e dolorosa.