segunda-feira, 5 out 2009
Após escrever um artigo sobre
a Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos (TACE), recebi o seguinte e-mail:
Se você conhece a teoria dos ciclos
econômicos de Von Mises, então é capaz de prever as expansões e as recessões
econômicas. Assim, é só ficar comprado
durante as expansões e vendido durante as recessões que você fará uma fortuna.
Todos vocês devem ser ricos.
Se não são, por quê?
Se todos vocês não são ricos, como explicar
isso?
Essa parece ser uma ótima pergunta.
O remetente
deste e-mail não estava tentando me oferecer dicas de investimento ou elogiando
meu artigo. O tom era obviamente
sarcástico, e o missivista parece acreditar estar apresentando um ótimo
argumento contra a TACE. De fato, ele
quer saber se, já que os economistas austríacos são tão versados sobre as
origens e o funcionamento dos ciclos econômicos — e o fazem criticando a
abordagem convencional keynesiana —, então seria lógico que os austríacos
pudessem ser capazes de transformar toda essa informação em investimentos
sólidos que lhes garantissem enormes fortunas pessoais.
Por
outro lado, o autor indiretamente sugere que, se os austríacos que alegam
concordar com a TACE não estão ricos,
então talvez a TACE em si esteja errada.
Afinal, os austríacos têm de estar seguindo os conselhos de investimento
de alguém; e se o padrão de
investimento de uma pessoa não segue aquilo que ela acredita ser verdade, então
tal comportamento seria absurdo.
Ademais, se os austríacos não seguem as teorias que creem ser
verdadeiras, então eles estariam praticando um supremo ato de hipocrisia e
desonestidade.
Primeiramente,
e apenas para fazer uma revelação completa, eu não sou uma pessoa rica. Tal estado não se deve ao fato de eu ter
seguido teorias econômicas erradas; ele é simplesmente o resultado de algumas
decisões imediatistas que tomei por conta própria. Mais ainda: não tenho a intenção de saber o
status financeiro pessoal de meus colegas austríacos, e tampouco já os
perguntei sobre suas decisões de investimento.
Portanto, não estou em posição de saber se meus colegas são ricos.[1]
(Pelo
contrário, se os austríacos devem ser submetidos ao teste do "por que você não
está rico se sua teoria está certa?", então seria justo perguntar a mesma coisa
aos keynesianos. Se a "demanda agregada"
gerada pelo governo é a chave para a criação de riqueza, e sabendo-se que o
governo está constantemente "estimulando a demanda", então, se todos os
keynesianos não estão ricos, faria sentido dizer que tal situação é uma maneira
inquestionável de se desacreditar a teoria keynesiana, certo? Se a intenção é ser consistente — que é o que
o remetente do e-mail está exigindo —, então os keynesianos devem ser julgados
pelo mesmo teste. Entretanto, há uma
explicação alternativa; as teorias econômicas que uma determinada pessoa segue
não automaticamente se traduzem em riqueza pessoal para essa pessoa. Colocando de outra maneira, uma pessoa pode
estar certa, mas não estar rica. Da
mesma forma, é possível ser rico e não estar certo. Muitas pessoas ricas defendem teorias malucas
e impraticáveis sobre redistribuição de riqueza e coisas afins.)
A
TACE já foi explicada inúmeras vezes aqui, mas há algumas coisas que valem a
pena ser repetidas. Para aqueles que
ainda não estão familiarizados com a teoria, eu dificilmente conseguirei
explicá-la completamente nesses poucos parágrafos (para isso, o melhor e mais
conciso texto é este). Entretanto, pelo bem da simplicidade, vou
fazer um esboço de como a TACE funciona.
O
primeiro passo envolve as autoridades governamentais — geralmente por meio dos
bancos centrais — forçando as taxas de juros para níveis artificialmente baixos
no intuito de dar um "estímulo" à economia (normalmente o banco central incorre
em um agressivo programa de expansão das reservas bancárias, sendo que esse
crescimento inicial das reservas ajuda a desencadear um aumento dos
empréstimos. Veja esse processo detalhadamente aqui).
Esse
incremento dos empréstimos afeta os mercados de capital, sendo que o acréscimo
de capital novo ajuda a criar o boom econômico.
Entretanto, como as políticas de empréstimos foram criadas por meio de
taxas de juros artificialmente baixas, mais cedo ou mais tarde tornar-se-á
aparente que os novos gastos de capital não refletem os hábitos de compra dos
consumidores. Em outras palavras, o boom
não é sustentável, e todo o capital que foi mal
investido terá de ser ou liquidado ou aplicado em outras atividades. Durante a recessão, os investimentos errôneos
são expurgados da economia, deixando o cenário preparado para a recuperação
econômica.
Bom,
deixei de fora grandes porções da teoria, especialmente a explicação sobre como
a variável tempo se encaixa em todo o esquema.
Repito, estou fazendo isso de propósito apenas por causa de uma questão
de espaço. Se você quiser aprender sobre
a TACE em profundidade, a primeira porção do livro America's Great
Depression, de Murray Rothbard,
fornece uma explicação clara e detalhada.
Veja aqui.
Uma das coisas que separa a economia
austríaca das correntes acadêmicas predominantes (mainstream) é a abordagem do
fator tempo. Os austríacos insistem que o
tempo é um fator de produção. (A teoria
mainstream opera sob a irrealista suposição de que os bens de consumo são
produzidos e vendidos instantaneamente. O tempo não tem influência nas abordagens
tradicionais.) A acumulação de capital
ocorre ao longo do tempo; os investimentos errôneos ocorrem ao longo do tempo;
os ciclos econômicos ocorrem ao longo do tempo.
Além do mais, a TACE é uma teoria
qualitativa, e não quantitativa, e baseia-se em uma análise apriorística. A teoria diz que, sempre que os bancos
centrais ativam um processo econômico por meio de uma redução artificial das
taxas de juros durante um período de tempo, certos eventos irão
ocorrer. Em uma economia industrializada
— isto é, que possui grandes quantidades de capital — as relações econômicas
fundamentais entre capital e juros serão afetadas de uma maneira previsível.
(Os austríacos, que enfatizam uma análise
apriorística da ciência econômica, diferem do mainstream, que se apegam a uma
visão a posteriori, também chamada de "positivismo lógico". Ambos os lados dizem que a teoria econômica
deve ser capaz de prever eventos qualitativamente — por exemplo, controle de preços
gerará escassez —, porém os austríacos afirmam que, se as conjeturas são
verdadeiras e a teoria é construída logicamente, então a teoria também é
verdadeira — e terá o poder de predizer.
Os positivistas lógicos, por outro lado, dizem que as conjeturas não
importam, e que só é possível saber o poder de uma teoria após um evento
ter ocorrido. Logo, a "lei" da demanda,
sob esse ponto de vista, não é realmente uma lei, mas sim uma hipótese que deve
ser constantemente "testada" para ver se ele se "mantém verdadeira" até as
últimas condições.)
Tendo estabelecido essas coisas, já estou
apto a explicar por que a TACE é uma teoria qualitativa sobre os ciclos
econômicos, e não uma teoria sobre estratégias de investimentos
diários. Sempre que o banco central ajuda
a criar um boom insustentável, os austríacos sabem que esse boom irá
terminar em colapso. O que os austríacos não
sabem é quanto tempo durará o boom e quando virá o
colapso. Uma coisa é ter uma ideia geral
de quando essas coisas irão ocorrer; outra coisa, bem diferente, é ter o
conhecimento específico necessário para se aventurar no tipo de especulação
financeira na qual os aplicadores ficam comprados e vendidos.
Por exemplo, em agosto de 2000 eu escrevi que
a "Nova Economia" preconizada pelo mainstream estava prestes a entrar em
colapso, e quatro meses depois expliquei por que as empresas pontocom,
que haviam se tornado as queridinhas da mídia no início daquele ano, estavam a
pique. Dois meses depois, anunciei uma recessão que oficialmente ainda não havia sido
declarada, mas que já se avolumava logo à frente.
Que fique claro: não fiz essas previsões
porque era um operador que trabalhava sob o efeito de entorpecentes, mas sim
porque conhecia e acreditava na TACE.
Não, eu não fiquei comprado durante a bolha da NASDAQ; tampouco fiquei
vendido quando o índice começou sua queda livre. (Sim, eu gostaria de ter feito essas coisas,
mas a minha desculpa é que eu estava fazendo pós-graduação à época, e alunos da
pós são pobretões demais para se aventurarem em especulação de ações,
principalmente quando não se tem os meios com os quais especular.)
Em artigo recente no The Independent Review,
Mark Thornton mostrou que os economistas que mais
acuradamente previram a bolha do mercado de ações, o colapso e a
subseqüente recessão foram os austríacos.
Será que todos eles estavam comprados e subsequentemente tornaram-se
vendidos? Isso importa, tendo em vista
que eles acertaram suas previsões?[2]
Em última instância, o poder da TACE não
está no fato de se alguns economistas da Escola Austríaca jogaram os dados em
um determinado dia e ganharam dinheiro no mercado financeiro. O poder da TACE está baseado em sua
capacidade de explicar as causas fundamentais dos ciclos de expansão (boom) e
recessão. Enquanto políticos e
economistas americanos, que deveriam ter melhor ciência da teoria, estavam
ocupados aclamando a "Nova Economia" — tornada possível, acreditavam eles,
pelas maiores alíquotas do imposto de renda e pela política monetária frouxa do
Fed — os austríacos seguiam uma partitura muito diferente.
No final, descobriu-se que não havia essa
tal "Nova Economia", e que o que quer que fosse o sustentáculo dos agitados
anos 1990 não poderia ser algo duradouro, pois estava todo construído sobre uma
base de inflação monetária. Os
austríacos — e somente os austríacos — perceberam essa verdade durante todo o
tempo. Que seus conhecimentos não os
tenham tornados todos milionários é algo que não desabona o fato supremo de que
eles sabiam o que se passava, por que aquilo estava ocorrendo e como aquilo
iria acabar.
Obs:
esse artigo foi escrito em janeiro de 2005.
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[1] N. do T.: Não podemos deixar de mencionar que Peter
Schiff e Jim Rogers, ambos misesianos, não estão nada mal financeiramente. Schiff foi o economista que previu com mais acurácia a
atual crise financeira, e Rogers tornou-se uma lenda quando, na década de
1980, criou um fundo de investimento cujo portfólio ganhou 4.200% ao mesmo
tempo em que a S&P 500 ganhou apenas 47%.
[2] A história se repetiu agora com a crise imobiliária
americana e a consequente recessão mundial.
Os austríacos foram os únicos que previram e explicaram o que estava
acontecendo, como pode ser comprovado por essa coletânea de artigos. Alguns deles estão traduzidos aqui.