Discurso
feito durante o terceiro encontro anual da Property and Freedom
Society em Bodrum, Turquia, maio de 2008.
Deixem-me começar pela definição do estado. O que um agente deve ser capaz de fazer para
ser classificado como um estado? Esse
agente deve ser capaz de insistir que todos os conflitos entre os habitantes de
um dado território sejam trazidos a ele para que tome a decisão suprema ou para
que dê sua análise final. Em particular,
deve ser capaz de insistir que todos os conflitos envolvendo ele próprio sejam decididos por ele ou
por seu agente. E implícito no poder que
esse agente tem de proibir todos os outros de agirem como juiz supremo está,
como a segunda característica definidora de um estado, o poder de tributar:
para determinar unilateralmente o preço que aqueles que recorrem à justiça
devem pagar por seus serviços.
Baseando-se nessa definição de estado, é
fácil entender por que existe um desejo de se controlar um estado. Pois quem quer que detenha o monopólio da
arbitragem final dentro de um dado território pode fazer as leis. E aquele que
pode legislar pode também tributar. Certamente, essa é uma posição invejável.
Mais difícil de entender, porém, é como
alguém pode ficar impune ao controlar um estado. Por que as outras pessoas toleram tal
instituição?
Quero abordar a resposta a essa questão
indiretamente. Suponha que você e seus
amigos, por alguma casualidade, estivessem no controle dessa extraordinária
instituição. O que vocês fariam para
manter sua posição (considerando-se que vocês não tivessem quaisquer
escrúpulos)? Vocês certamente iriam
utilizar parte da renda que adquiriram via impostos para contratar alguns
valentões. E vocês iriam contratá-los
por dois motivos: (1) para manter a paz entre seus súditos, de modo que eles
possam permanecer produtivos e continuem gerando riqueza que poderá ser
tributada no futuro; mas, ainda mais importante, (2) porque vocês poderão
precisar desses valentões para garantir a sua própria proteção caso os súditos acordem de sua letargia dogmática
e passem a desafiar vocês.
Entretanto, apenas isso não será suficiente,
principalmente caso vocês sejam uma pequena minoria em relação ao número total
de súditos. Pois uma minoria não pode
dominar eternamente uma maioria apenas pelo uso da força bruta. Ela precisa dominar a opinião dessa maioria. A maioria da população deve ser adestrada a
aceitar voluntariamente o seu
domínio. Isso não quer dizer que a maioria
tenha de concordar com cada uma de suas medidas. Na realidade, ela pode muito bem achar que
muitas das suas políticas estão erradas.
Entretanto, ela tem de ser levada a acreditar na legitimidade da
instituição do estado como tal; e
que, por conseguinte, mesmo que uma política em particular esteja errada, tal
erro é um acidente que deve ser tolerado em nome de um bem maior fornecido pelo
estado.
Entretanto, como é possível persuadir a
maioria da população a acreditar nisso?
A resposta: somente com a ajuda dos intelectuais.
E como é possível fazer com que os
intelectuais trabalhem a seu favor? A
resposta a isso também é fácil: a demanda de mercado por serviços intelectuais
não é exatamente alta e estável. Os
intelectuais estariam à mercê dos valores efêmeros das massas; e as massas não
estão interessadas em questões intelecto-filosóficas. O estado, por outro lado, pode acomodar os
egos tipicamente hipertrofiados dos intelectuais e oferecer a eles um cargo
cordial, seguro e permanente em seu aparato.
Porém não é suficiente que vocês empreguem
apenas alguns intelectuais. Vocês precisam empregar essencialmente todos eles, mesmo aqueles que trabalham
em áreas bem distantes daquelas com as quais vocês estão mais preocupados:
filosofia, história, ciências sociais e literatura. Pois mesmo os intelectuais que trabalham com
matemática ou ciências naturais, por exemplo, podem obviamente pensar por conta
própria e se tornar potencialmente perigosos.
Portanto, é importante que vocês também garantam a lealdade deles ao
estado. Colocando de maneira diferente:
é preciso ser um monopolista. E tal condição será melhor atingida se todas
as instituições educacionais, desde o jardim de infância até as universidades,
forem subjugadas ao controle estatal e todo o corpo docente for certificado e
aprovado pelo estado.
Mas e se as pessoas não quiserem ser educadas? Para
evitar isso, a educação deve ser declarada compulsória; e para que todas as
pessoas sejam submetidas a uma educação controlada pelo estado pelo máximo de
tempo possível, todos devem ser declarados igualmente educáveis. É óbvio que os intelectuais sabem que tal
igualitarismo é falso. Entretanto,
afirmar tolices do tipo "todos são Einsteins em potencial desde que recebam uma
suficiente atenção educacional" é algo que agrada às massas e, por sua vez,
gera uma demanda praticamente ilimitada por serviços intelectuais.
É claro que todas essas medidas não garantem que
o almejado pensamento genuinamente estatista torne-se predominante. Entretanto, elas ajudam a alcançar a
conclusão desejada caso o sujeito perceba que, sem o estado, ele poderia estar
sem seu emprego e talvez teria de tentar ganhar a vida como frentista. Isso seria uma tragédia quando se sabe que
ele pode muito bem ganhar um bom salário ocupando-se de assuntos mais prementes
como alienação, igualdade, exploração, a desconstrução do gênero e o papel dos
sexos, ou a cultura dos esquimós, dos hopis e dos zulus.
E mesmo que os intelectuais venham a se
sentir subestimados por vocês, isto é, por uma administração estatal em particular, eles sabem que a ajuda só
poderá vir da próxima administração
estatal, e não de um ataque intelectual à instituição do estado. Portanto, não é surpresa alguma que a
esmagadora maioria dos intelectuais contemporâneos, inclusive os mais
conservadores ou mesmo os "livre-mercadistas", sejam filosófica e
fundamentalmente estatistas.
A pergunta que fica: será que o trabalho dos
intelectuais surtiu efeito para o estado?
Eu diria que sim. Se perguntadas
se a instituição do estado é necessária, não creio que seria exagerado dizer
que 99% de todas as pessoas iriam resolutamente dizer que sim. E, ainda assim, esse sucesso se apóia em pilastras
muito instáveis, e todo o edifício estatista pode ser demolido caso o trabalho
dos intelectuais seja contestado pelo trabalho de intelectuais anti-intelectuais, como eu gosto de
chamá-los.
A enorme maioria dos defensores do estado não
são estatistas filosóficos, isto é,
eles não pensaram profundamente no assunto. A maioria das pessoas não pensa muito sobre
qualquer questão filosófica. Elas apenas
seguem sua rotina diária, e é isso aí.
Logo, a maior parte do apoio ao estado advém do simples fato de que ele existe e sempre existiu desde há muito
tempo (tempo esse que é tipicamente o tempo de vida da pessoa que pensou no
assunto). Ou seja, a maior conquista dos
intelectuais estatistas foi o fato de que eles cultivaram a preguiça (ou
incapacidade) intelectual natural das massas, e nunca permitiram que o assunto
viesse à tona para uma discussão séria.
O estado passou a ser considerado uma parte inquestionável do tecido
social.
A primeira e mais importante tarefa dos
intelectuais anti-intelectuais, portanto, é atacar essa letargia dogmática das
massas oferecendo uma definição precisa do estado, como fiz na abertura, para
em seguida perguntar se não há nada de verdadeiramente incomum, estranho,
bizarro, tosco, ridículo e de fato burlesco em uma instituição como essa. Estou confiante de que esse simples trabalho
de definição irá produzir algumas sérias dúvidas em relação a uma instituição
que anteriormente vinha sendo tida por natural.
Adiante, saindo dos argumentos pró-estado
menos sofisticados (e, não coincidentemente, mais populares) e indo para os
mais sofisticados: na medida em que os intelectuais passaram a considerar ser
necessário argumentar em favor do
estado, seu argumento mais popular, encontrado já na época do jardim de
infância, funciona da seguinte forma: aponta-se algumas atividades do estado -
como, por exemplo, o fato de que o estado constrói estradas e escolas, entrega
as correspondências e coloca policiais na rua - e em seguida conclui-se que, se
não houvesse estado, então não haveria esses bens. Portanto, o estado é necessário.
Já em nível universitário, uma versão
ligeiramente mais sofisticada do mesmo argumento é apresentada. Funciona da seguinte forma: sim, é verdade
que o mercado é a melhor forma de arranjo para se ofertar muitas ou até mesmo a
maioria das coisas; mas há outros bens que o mercado não pode ofertar ou não é
capaz de ofertar em quantia ou qualidade suficiente. Esses outros bens, também chamados de bens
públicos, são bens que conferem benefícios a outras pessoas além daquelas que
produziram e pagaram por eles. Dentre
tais bens estão principalmente a educação e a pesquisa. Argumenta-se que educação e pesquisa, por
exemplo, são bens extremamente valiosos.
Eles seriam subproduzidos, entretanto, por causa dos "caroneiros", isto
é, por causa de trapaceiros que se beneficiariam, via efeitos de vizinhança
(falhas de mercado), da educação e da pesquisa sem terem pagado por elas. Portanto, o estado é necessário para fornecer
bens que de outra forma não seriam produzidos ou o seriam de maneira
insuficiente. Dentre esses bens, a
educação e a pesquisa.
Esses argumentos estatistas podem ser
refutados por uma combinação de três constatações fundamentais: primeiro,
quanto ao argumento do jardim de infância, o fato de o estado ofertar ruas e
estradas não significa que apenas o
estado pode ofertar tais bens. As
pessoas têm pouca dificuldade de reconhecer a falácia desse argumento. O fato de que macacos podem andar de
bicicleta não significa que apenas os
macacos podem andar de bicicleta.
Segundo, e que vem de imediato, deve ser lembrado que o estado é uma
instituição que pode legislar e tributar; logo, os agentes do estado têm poucos
incentivos para produzir eficientemente.
Escolas e estradas estatais serão mais custosas e de menor qualidade. Pois entre os agentes do estado sempre haverá
a tendência de se consumir a maior quantia possível de recursos ao se fazer
qualquer tipo de serviço e, ao mesmo tempo, trabalhar o mínimo possível para se
fazê-lo.
Terceiro: em relação ao mais sofisticado
argumento estatista, ele envolve a mesma falácia encontrada no jardim de
infância. Pois mesmo que fosse concedido
o resto do argumento, ainda assim seria uma falácia concluir que, se o estado
fornece bens públicos, então somente
o estado pode fornecê-los.
O que é ainda mais importante, entretanto, é
que toda a argumentação pró-estado demonstra uma total ignorância sobre o fato
mais fundamental da vida humana: a escassez.
É verdade que o mercado não irá ofertar todas as coisas desejáveis. Enquanto não habitarmos o Jardim do Éden, sempre haverá desejos não satisfeitos
.
Mas para que tais bens não produzidos passem a existir, recursos
escassos precisam ser utilizados, os quais consequentemente não mais poderão
ser utilizados para se produzir outros bens igualmente desejáveis. Se os bens públicos existem lado a lado com
os bens privados é algo que não importa; a realidade da escassez permanece
inalterada: mais bens públicos só podem surgir à custa de menos bens privados.
Entretanto, o que deve ser demonstrado é que
um bem é mais importante e valioso do que outro. É isso que significa economizar. Porém, pode o estado ajudar a economizar
recursos escassos? Esta é a questão que deve ser respondida. Com efeito, há uma prova conclusiva de que o
estado não pode e nem é capaz de economizar: pois para
produzir algo, o estado deve recorrer à tributação (ou à legislação), o que
demonstra irrefutavelmente que seus súditos não
querem aquilo que o estado produz, e que preferem alguma outra coisa que lhes pareça mais importante. Ao invés de
economizar, o estado pode apenas redistribuir: ele pode produzir mais daquilo
que ele próprio quer e menos daquilo que as pessoas querem; e, só pra
relembrar, o que quer que o estado venha a produzir, será produzido
ineficientemente.
Finalmente, o mais sofisticado argumento em
favor do estado deve ser brevemente examinado.
Desde Hobbes, este argumento tem sido repetido incessantemente. Funciona assim: no estado natural das coisas,
antes do estabelecimento de um estado, sobejam os conflitos permanentes. Todos alegam ter direito a tudo, o que
resulta em guerras intermináveis. Não há
como sair dessa situação instável por meio de acordos; pois afinal quem iria fazer cumprir esses acordos? Sempre que a situação se mostrasse vantajosa,
um ou ambos os lados iriam quebrar o acordo.
Logo, as pessoas reconheceram que há somente uma solução para o desideratum da paz: o estabelecimento,
por consentimento, de um estado - isto é, de uma entidade externa e independente, que assumiria a função de fiscal e juiz supremo.
Porém, se essa tese está correta, e os
acordos requerem um fiscal externo que os torne vinculantes, então um estado
criado por consentimento nunca poderá existir.
Pois, para fazer cumprir o próprio acordo do qual resultará a formação de
um estado (tornar esse mesmo acordo vinculante), um outro fiscal externo, um
estado anterior, já teria de existir. E
para que esse estado tenha podido existir, um outro estado anterior a ele
deveria ter sido postulado, e assim por diante, em uma regressão infinita.
Por outro lado, se aceitarmos que estados
existem (e é claro que eles existem), então esse próprio fato contradiz a
história hobbesiana. O estado em si
surgiu sem a existência de qualquer
fiscal externo. Presumivelmente, na
época do suposto acordo, nenhum estado anterior existia para arbitrar esse
acordo. Ademais, uma vez que um estado
criado por consentimento passa a existir, a ordem social resultante continua
sendo autoimposta. Sem dúvidas, se A e B
concordam em algo, esse acordo é tornado vinculante por uma entidade
externa. Entretanto, o próprio estado não está vinculado da mesma forma
a um fiscal externo. Não existe
absolutamente nenhuma entidade externa para mediar conflitos entre agentes do
estado e súditos do estado; da mesma forma, não há nenhuma entidade externa
para mediar conflitos entre os próprios agentes do estado ou as próprias agências do estado. Sempre que houver acordos feitos entre o
estado e seus cidadãos, ou entre uma agência do estado e
outra agência, tais acordos serão mediados apenas
pelo próprio estado. O estado não está
vinculado a nada exceto às suas autoimpingidas regras, isto é, às restrições
que ele se impõe a si mesmo. Em relação
a si próprio, o estado ainda está no estado natural de anarquia caracterizada
pela autofiscalização e pelo autocontrole, pois não há na hierarquia um estado
superior que possa vinculá-lo a algo.
Mais ainda: se aceitarmos a ideia hobbesiana
de que a fiscalização de regras mutuamente consentidas requer um agente externo
independente, isso por si só iria descartar a hipótese da criação de um
estado. De fato, tal ideia constitui um
argumento conclusivo contra a
instituição de um estado, isto é, de um monopolista
da arbitração e da decisão suprema. Pois
teria de existir uma entidade independente para arbitrar todos os casos que
envolvessem algum agente do estado e eu (um cidadão privado); da mesma
forma, teria de haver uma entidade independente para todos os casos que
envolvessem conflitos intraestado (e teria de haver uma outra entidade
independente para o caso de conflitos entre várias entidades
independentes). Porém isso significa, é
claro, que tal estado (ou qualquer entidade independente) não seria um estado
no sentido por mim definido lá no princípio, mas simplesmente uma de várias
agências arbitradoras de conflitos, operando em ambiente de livre concorrência.
Portanto, deixem-me concluir: a batalha
intelectual contra o estado parece ser fácil e clara. Mas isso não significa que ela seja fácil do
ponto de vista prático. De fato, quase
todas as pessoas estão convencidas de que o estado é uma instituição
necessária, por todas as razões que indiquei.
Assim, é bastante duvidoso que a batalha contra o estado possa ser
vencida de maneira tão fácil quanto parece ser no nível teórico e intelectual. Porém, mesmo que isso acabe se mostrando impossível,
vamos ao menos nos divertir um pouco à custa de nossos oponentes
estatistas. E para isso eu sugiro que
vocês persistentemente os confrontem com a seguinte charada: imagine um grupo
de pessoas sempre alertas à possibilidade do surgimento de conflitos; e então eis
que alguém propõe, como solução a este eterno problema humano, que ele próprio
se torne o arbitrador supremo de todos os casos de conflito, inclusive daqueles
em que ele mesmo esteja envolvido.
Estou certo de que ele será considerado um
piadista ou alguém mentalmente perturbado.
Entretanto, é exatamente isso que todos os estatistas propõem.