N. do
T.: essa palestra, hoje um clássico, foi proferida por Mises perante o
University Club of New York em 18 de abril de 1950.
O dogma fundamental seguido por todas as matizes de
socialismo e comunismo é que a economia de mercado — ou capitalismo — é um
sistema que prejudica os interesses vitais da imensa maioria das pessoas para o
benefício exclusivo de uma pequena minoria de individualistas insensíveis. É um sistema que condena as massas a um
crescente empobrecimento. Produz
miséria, escravidão, opressão, degradação e exploração do trabalhador, ao mesmo
tempo em que enriquece uma classe de parasitas ociosos e inúteis.
Essa doutrina não foi criada por Karl Marx. Ela já havia sido desenvolvida muito antes de
Marx entrar em cena. Seus mais eficientes
propagandistas não foram os autores marxistas, mas homens como Carlysle e
Ruskin, os fabianos britânicos, os professores alemães e os institucionalistas
americanos. E é um fato muito
interessante que os poucos economistas que ousaram contestar a veracidade desse
dogma foram rapidamente silenciados e tiveram seus acessos impedidos às
universidades, à imprensa, à liderança de partidos políticos e, acima de tudo,
aos cargos públicos. A opinião pública,
por sua vez, também já aceitou sem quaisquer reservas a condenação do capitalismo.
Socialismo
Porém, é óbvio, as conclusões políticas práticas que
as pessoas tiraram desse dogma não são uniformes. Um grupo declarou que há somente uma maneira
de acabar de uma vez por todas com esses malefícios: abolindo o capitalismo por
completo. Eles advogam a substituição do
controle privado dos meios de produção pelo controle público. Eles visam o estabelecimento do que se
convencionou chamar de socialismo, comunismo, planejamento central ou
capitalismo de estado. Não mais devem os
consumidores, por meio de suas decisões de comprar ou não comprar, determinar o
que deve ser produzido, em qual quantidade e com qual qualidade. Doravante uma autoridade central deve dirigir
todas as atividades voltadas para a produção.
Intervencionismo, supostamente uma política conciliatória
Um segundo grupo parece ser menos radical. Eles rejeitam o socialismo tanto quanto o
capitalismo. Eles recomendam um terceiro
sistema que, dizem eles, está tão longe do capitalismo quanto do
socialismo. Trata-se de um sistema que,
por ser aparentemente capaz de organizar a economia da sociedade de um terceiro
modo, localiza-se no meio dos dois outros sistemas; e ao mesmo tempo em que
retém as vantagens de ambos, magicamente também seria capaz de evitar as
desvantagens inerentes a cada um. Esse
terceiro sistema é conhecido como intervencionismo. Na terminologia política, normalmente nos
referimos a ele como políticas de centro.
O que torna esse sistema tão popular perante muitas pessoas é o modo
particular como elas optam por olhar os problemas envolvidos.
Do modo como essas pessoas veem as coisas, de um lado
temos os capitalistas e os empreendedores, e do outro, os assalariados, e ambas
as classes não se entendem quanto à distribuição dos rendimentos do capital e
das atividades empresariais. Ambas
exigem todo o bolo para si próprias. A
solução oferecida por esses mediadores passa então a ser: "Vamos fazer as pazes
dividindo igualmente para ambas as classes os valores em disputa". O estado, sendo um árbitro absolutamente
imparcial, deve intervir e refrear a ganância dos capitalistas e transferir uma
parte dos lucros para as classes trabalhadoras.
Somente assim será possível destronar o deus Moloch do capitalismo sem ao mesmo tempo entronizar o Moloch
do socialismo totalitário.
Entretanto, esse modo de julgar a questão é
inteiramente falacioso. O antagonismo
entre capitalismo e socialismo não se resume a uma divergência quanto à
distribuição dos espólios. Trata-se de
uma contenda sobre qual desses dois esquemas de organização econômica da
sociedade é aquele que leva à melhor consecução daquele objetivo que todos
consideram ser o propósito supremo da economia — a melhor oferta possível de
mercadorias e serviços proveitosos.
O capitalismo quer atingir esse objetivo por meio da iniciativa
livre e privada, sujeita à supremacia do público, que tem o poder de decidir se
vai ou não comprar o produto desse empreendimento no mercado. Já os socialistas querem substituir os planos
de vários indivíduos pelo planejamento único de uma autoridade central. Eles querem substituir aquilo que Marx chamou
de "anarquia da produção" pelo monopólio exclusivo do governo. O antagonismo entre essas duas doutrinas não
está no modo de distribuição de uma quantidade fixa de amenidades. O antagonismo está no modo de produção de
todos aqueles bens que as pessoas querem desfrutar.
O conflito entre esses dois princípios é irreconciliável e não permite qualquer tipo de concessão. O controle é indivisível. Ou a demanda
que os consumidores manifestam via mercado decide como e para quais propósitos
os fatores de produção devem ser empregados, ou o governo assume o controle
dessa decisão. Não há nada que possa
mitigar a oposição entre esses dois princípios contraditórios. Eles são mutuamente excludentes. O intervencionismo não é um áureo meio-termo
entre o capitalismo e o socialismo. Ele
é o projeto de uma terceira via de organização econômica da sociedade e deve
ser avaliado como tal.
Como funciona o intervencionismo
Não é meu objetivo nessa discussão suscitar qualquer
debate sobre os méritos do capitalismo ou do socialismo. Hoje estarei lidando apenas com o
intervencionismo. E não é meu intento
fazer uma avaliação arbitrária do intervencionismo partindo de algum ponto de
vista preconcebido. Meu único interesse
é mostrar como o intervencionismo funciona e se ele pode ou não ser considerado
um padrão para uma permanente organização econômica da sociedade.
Os intervencionistas sempre fazem questão de enfatizar
que seu plano é manter a propriedade privada dos meios de produção, incentivar
o empreendedorismo e as trocas de mercado.
Porém, prosseguem eles, é imperioso impedir que essas instituições
capitalistas continuem espalhando a devastação e explorando injustamente a
maioria das pessoas. É dever do governo
restringir, por meio de decretos e proibições, a ganância das classes
proprietárias — caso contrário, sua avidez irá seguir prejudicando
indefinidamente as classes mais pobres.
O capitalismo laissez-faire
é algo nocivo. Porém, para se eliminar
seus malefícios, não é necessário abolir o capitalismo por completo. É possível melhorar o sistema capitalista por
meio da interferência estatal sobre as ações dos capitalistas e empreendedores. Tais regulamentações e controles
governamentais sobre as empresas são a única maneira de impedir o surgimento do
socialismo totalitário e salvar aquelas características do socialismo que valem
a pena ser preservadas.
Baseando-se nessa filosofia, os intervencionistas
defendem uma galáxia de medidas. Peguemos
uma delas, o esquema bastante popular de controle de preços.
Como o controle de preços leva ao socialismo
O governo acha que o preço de uma determinada mercadoria,
por exemplo, o leite, está muito alto. Ele quer fazer com que os pobres
possam dar mais leite aos seus filhos. Assim, ele recorre ao controle de
preços e congela o preço do leite em um valor abaixo daquele predominante no
livre mercado.
O resultado é que os produtores marginais de leite,
aqueles que produzem ao custo máximo, agora passarão a sofrer prejuízos. As receitas de venda são inferiores aos
custos de produção. Como nenhum
agropecuarista ou empreendedor pode continuar produzindo com prejuízos, esses
produtores marginais irão parar de produzir e vender leite no mercado. Eles irão empregar suas habilidades e suas
vacas em atividades mais lucrativas. Eles
irão, por exemplo, produzir manteiga, queijo ou carne. Como resultado, haverá menos — e não mais —
leite disponível para os consumidores.
Isso, obviamente, é o oposto do que tencionava o governo. Ele queria fazer com que fosse mais fácil
para algumas pessoas comprar mais leite.
Porém, como resultado dessa interferência, a oferta de leite caiu. A medida não só foi um fracasso para o
governo, como também piorou as coisas exatamente para aquele grupo de pessoas
que o governo ansiava por ajudar. A
situação tornou-se pior do que seu estado anterior, aquele que justamente
estava tentando ser remediado.
Agora, porém, o governo tem uma alternativa. Ele pode revogar seu decreto e abster-se de
quaisquer outras tentativas de controlar o preço do leite. Porém, se ele insistir em sua intenção de
manter o preço do leite abaixo do nível que determina o livre mercado e, ao
mesmo tempo, quiser evitar uma queda na oferta de leite, ele deverá tentar
eliminar as causas que tornam as atividades dos produtores marginais não
lucrativas.
Ao primeiro decreto que atacava apenas o preço do
leite, o governo terá agora de acrescentar um segundo decreto fixando os preços
dos fatores de produção necessários à produção de leite. E esses preços terão de ser fixados em um
nível tal que os produtores marginais de leite não mais sofrerão prejuízos e
irão, como consequência, deixar de restringir a produção.
Mas aí, porém, a mesma história vai se repetir em um
plano mais remoto. A oferta dos fatores
de produção requeridos para a produção de leite irá cair, e o governo estará de
volta ao seu ponto de partida. Se ele
não quiser admitir derrota e achar que deve continuar se intrometendo no
sistema de preços, ele terá de ir ainda mais fundo e fixar os preços daqueles
fatores de produção utilizados na produção dos fatores necessários para a
produção de leite. Assim, o governo terá
de sair congelando, etapa por etapa, os preços de todos os bens de consumo e de
todos os fatores de produção — tanto humanos (mão-de-obra) quanto materiais —,
e terá também de obrigar todos os empreendedores e todos os trabalhadores a continuar
trabalhando a esses preços e salários.
Nenhum ramo da indústria poderá ser deixado de fora
desse processo de congelamento de preços e salários, e nem da obrigação de
produzir aquelas quantias que o governo quer ver sendo produzidas. Se alguns ramos que produzem apenas bens
considerados não essenciais, ou mesmo luxuosos, forem deixados de fora desse
processo, o capital e a mão-de-obra tenderá a se deslocar para esses setores, e
o resultado será uma queda na oferta dos bens tidos como essenciais, cujos
preços estão congelados justamente porque o governo os considera indispensáveis
à satisfação das necessidades do povo.
Porém, quando esse estado de controle total da
economia for atingido, não mais será possível ver qualquer rastro de uma economia
de mercado. Não mais os cidadãos poderão
determinar — por meio de suas decisões de comprar ou não comprar — o que deverá
ser produzido e como. O poder decisório
sobre essas questões foi transferido para o governo. Isso não mais é um sistema capitalista;
trata-se de um planejamento integral feito pelo governo. Temos agora um sistema socialista.
O socialismo de economia mista
É verdade que esse tipo de socialismo
preserva alguns dos rótulos, bem como a aparência externa, do capitalismo. Ele mantém, nominalmente e aparentemente, a
propriedade privada dos meios de produção, os preços, os salários, as taxas de
juros e os lucros. Entretanto, o fato é
que nada disso vale, pois o que conta é a irrestrita autocracia do
governo. O governo diz aos
empreendedores e capitalistas o que eles devem produzir, em que quantidade e
com qual qualidade; de quem devem comprar e a quais preços, e a quem devem
vender e a quais preços. Ele decreta
onde e a que salários os trabalhadores devem trabalhar.
As trocas de mercado tornam-se um mero
simulacro. Todos os preços, salários e
taxas de juros são determinados pelas autoridades. São preços, salários e taxas de juros apenas
na aparência; na realidade, são meras relações de quantia nos decretos do
governo. É o governo, e não os
consumidores, quem dirige a produção. O
governo determina e dirige a produção. O
governo determina a renda de cada cidadão e especifica a cada um o emprego no
qual ele deve trabalhar. Isso é
socialismo utilizando apenas uma aparência de capitalismo. Foi perfeitamente exemplificado pelo Reich Alemão de
Hitler e pela economia planejada da Grã-Bretanha.
A
experiência alemã e britânica
O
esquema de transformação social que descrevi não é apenas uma construção
teórica. É um retrato realista da
sucessão de eventos que produziram o socialismo na Alemanha, na Grã-Bretanha e
em alguns outros países.
Os
alemães, durante a Primeira Guerra Mundial, começaram a praticar controle de
preços para um pequeno grupo de bens de consumo considerados de vital
necessidade. Foi o inevitável fracasso
dessas medidas que os impeliu a ir cada vez mais fundo em suas intervenções até
que, no segundo período da guerra, eles criaram o plano Hindenburg. No contexto do plano Hindenburg, nenhum
espaço foi deixado para a livre escolha da parte dos consumidores e para a
livre iniciativa da parte dos empreendedores.
Todas as atividades econômicas foram incondicionalmente subordinadas à
jurisdição exclusiva das autoridades. Mas
a total derrota do Kaiser acabou com todo o aparato imperial da administração,
levando junto todo o grandioso plano.
Porém,
quando em 1931 o chanceler Brüning embarcou novamente em uma política de
controle de preços, e seus sucessores, acima de todos Hitler, aderiram
obstinadamente a ela, a mesma história se repetiu.
A
Grã-Bretanha e todos os outros países que durante a Primeira Guerra Mundial
adotaram medidas de controle de preços tiveram de vivenciar o mesmo
fracasso. Esses países também tiveram de
aprofundar cada vez mais suas medidas intervencionistas na esperança de fazer
os decretos iniciais funcionarem. Porém
eles ainda estavam em um estágio rudimentar desse processo quando a vitória na
guerra e a oposição do público removeram todos os esquemas de controle de
preços.
Mas
tudo foi diferente na Segunda Guerra Mundial.
A Grã-Bretanha novamente recorreu ao controle de preços para algumas
mercadorias vitais e teve novamente de repetir todo o repertório, implantando
seguidamente diversas medidas intervencionistas até o ponto em que acabou por
substituir toda a sua liberdade econômica pelo planejamento total da
economia. Quando a guerra chegou ao fim,
a Grã-Bretanha era uma nação socialista.
É válido relembrar que o socialismo britânico não foi
implantado pelo governo trabalhista do Sr. Clement Attlee [que sucedeu a Churchill], mas sim pelo gabinete de guerra do Sr. Winston
Churchill.
O que o Partido Trabalhista inglês fez não foi
estabelecer o socialismo em um país livre, mas apenas manter o socialismo que
havia se desenvolvido durante a guerra e o período do pós-guerra. Esse fato tem sido obscurecido pela grande comoção
feita acerca da nacionalização do Bank of England, das minas de carvão e de
outros setores empresariais. Entretanto,
a Grã-Bretanha é hoje um país socialista não porque algumas empresas foram
formalmente expropriadas e nacionalizadas, mas porque todas as atividades
econômicas de todos os cidadãos estão sujeitas ao total controle do governo e
de suas agências.
As autoridades dirigem a alocação de capital e de
mão-de-obra aos vários ramos industriais.
Elas determinam o que deve ser produzido. Supremacia em todas as atividades
empresariais é exclusivamente garantida ao governo. As pessoas são reduzidas ao status de
soldados rasos, incondicionalmente limitadas a seguir ordens. À classe empresarial, os antigos
empreendedores, restaram funções meramente subservientes. Tudo o que lhes é permitido fazer é pôr em
prática, dentro de uma área rigidamente limitada, as decisões dos departamentos
do governo.
O que dever ser definidamente compreendido é que
controles de preços direcionados a apenas algumas mercadorias fracassam em
atingir os fins desejados. O que ocorre
é o exato oposto. Eles produzem efeitos
que, do ponto de vista do governo, são ainda piores que o estado anterior em
que as coisas se encontravam quando o governo decidiu alterá-las. Se o governo, a fim de eliminar essas
inevitáveis porém indesejáveis consequências, seguir aprofundando suas medidas
intervencionistas, ele irá finalmente transformar o sistema capitalista e de livre
iniciativa em um socialismo de padrão Hindenburg.
Crise e desemprego
O mesmo é válido para todos os outros tipos de
intromissão nos fenômenos de mercado.
Leis de salário mínimo, sejam elas decretadas e compelidas pelo governo
ou pela pressão e violência de sindicatos, resultam em um desemprego em massa
que se prolongará por anos caso os salários sejam elevados acima do seu nível
de livre mercado.
É verdade que tentativas de se diminuir as taxas de
juros por meio da expansão do crédito geram um período de expansão
econômica. Mas a prosperidade assim
criada é um produto artificial cujo fim inexorável é uma recessão ou até mesmo
uma depressão. As pessoas
inevitavelmente terão de pagar, e de forma severa, pela orgia propiciada pelo
dinheiro fácil oriundo de alguns anos de expansão creditícia e inflação
monetária.
A reincidência de períodos de depressão e desemprego
em massa deixou o capitalismo desacreditado junto a pessoas pouco
perspicazes. Mas o fato é que esses
eventos não são o resultado do funcionamento do livre mercado. Ao contrário, eles são o resultado de
interferências governamentais bem intencionadas, porém irrefletidas, no mercado.
Os salários e o padrão de vida só podem aumentar se
houver uma aceleração do aumento do capital em relação à população. A única maneira de aumentar os salários
permanentemente para todos aqueles que estão à procura de empregos e ávidos por
um salário é aumentando sua produtividade — e isso só pode ser feito por meio
do aumento do capital investido em termos per capita.
O que possibilita que os salários pagos aqui nos EUA sejam
maiores que os salários da Europa e da Ásia é o fato de que o trabalhador
americano é auxiliado por mais e melhores equipamentos. Tudo o que o governo pode fazer para melhorar
o bem-estar material das pessoas é estabelecer e preservar uma ordem
institucional na qual não haja obstáculos à acumulação progressiva de mais capital,
que é o que permite o aprimoramento dos métodos tecnológicos de produção. Foi isso que o capitalismo alcançou no
passado e é isso que ele irá alcançar também no futuro caso não seja sabotado
por más políticas.
Dois caminhos para o socialismo
O intervencionismo não pode ser considerado um sistema
econômico que veio para ficar. Ele é
apenas um método para a transformação do capitalismo em socialismo por meio de
uma série de etapas sucessivas. Como
tal, ele se difere dos esforços feitos pelos comunistas que tentam implantar o
socialismo de uma só vez. A diferença
não está no objetivo final do movimento político; ela está principalmente nas
táticas a que cada grupo recorre para alcançar o mesmo fim que ambos
ambicionam.
Karl Marx e Friedrich Engels recomendaram
sucessivamente cada um desses dois caminhos para a realização do
socialismo. Em 1848, no Manifesto
Comunista, eles delinearam um plano para uma transformação passo a passo do
capitalismo em
socialismo. O
proletariado deveria ser elevado à posição de classe dominante e utilizar toda
a sua supremacia política para "extrair, gradualmente, todo o capital da
burguesia". Isso, eles declararam,
"somente pode ser efetuado através de intervenções despóticas nos direitos de
propriedade e nas relações de produção burguesas; por meio de medidas,
portanto, que parecem ser economicamente insuficientes e insustentáveis, mas
que, no decurso da empreitada, se superam a si próprias e são inevitáveis como
meio de se revolucionar inteiramente o modo de produção". Nessa animação, eles enumeram por meio de
exemplo dez medidas que devem ser tomadas.
Anos depois, Marx e Engels mudaram de ideia. Em seu principal tratado, O Capital,
primeiramente publicado em 1867, Marx viu as coisas de maneira diferente. O socialismo é uma inevitabilidade que virá
"como a inexorabilidade de uma lei da natureza". Mas ele não pode surgir antes que o
capitalismo tenha atingido sua completa maturidade. Há apenas um
caminho para o colapso do capitalismo: deixar que ele progrida por si próprio,
sem intervenções. E somente então a
grande revolta final da classe trabalhadora irá desferir o golpe de
misericórdia no capitalismo e inaugurar a eterna era da abundância.
Do ponto de vista dessa última doutrina, Marx e a
escola de marxistas ortodoxos rejeitam todas as políticas que pretendem
restringir, regular e aperfeiçoar o capitalismo. Tais políticas, declaram eles, não apenas são
fúteis, como também são completamente prejudiciais. Pois elas atrasam o envelhecimento do
capitalismo, sua maturidade e seu consequente colapso. Elas, portanto, não são progressivas; são
reacionárias. Foi essa ideia que levou o
Partido Social Democrata alemão a votar contra a legislação da seguridade
social a ser implantada por Bismarck e a frustrar o plano do chanceler de
nacionalizar a indústria alemã de tabaco.
Sob o mesmo ponto de vista, os comunistas tacharam o New Deal americano
como sendo uma trama reacionária extremamente prejudicial aos reais interesses
da classe trabalhadora.
O que deve ser entendido é que o antagonismo entre os
intervencionistas e os comunistas é uma mera manifestação do conflito entre as
duas doutrinas do marxismo: a antiga e a tardia. É o conflito entre o Marx de 1848, autor de O
Manifesto Comunista, e o Marx de 1867, autor de O Capital. E é de fato algo paradoxal que o documento no
qual Marx endossou exatamente as mesmas políticas defendidas pelos pretensos
anticomunistas atuais seja chamado de Manifesto Comunista.
Há dois possíveis métodos para se fazer a
transformação do capitalismo no socialismo.
Um é a expropriação de todas as fazendas, fábricas e lojas, fazendo com
que elas sejam geridas por aparatos burocráticos, como agências do
governo. Toda a sociedade, diz Lênin,
tornar-se-ia "uma repartição e uma fábrica, com salários idênticos e iguais
cargas de trabalho,"[1] e toda a economia seria organizada "como os
correios".[2] O segundo método é o método do
plano Hindenburg, originalmente o padrão alemão de estado assistencialista e
planejador. Tal arranjo obrigaria cada
empresa e cada indivíduo a cumprir estritamente as ordens emitidas pelo comitê
central de gerenciamento da produção.
Tal era a intenção do National Industrial Recovery Act, implantado por Franklin Roosevelt em 1933, porém
frustrado anos depois pela resistência das empresas e declarado
inconstitucional pela Suprema Corte. Tal
é a ideia implícita nas tentativas de se substituir a iniciativa privada pelo
planejamento central.
Controle cambial
O principal veículo para a implementação desse segundo
tipo de socialismo em países industriais como Alemanha e Grã-Bretanha é o
controle cambial. Esses países não
conseguem alimentar e prover de roupas toda a sua população utilizando apenas
recursos domésticos. Eles precisam
importar grandes quantias de comida e matéria-prima. Para poder pagar por essas importações extremamente
necessárias, esses países precisam exportar produtos manufaturados, a maioria
deles produzida com a matéria-prima importada.
Nesses países, praticamente todas as transações
comerciais são direta ou indiretamente condicionadas pelas exportações,
importações ou ambas ao mesmo tempo. Logo,
o monopólio governamental da compra e venda de divisas estrangeiras faz com que
todos os tipos de atividade empreendedorial sejam dependentes do arbítrio da
agência incumbida do controle do câmbio.
Aqui nos EUA as coisas são diferentes. O volume de comércio externo é muito pequeno
quando comparado ao volume total do comércio interno. O controle cambial iria afetar apenas
ligeiramente a maior parte das empresas americanas. É por essa razão que nos esquemas de nossos
planejadores dificilmente é mencionada a questão do controle cambial. Os objetivos deles são outros: controle de
preços, de salários, das taxas de juros e dos investimentos, bem como a
limitação do lucro e da renda.
Tributação progressiva
Olhando para trás e observando a evolução das
alíquotas do imposto de renda, desde sua criação em 1913 até hoje, é difícil
não imaginar que um dia o tributo vá absorver 100% de todo excedente da renda
do cidadão comum. Era isso que Marx e
Engels tinham em mente quando, no Manifesto Comunista, recomendaram "um imposto
de renda gradual ou severamente progressivo."
Outra sugestão contida no Manifesto Comunista é a "abolição
de todo o direito à herança". Até o
momento, nenhum país capitalista adotou leis que chegassem a esse ponto. Porém, ao olharmos novamente para o passado e
observarmos a evolução dos impostos sobre heranças, temos de concluir que eles
cada vez mais têm se aproximado do objetivo traçado por Marx. As alíquotas mais altas dos atuais impostos
sobre herança não mais permitem que tais instrumentos sejam classificados como
impostos. Eles passaram a ser medidas de
expropriação.
A filosofia subjacente a esse sistema de tributação
progressiva é que a renda e a riqueza das classes mais abastadas podem ser
livremente arrebatadas. O que os
defensores dessas alíquotas tributárias não conseguem entender é que a maior
parte dessa renda tributada não teria sido consumida, mas sim poupada e
investida. Essa política fiscal não
apenas impede uma maior acumulação de capital; ela na realidade produz uma
desacumulação de capital. E esse
certamente é o estado atual das coisas na Grã-Bretanha.
A tendência em direção socialismo
O curso dos eventos nos últimos trinta anos mostra um
contínuo, embora às vezes interrompido, progresso em direção ao estabelecimento
nesse país de um socialismo de padrão britânico e alemão. Os EUA começaram seu declínio bem depois
desses dois países e hoje ainda está muito longe de seu fim. Porém, se a tendência dessa política não for
alterada, o resultado final diferirá apenas em termos negligentes do que
aconteceu na Inglaterra de Attlee e na Alemanha de Hitler. Uma políticas centrista não é um sistema
econômico duradouro. É um método para se
implantar o socialismo a prestações.
Capitalismo de brechas
Muitas pessoas contestam. Elas salientam o fato de que a maioria das
leis voltadas para o planejamento ou para a expropriação por meio da tributação
progressiva acabou deixando brechas que dão à iniciativa privada alguma margem
para respirar e se manter ativa. É
verdade que certas brechas ainda existem.
E é graças a elas esse ainda é um país livre. Mas esse "capitalismo de brechas" não é um
sistema sustentável. É apenas um pequeno
alívio. Forças poderosas já estão
trabalhando intensamente para fechar essas brechas. Dia após dia a área na qual a iniciativa
privada é livre para operar vai sendo severamente limitada.
A chegada do socialismo não
é inevitável
É claro que esse resultado não é
inevitável. A tendência pode ser
revertida assim como o foram muitas outras tendências históricas. O dogma marxista — de acordo com o qual o
socialismo é uma inevitabilidade que virá "com a inexorabilidade de uma lei da
natureza" — é apenas uma conjetura arbitrária destituída de qualquer prova.
Mas o prestígio que esse
presunçoso prognóstico desfruta, não apenas junto aos marxistas, mas também
junto a vários pretensos não-marxistas, é o principal instrumento de progressão
do socialismo. Ele propaga o derrotismo
entre aqueles que, de outra forma, iriam corajosamente lutar contra a ameaça
socialista. A mais poderosa aliada da
Rússia Soviética é a doutrina que diz que a "onda do futuro" nos carregará em
direção ao socialismo, sendo portanto "progressista" simpatizar com todas as
medidas que restringem mais e mais a operação da economia de mercado.
Mesmo nesse país, que deve a
um século de "rigoroso individualismo" o mais alto padrão de vida já obtido por
qualquer nação, a opinião pública condena o laissez-faire. Nos últimos cinqüenta anos, milhares de
livros publicados condenam o capitalismo e defendem o intervencionismo radical,
o estado assistencialista e o socialismo.
Os poucos livros que tentaram explicar adequadamente o funcionamento da
economia de livre mercado mal foram notados pelo público. Seus autores permanecem obscuros, ao passo que
autores como Veblen, Commons, John Dewey e Laski são exuberantemente
glorificados.
É um fato já bem conhecido
que tanto o teatro quanto a indústria de Hollywood são críticos não menos radicais
da livre iniciativa que muitos romances.
Há aqui nesse país vários periódicos que, em cada uma de suas edições,
atacam furiosamente a liberdade econômica.
Dificilmente encontramos uma revista de opinião defendendo o sistema que
forneceu à imensa maioria das pessoas abrigo, boa comida, carros, geladeiras,
rádios e outros bens que os habitantes de outros países considerariam como
sendo de extremo luxo.
A consequência desse estado
de coisas é que praticamente quase nada é feito para se preservar o sistema de
livre iniciativa. Existem apenas
centristas conciliatórios que acreditam ter obtido algum êxito por terem adiado
por algum tempo uma medida especialmente ruinosa. Eles estão em constante recuo. Eles hoje toleram medidas que há apenas dez
ou vinte anos teriam considerado totalmente não aceitáveis. Daqui a poucos anos eles irão aceitar
tacitamente outras medidas que hoje consideram simplesmente fora de questão.
Somente uma mudança completa
e meticulosa de ideologia pode impedir a chegada do socialismo
totalitário. O que precisamos não é nem
de anti-socialismo nem de anticomunismo, mas de um endossamento positivo
daquele sistema ao qual devemos toda a riqueza que possibilita que hoje vivamos
com mais conforto do que os grandes nobres do início do século.
_________________________________________________
Notas
[1] Cf.
Lenin, State and Revolution (Little Lenin Library No. 14, New York,
1932) p. 84.
[2] Ibidem p.
44.