Nota do editor
Infelizmente, o artigo abaixo, originalmente publicado no dia 22 de agosto de 2019 e republicado em novembro daquele ano, está tendo de ser atualizado. Dado que os chicaguistas que estão na equipe econômica nada entendem sobre moeda (aliás, à medida que o tempo passa, eles entendem cada vez menos, em um curioso processo regressão intelectual), torna-se necessário voltar a repetir o básico.
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O dinheiro representa a metade de toda e
qualquer transação econômica. Além de ser o meio de troca, a moeda é também
a unidade de conta que permite o cálculo de custos de todos os empreendimentos,
investimentos e despesas.
Consequentemente, a estabilidade deste dinheiro
(meio de troca e unidade de conta) irá determinar a estabilidade de toda a
economia.
A lógica é direta: se você não tem um meio de troca estável,
você não tem como efetuar transações com este meio de troca. Se você não tem
uma unidade de conta estável, toda e qualquer transação se torna incerta, pois
você não como calcular custos (logo, nem lucros e prejuízos).
Por outro lado, se você tem uma moeda estável, a unidade de conta também se
torna estável. Consequentemente, você se torna perfeitamente capaz de calcular
e de fazer previsões. E aí suas transações se tornam muito menos incertas. Seus
cálculos de custos (formação de preços, lucros e prejuízos) se tornam muito
mais efetivos. Suas estimativas quanto aos valores futuros se tornam bem mais
previsíveis.
Por isso, se a moeda é instável, a economia também
se torna instável e fraca. Já se ela é estável, a economia se fortalece e
prospera
E qual é a definição de estabilidade de uma moeda? Certamente,
não é apenas a mensuração da inflação
de preços. Não é só a inflação de preços dentro de um país o que define a
estabilidade de uma moeda. A inflação de preços pode estar baixa por uma miríade
de fatores, o que inclui uma simples redução na demanda, causada por uma estagnação
na renda da população — que, por sua vez, decorre de uma atividade econômica
fraca.
A melhor definição para a estabilidade de uma moeda
está no comportamento do seu preço em relação às outras moedas estrangeiras. Afinal,
se os outros meios de troca e unidades de conta estão encarecendo em relação à
moeda nacional, isto significa que a própria moeda nacional está deixando de
ser demandada como meio de troca e unidade de conta. Há outras melhores. O exemplo
mais extremo disso é o do bolívar venezuelano. E
também o peso argentino.
Em termos mais diretos, se a taxa de câmbio está continuamente
encarecendo em termos da moeda nacional, então ela está se tornando instável. E
está se enfraquecendo.
Consequências
Como já dito, a moeda é o meio de troca e a unidade
de conta que permite o cálculo de custos de todos os empreendimentos,
investimentos e despesas.
Consequentemente, se essa unidade de conta é
instável — isto é, se seu poder de compra cai contínua e rapidamente,
principalmente em termos das outras moedas estrangeiras —, não haverá incentivos
para se fazer investimentos, principalmente
de estrangeiros no país.
Quando investidores investem, eles estão, na prática,
abrindo mão do consumo presente para obter um fluxo de renda futura. Para
que investidores (nacionais ou estrangeiros) invistam capital em atividades
produtivas, eles têm de ter um mínimo de certeza e segurança de que terão um
retorno que lhes traga mais poder de compra no futuro do que possuem hoje.
Entretanto, se a unidade de conta é continuamente
distorcida e desvalorizada, se sua definição é flutuante, há apenas caos e
incerteza. Se um investidor não faz a menor ideia de qual será a definição
da unidade de conta no futuro (sabendo apenas que seu poder de compra
certamente será bem menor), o mínimo que ele irá exigir serão retornos altos em
um curto espaço de tempo. Ou
então não investirá.
Sendo mais direto, por que investir se qualquer
eventual retorno futuro virá em um meio de troca que lhe permitirá comprar menos bens
e serviços?
Vejamos um exemplo prático do Brasil.
Em fevereiro de 2017, um dólar custava aproximadamente
R$ 3,10. Naquela época, um investidor estrangeiro que houvesse trazido US$
100 para cá converteria para R$ 310.
Hoje, após uma série de bagunças — grampo dos irmãos
Batista, greve dos caminhoneiros, incertezas eleitorais, incertezas quanto à
economia mundial, guerra comercial, eleição argentina, badernas no Chile, desinteresse estrangeiro no leilão do pré-sal (algo que havia sido previsto por este Instituto), coronavírus e, é claro, várias declarações infelizes de membros da equipe econômica —, o dólar custa aproximadamente R$ 4,30.
Consequentemente, se aqueles R$ 310 do investidor
estrangeiro fossem reconvertidos em dólares, ele teria apenas US$ 72.
Isso significa que, para que ele obtivesse algum ganho real com seu investimento
— por exemplo, para que ele pudesse voltar pra casa com pelo menos US$ 101 —,
sua taxa de retorno líquido teria de ser de 41% (os R$ 310
teriam que se transformar em R$ 435) em três anos.
Isso equivale a um retorno líquido de 12,15% ao ano. E apenas
para o investidor estrangeiro ficar no zero
a zero.
Há algum investimento na economia produtiva —
desconsidere títulos públicos ou mesmo especulação com ações, que não geram
empregos — que gere um retorno líquido
de 12,15% ao ano?
Sim, certamente há. Mas não muitos. Pergunte a
qualquer operador de bolsa de valores e ele vai lhe confirmar que um retorno de
12,15% ao ano sobre o patrimônio investido é algo que apenas bancos e poucas
grandes empresas conseguem.
Ou seja, resumindo tudo: um investidor estrangeiro
teria de ter um retorno líquido de 12,15% ao ano apenas para ficar no zero a zero. Para começar a ter algum lucro
minimamente relevante, ele teria de ter um retorno de, no mínimo, uns 15%
líquido ao ano — algo que, hoje, você só consegue especulando com ações.
Agora, peguemos um cenário inverso.
Suponha que, neste mesmo período de tempo, o dólar tivesse
caído de R$ 3,10 para R$ 3. (Uma queda modesta, o que configura uma moeda
estável).
Um investidor estrangeiro que houvesse trazido US$
100 para cá e convertido para R$ 310 teria agora US$ 103 sem precisar de ter
investido em nada.
Isso significa que, se ele tivesse feito qualquer investimento produtivo –
investimento em infra-estrutura ou em fábricas ou em tecnologia da informação,
por exemplo —, ele teria um lucro ainda maior.
Se ele investisse em aeroportos e rodovias, e
tirasse 5% ao ano líquidos, aqueles R$ 310 iniciais valeriam hoje (3 anos depois) R$ 359. Lucro líquido de 15,76%.
Se esses R$ 359 fossem reconvertidos em dólares, ao câmbio
de agora 3 reais por dólar, ele teria US$ 120. Ganho de 20%.
Perceba a diferença absurda: no primeiro cenário, seria
necessário um retorno líquido 12,15% ao ano apenas
para o investidor estrangeiro ficar no zero a zero. Já no segundo cenário,
um retorno líquido de meros 5% ao ano
já lhe garantiria um lucro líquido total de 20%.
E tudo por causa do câmbio.
(Detalhe técnico: para ambos os casos, é comum o investidor fazer o um hedge cambial para se proteger dessas flutuações. No entanto, se, por um lado, o hedge ajuda a suavizar as perdas em caso de desvalorização, ele também anula todos os ganhos em caso de valorização. Adicionalmente, investimentos produtivos são de longo prazo, e hedges cambiais de longo prazo são extremamente raros. Veja uma ótima reportagem sobre isso. Apenas agora que estão começando a dar alguma atenção a este problema. Hedge cambial é hoje feito apenas por importadores e exportadores, e para períodos de tempo de menos de um ano).
A importância da estabilidade
Para países em desenvolvimento, que precisam de
investimentos estrangeiros, essa questão da estabilidade da moeda é crucial
também por outro motivo: uma moeda estável cria as condições necessárias para
a transferência de conhecimento.
O conhecimento acompanha o investimento e o capital
estrangeiro vem acompanhado de conhecimento estrangeiro.
Um país de moeda estável envia um sinal claro ao
mundo: "tragam seu dinheiro; mandem para cá seus especialistas; construam
suas fábricas aqui; ensinem a nós tudo o que vocês sabem; e a riqueza que vocês
criarem aqui voltará para vocês multiplicada e em uma moeda que mantém seu
valor".
Quando a moeda é estável, investidores têm mais
incentivos para se arriscar e financiar ideias novas e ousadas; eles têm mais
disponibilidade para financiar a criação de uma riqueza que ainda não
existe. O investimento em tecnologia é maior. O investimento em
soluções ousadas para a saúde é maior. O investimento em infraestrutura é
maior. O investimento em ideias para o bem-estar de todos é maior.
Já um país de moeda instável está mandando um
sinal claro aos investidores estrangeiros: "mantenham sua riqueza financeira e
intelectual longe daqui; caso contrário, você irá perdê-la sempre que for remeter
seus lucros".
O máximo a que um país de moeda instável pode
aspirar é utilizar para fins de curto prazo o capital puramente especulativo (o
chamado "hot money") que entra no país à procura de ganhos rápidos
com arbitragem. Consequentemente, os melhores cérebros do país abandonarão
as profissões voltadas para o setor tecnológico e irão se concentrar no mercado
financeiro.
Os investidores preferirão se refugiar em
investimentos tradicionais e mais seguros, como imóveis e títulos do governo. Não
há segurança para investimentos de longo prazo, que são os que mais criam
riqueza.
Conclusão
Não há crescimento econômico sem investimentos. E o
investimento estrangeiro, pelo simples fato de ser mais vultoso (há muito mais
capital fora do Brasil do que dentro do Brasil), é o mais capacitado a gerar
crescimento econômico.
Igualmente, não há empregos sem investimentos
produtivos. E não há empregos que paguem bem sem investimentos vultosos.
Mas não há investimentos produtivos sem moeda
estável.
É por isso que os economistas clássicos, à sua
época, já defendiam a idéia de que a moeda, para ser eficaz, deveria ser a mais
estável possível. Eles já sabiam que ter uma moeda cujo valor flutuasse
constantemente seria o equivalente a utilizar unidades de medida que flutuassem
diariamente.
Imagine o que ocorreria se a definição de metro,
grama e minuto fosse alterada diariamente? Em um dia, o metro tem 100
centímetros; no dia seguinte, o metro se desvaloriza e passa a valer 95
centímetros. Depois, se valoriza e passa a ter 107 centímetros. Como
seria possível fazer qualquer obra dessa maneira?
Assim como um metro flutuante e um minuto flutuante
gerariam vários erros de construção, de cálculo e de planejamento, um dinheiro
(meio de troca e unidade de conta) flutuante não tem como permitir
investimentos sensatos. Ele gera apenas uma grande desarmonia nas transações e
um profundo caos no cálculo econômico.
Uma moeda instável desestimula investimentos
produtivos. E, consequentemente, age contra o crescimento
econômico.
Por isso, uma moeda estável é indispensável para
atrair o capital estrangeiro e, com isso, gerar crescimento econômico.
Se a moeda brasileira mantiver sua atual trajetória de
enfraquecimento e instabilidade iniciada em maio de 2017, pode esquecer
qualquer chance crescimento. Não haverá investimentos estrangeiros produtivos.
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