segunda-feira, 5 ago 2019
Imagine um cidadão pagando juros de mais de 10% ao
mês no cartão de crédito e com dinheiro aplicado na poupança a uma taxa menor
que 0,5% ao mês.
Este indivíduo, então, lhe pede um conselho a
respeito de o que fazer com o dinheiro dele.
Você recomendaria que ele colocasse o dinheiro no
Tesouro Direto, em alguma aplicação vinculada ao CDI ou que pagasse a dívida?
Supondo que você não tivesse raiva do cidadão, e nem
quisesse recomendar um calote ou algo do tipo, a sugestão óbvia seria que ele pagasse
a dívida. Dificilmente o sujeito encontraria alguma alternativa com rendimentos
superiores aos 10% que ele está pagando e que não tivesse um alto risco de
colocá-lo na cadeia.
Essa mesma lógica pode ser aplicada ao FGTS.
O
FGTS é uma desapropriação
Sem muitos rodeios, o FGTS é uma quantia paga pelo patrão
(correspondente a 8% do salário bruto do empregado), e que poderia ser
incorporada ao salário do trabalhador (afinal, é uma quantia que já é paga pelo
patrão), mas que é desviada para o governo e só pode ser reavida em casos
específicos (ou após a aposentadoria).
Na prática, o governo "pega emprestado"
esse dinheiro do trabalhador e lhe paga juros de míseros
3% ao ano. Dado que a caderneta de poupança rende 4,6%
ao ano, e a inflação de preços está em
3,75% ao ano, o trabalhador não apenas deixa de auferir rendimentos maiores,
como ainda perde poder de compra com o FGTS.
E para onde vai o dinheiro do FGTS? Historicamente,
uma parte era direcionada para
subsidiar o BNDES e a outra para financiar a aquisição de
imóveis do próprio trabalhador — algo completamente sem sentido, pois
a aplicação desse dinheiro na caderneta de poupança já permitiria ao trabalhar
obter muito mais rendimento e, com isso, ter mais dinheiro para comprar imóveis.
Mas prossigamos.
Liberar
o saque seria apenas uma reparação
Como vimos, o dinheiro que está preso no FGTS rende
muito pouco, ainda menos que a poupança, mas os juros pagos por quem está
endividado são muito altos.
Ao permitir o saque do FGTS, mesmo
que de apenas R$ 500, o governo ao menos permite que os trabalhadores
endividados sigam o conselho dado no início do texto — ou seja, paguem suas
dívidas — e que os trabalhadores que não estão endividados possam consumir sem
ter de se endividar.
E, caso o leitor imagine que ninguém fica endividado
por causa de R$ 500, saiba que 30% dos inadimplentes estão nesta condição por
conta de valores menores que R$ 500 (ver aqui
e aqui).
Considerando que são 63,2 milhões de pessoas com contas atrasadas, estamos
falando de quase vinte milhões de pessoas que poderiam ter evitado a
inadimplência se tivessem tido acesso a R$ 500. É provável que boa parte dessas
pessoas tivesse os tais R$ 500 presos em uma conta de FGTS.
Os dados usados no parágrafo anterior estão na
apresentação feita pela equipe do Ministério da Economia por ocasião do
lançamento do programa "Saque Certo – Direito de quem trabalha" (link aqui).
Na página vinte e seis da apresentação, há uma tabela que sozinha justifica o
apoio a qualquer programa que facilite o acesso ao dinheiro preso no FGTS. Nela,
estão os valores de R$ 100 em janeiro de 2017 corrigidos por diversas taxas
cobradas no mercado e pelo FGTS.
Alguém que tenha pedido R$ 100 emprestados em
janeiro de 2017 estaria devendo hoje R$ 412,58 se fosse no comércio, R$ 295,46
se fosse empréstimo pessoal em um banco, 683,36 se fosse empréstimo em
financeira, R$ 2.159,38 se fosse no cheque especial e R$ 2.462,61 se fosse no cartão de crédito.
Os mesmos cem reais aplicados pelo mesmo período no
FGTS hoje valeriam míseros R$ 110,79.
É assustador.
A figura abaixo expande a tabela da apresentação do
Ministério da Economia para outros valores.

Observe que um infeliz que pegou R$ 500 no cartão de
crédito em janeiro de 2017 e deixou a conta rolar hoje deve mais de doze mil
reais; os R$ 500 que ele tinha no FGTS hoje valem R$ 553,95.
Mal comparando, é como se ele tivesse perdido R$
10.000 entre janeiro de 2017 e hoje pelo direito de deixar o dinheiro guardado
no FGTS. Se em janeiro de 2017 o governo tivesse autorizado a retirada de R$
500 do FGTS para pagar a dívida, o sujeito hoje não estaria devendo cerca de
doze mil reais.
Caso ele tivesse se endividado no comércio, o
coitado teve de "pagar" cerca de R$ 1.500 pelo "privilégio" de financiar o
desenvolvimento nacional.
Por outro lado, alguém pode dizer que ele tem
direito a receber a multa em caso de demissão. É verdade: no caso de quem tinha
R$ 500 no FGTS em janeiro de 2017 e hoje tem R$ 554, a multa seria de cerca de
R$ 222, deixando o sujeito com R$ 776 nas mãos. Isso equivale a pouco mais da
metade do que ele estaria devendo se, desde janeiro de 2017, ele tivesse
deixado acumular uma dívida de R$ 500 em empréstimo pessoal de banco, o
endividamento mais barato dentre os listados na tabela.
No entanto, se ele tivesse deixado a dívida acumular
no cartão, os R$ 776 do FGTS mais multa seriam menos de 10% da dívida.
Apenas para dar uma idéia da crueldade que é deixar
alguém endividado com dinheiro preso no FGTS, eis uma aproximação rápida da
taxa de juros implícita na tabela do Ministério da Economia. A figura abaixo
mostra as taxas aproximadas.

É isso mesmo: a modalidade de crédito mais barata
tem taxas mensais mais de dez vezes maiores que a taxa mensal paga pelo FGTS.
Se o número verdadeiro do rendimento do FGTS for o dobro de minha aproximação e
o número verdadeiro da taxa do empréstimo mais barato for metade da minha
aproximação, ainda assim teríamos um escândalo.
O
PIB é o de menos
Muito ainda será dito a respeito do impacto positivo
da liberação do FGTS sobre o PIB. Mas isso é o de menos. A questão do FGTS vai
muito além de estimular a demanda e os números do PIB. Mesmo
um eventual impacto sobre a oferta, o que seria ótimo e é bem explorado na apresentação
do Ministério da Economia, é incerto e virá em futuro que não podemos prever.
O principal motivo para se defender a liberação de
saques do FGTS é que tal medida, além de reduzir os absurdos descritos no
artigo, é sobretudo ética e moral: trata-se, na mais branda das hipóteses, da devolução
de um produto que foi roubado e, para piorar, ainda foi depreciado.
Sendo assim, a única crítica válida ao programa é ele
não ter liberado mais do que os R$ 500.