segunda-feira, 15 jul 2019
A União Europeia e o Mercosul assinaram um histórico
acordo
comercial no dia 28 de junho de 2019. O adjetivo 'histórico'
é, com frequência, muito mal aplicado. No entanto, neste caso, ele é
pertinente.
O acordo vinha sendo negociado há impressionantes
vinte anos. Com efeito, as conversas começaram no dia 28
de junho de 1999. Ficaram praticamente paralisadas até
2016, quando houve um novo esforço. De acordo com Jean-Claude
Junker, presidente da Comissão Europeia, "este pacto
comercial é o maior acordo comercial que a União Europeia já concluiu".
O Mercosul é uma aliança regional formada por
Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. A população conjunta destes quatro
países é de 260 milhões, formando uma renda nacional brutal per capita de 9.500
euros. É o primeiro acordo comercial deste tipo assinado por estas nações
sul-americanas.
De acordo com Bruxelas, o pacto irá eliminar 4
bilhões de euros em tarifas anuais e encargos aduaneiros para as exportações oriundas
da União Europeia. Ademais, de acordo com o jornal Financial
Times, a UE "estima que a poupança gerada pelas reduções tarifárias
será quatro vezes maior que a gerada pelo recente acordo entre UE e Japão, e
quase sete vezes maior que a do acordo com o Canadá".
Maluquice protecionista
O mesmo artigo do Financial Times apresenta um dos
mais bizarros motivos por que o acordo demorou tanto tempo para sair:
Para
o Mercosul, algumas das mais difíceis concessões incluíam a redução de tarifas
sobre carros europeus importados e peças automotivas, bem como a abertura de
seu mercado de licitações públicas. Do lado da União Europeia, as questões mais
controversas giravam ao redor do seu setor agrícola.
Traduzindo: para os políticos, burocratas e reguladores
da América do Sul, era um enorme problema o fato de seus cidadãos passarem a
poder ter acesso a Mercedes Benz e Ferraris mais baratas. Já para seus congêneres
europeus, o "problema" era os cidadãos passarem a ter acesso mais barato às
excelentes carnes argentinas e à cana-de-açúcar brasileira.
É somente através das lentes do estado que tal
arranjo, em vez de ser visto como o mais robusto incentivo, pode se transformar
em um prolongado impedimento.
Não obstante, o presidente francês Emmanuel Macron permaneceu
leal ao lobby agrícola francês até o final. Macron incorreu em frenéticos esforços
para conseguir um arranjo que não fosse tão "generoso", principalmente na questão
da carne. Coincidentemente, a França é
a principal beneficiada pelos subsídios agrícolas da União Europeia, sendo
a recebedora de um total de 7,6 bilhões de euros.
Em uma interessante reviravolta, a contra-ofensiva à
França foi orquestrada
pelo primeiro-ministro da Espanha (que é chamado de presidente do governo
da Espanha) Pedro Sánchez, que, sendo de esquerda, não é exatamente
conhecido por ser a favor de uma maior liberalização comercial. Ele foi
rapidamente seguido por Angela Merkel (Alemanha), António Costa (Portugal), Mark
Rutte (Holanda), e outros.
Ar fresco, porém...
Nestas épocas em que o presidente dos EUA assumiu
uma perigosa retórica
anti-comércio, e na qual há uma crescente guerra tarifária entre EUA
e China, o acordo Mercosul-União Europeia vem como uma lufada de ar fresco.
Cecilia
Malmstrom, a Comissária do Comércio da UE, afirmou que o acordo
representava "uma mensagem em alto e bom som de que nós acreditamos que o
comércio é algo bom, pois aproxima as pessoas".
É, de fato, inegável que acordos comerciais
trouxeram um grande
aumento no volume do comércio global, e que eles foram positivos para a globalização. Entretanto,
acordos comerciais também possuem um lado obscuro. Por sua própria natureza,
eles são discriminatórios. As condições de relativa abertura que eles trazem são
usufruídas apenas pelos membros do arranjo. Para quem está de fora, a situação pode
ficar bem mais complicada.
A própria União Europeia é um bom exemplo disso. Os países-membros
usufruem as benesses do livre comércio entre eles. Mas quem está de fora praticamente é proibido de
participar. Ou seja, a UE pode ser bem aberta para quem está dentro, mas é
uma fortaleza para quem está de fora. Por causa da Tarifa Externa Comum (TEC), todos
os países do grupo são obrigados a aplicar a mesma taxação em relação à
importação de produtos de países fora do grupo.
Com efeito, o mesmo ocorre para o Mercosul. Seus
países-membros adotaram a TEC em 1995. Isso implica que, por exemplo, o Brasil
não pode reduzir autonomamente a taxação sobre determinado produto que compra
da China em troca de algum benefício no mercado chinês. Para mudar a taxa, é
preciso fazer um acordo com todos os países-membros, que também reduzirão suas
tarifas. Ou seja, é preciso negociar em bloco.
Por causa desta característica típica das uniões aduaneiras,
um país-membro de uma união aduaneira não pode unilateralmente praticar o livre
comércio com países que estão fora do arranjo.
Para piorar, acordos comerciais "profundos e
abrangentes" frequentemente incluem cláusulas exóticas
que nada têm a ver com a redução de tarifas de importação.
Como
deveria ser
Por isso, existe uma diferença crucial, praticamente
intransponível, entre "livre comércio" e "acordos de livre
comércio". Livre comércio significa simplesmente você e eu
transacionarmos livremente com quem quisermos, não importa se a outra pessoa
está do outro lado da rua ou do outro lado do globo. Não há barreiras, não
há tarifas, não há imposições governamentais.
Um genuíno livre comércio não requer um "tratado"
ou um "acordo comercial". Se um governo genuinamente quisesse um
livre comércio, tudo o que ele teria de fazer seria abolir as inúmeras tarifas
de importação, as cotas de importação, as leis "anti-dumping", e
todas as outras restrições estatais impostas ao comércio. Não é necessária
nenhuma política externa ou manobra conjunta.
Por isso, o acordo de livre comércio ideal deveria
caber em uma única página: "Não haverá nenhuma restrição ao comércio entre indivíduos
do país A e indivíduos do país B."
Tudo que um país tem de fazer para alcançar um
genuíno acordo de livre comércio é passar uma ínfima legislação declarando
simplesmente que:
Por meio desta, o governo [insira o nome
do gentílico] elimina todas as vigentes barreiras, restrições e proibições à livre
e irrestrita exportação e importação, compra e venda, de todos os bens e
serviços entre [nome do país] e toda e qualquer nação do mundo. O governo
[insira o nome do gentílico] declara que todas as formas pacíficas e
não-fraudulentas de comércio e troca são questões exclusivas do foro privado de
cada indivíduo, e dizem respeito apenas aos cidadãos do [insira o nome do país]
e do resto do mundo envolvidos na transação. Esta lei entra em vigor
imediatamente.
Igualmente, a política comercial ideal seria o livre
comércio unilateral. Países
não comercializam com outros países. Apenas indivíduos e empresas o fazem. Nunca
um país como um todo. O melhor que um país pode fazer é deixar seus cidadãos e
empresas em paz e deixar os mercados (ou seja, indivíduos comprando e vendendo)
operaram normalmente. Isto, sim, constituiria uma verdadeira abertura ao mundo.
Um comércio livre e abrangente, sem subsídios, entre
as pessoas da terra reduz as tensões e melhora o padrão de vida
de todos. Este arranjo é, moral e economicamente,
a única política adequada.
E esta política funciona.
Países como Suíça, Hong Kong e Cingapura já a implantaram há muito. E são,
respectivamente, o sétimo, o oitavo e o segundo mais
ricos do mundo em termos per capita.
Ainda
falta muito
Por tudo isso, a assinatura do acordo União
Europeia-Mercosul constitui, na melhor das hipóteses, apenas um ponto de
partida. Ele ainda tem de ser ratificado por nada menos que 28 parlamentos
nacionais na Europa e por quatro parlamentos nacionais na América do Sul. Pior:
uma aliança profana entre políticos protecionistas, lobistas do setor agropecuário
e ambientalistas pode estar se formando.
Quão céticos os parlamentos francês e polonês continuarão
é algo a ser conferido. Diplomatas
brasileiros já estão alertando que a implantação de fato do acordo "pode demorar
anos". O mais poderoso lobby agrícola da Europa, o grupo Copa-Cogeca,
já emitiu uma declaração denunciando que está havendo "dois pesos e duas
medidas" para beneficiar os bens agrícolas do Mercosul, e que isso
representaria uma "concorrência desleal". Como todos sabemos, "concorrência
desleal" nada mais é do que uma lamúria contra a boa e velha concorrência que
afeta reservas de mercado.
E até a multinacional ambientalista Greenpeace entrou em
cena, rapidamente gritando contra o acordo. Naomi Ages, a "especialista" da organização,
disse
que "comercializar mais carros em troca de vacas nunca é aceitável quando gera
destruição da Amazônia, ataques aos povos indígenas, e aumento da hostilidade na
sociedade civil".
Com alguma esperança, ainda chegará a época em que europeus
e sul-americanos poderão ter acesso barato a melhores carnes, melhores vinhos,
e melhores carros. Não necessariamente nesta ordem.