Confira a tabela abaixo. A coluna yield mostra os juros anuais pagos pelos
títulos públicos com prazo de 10 anos de duração.

Juros
(yield) pagos pelos títulos de 10 anos dos governos de cada país. Fonte: https://countryeconomy.com/bonds
Sim, você leu corretamente: hoje, um investidor tem
de pagar para emprestar dinheiro por dez anos para
os governos da Suíça, da Alemanha, da Dinamarca, da Holanda, do Japão, da Áustria,
da Finlândia, da França e da Bélgica.
Quem emprestar dinheiro para estes governos
receberá, daqui a 10 anos, um valor menor do que o emprestado.
A título de ilustração, quem emprestar hoje 1.000
francos suíços para o governo da Suíça receberá de volta, daqui a 10 anos, 938
francos suíços.
Quem emprestar 1.000 euros para o governo da Alemanha
receberá de volta, daqui a 10 anos, 965 euros.
Quem emprestar para o governo da Suécia não pagará
nada, mas também não receberá nada a mais após 10 anos.
Já quem emprestar para os governos de Espanha e
Portugal receberá juros de 0,41% e 0,48% ao ano, respectivamente. Ou seja, se
você emprestar 1.000 euros para o governo espanhol, receberá daqui a 10 anos a
impressionante soma de 1.041,76 euros. E isso desconsiderando o imposto de
renda.
Para prazos menores
que 10 anos, o número de países com juros negativos em seus títulos públicos passa
a incluir Suécia, Irlanda, Espanha (!), Portugal (!!) e Itália (!!!). Portugal
e Espanha pagam juros negativos até os títulos de 5 anos de prazo. A Itália,
até os de 1 ano. Confira tudo aqui.
O governo da Alemanha, por outro lado, paga juros negativos
até os títulos de 15 anos de prazo.
Já o governo da Dinamarca está prestes a bater um
recorde bizarro: falta 0,01 ponto percentual para ele se tornar o primeiro
governo do mundo a usufruir juros negativos em todos os
seus títulos públicos.
Com efeito, o volume de dinheiro aplicado em títulos
públicos com juros negativos atingiu um recorde histórico: há simplesmente 12 trilhões de dólares aplicados nestes
títulos, como mostra este
gráfico do Financial Times.

Evolução
da quantidade de dinheiro (em dólares) aplicado em títulos públicos com
rentabilidade negativa
A pergunta é inevitável: por que alguém aceitaria pagar para que o governo pegasse seu
dinheiro emprestado? Tal prática não vai contra toda a lógica financeira e, até
mesmo, da preferência temporal?
Comecemos pelo básico.
Não há escapatória
É fato que tal idéia seria completamente
inconcebível no mundo anterior à crise financeira de 2008.
Mas aquele era outro mundo. Hoje, como consequência de todos os programas
de afrouxamento quantitativo realizado pelo Banco Central Europeu, a prática de
pagar para emprestar dinheiro ao governo já se tornou norma na Europa.
Pior: ela faz total sentido hoje.
De início, muitas pessoas, normalmente leigas, se
perguntam por que pagar para emprestar dinheiro ao governo (que é o que ocorre
quando as taxas de juros são negativas) sendo que seria muito mais vantajoso
simplesmente deixar o dinheiro parado. Afinal, no primeiro caso, você está
perdendo um pouco do dinheiro; no segundo, você mantém a quantia original intacta.
Essa pergunta é típica de quem não conhece o atual sistema
financeiro e monetário. A esmagadora maioria do dinheiro (mais de 85%)
está na forma de dígitos eletrônicos; apenas uma quantia mínima (não mais do
que 10%) está na forma de cédulas e moedas metálicas.
Sendo assim, simplesmente não há como investidores e
fundos de investimento que gerenciam bilhões de euros — ou até mesmo aqueles
que gerenciam "apenas" milhões de euros — irem até o banco da
esquina e sacarem tudo em espécie. Os bancos não restituem em espécie
esses valores. Eles são legalmente isentos, pelo governo, de fazerem
isso. O dinheiro eletrônico está "preso" no sistema financeiro e
não há como esses dígitos serem convertidos integralmente em cédulas e moedas
metálicas. Tudo o que os investidores podem fazer é transferir dígitos
eletrônicos de um lugar para outro. E só. Não há como sair dos
dígitos eletrônicos.
O Banco Central da Suíça, por exemplo, já
anunciou que os bancos não mais têm de fornecer cédulas para nenhum
fundo de investimento que queira sacar dinheiro. Uma empresa de seguros
tentou fazer isso, mas o banco se recusou. O Banco Central da Suíça,
portanto, fez uma declaração ao mundo: ele deixou claro que não há como fugir
do dinheiro eletrônico digital.
Portanto, dado que não há como fugir desse arranjo
monetário e bancário, a única maneira de grandes investidores e grandes fundos
de investimento preservarem seu capital é investindo-o em ativos que é, ao menos em tese, são considerados
seguros e até mesmo "livre de riscos".
Ativos considerados seguros são os títulos da dívida
dos governos de países desenvolvidos. Já os ativos considerados "livres de
risco" são, principalmente, os títulos da dívida dos governos alemão, suíço,
holandês, austríaco e nórdicos. Para estes últimos é direcionada a maior fatia
do dinheiro dos grandes investidores e dos fundos de investimento europeus. O
restante está indo para os títulos de mais curto prazo dos outros governos da
Europa.
Adicionalmente, vale enfatizar que, em uma situação
em que as taxas de juros estão em queda, é possível
obter elevados ganhos de capital ao se comprar títulos de longo prazo: à
medida que os juros vão caindo ainda mais, os preços de
mercado desses títulos vão subindo.
Ou seja, se você comprar um título por $ 100, e os
juros caírem, você pode revender esse mesmo título por, digamos, $
102. Isso é uma taxa de retorno muito positiva, e nada negativa.
O que vem por aí
Tendo entendido agora que fundos de investimento e hedge funds não têm como converter em
papel-moeda todos os bilhões de euros sob sua administração — eles operam com
dígitos eletrônicos e esses dígitos eletrônicos podem apenas ser transferidos
de um lugar para outro —, fica mais fácil começar a entender o que se passa.
Mas por que então eles simplesmente não deixam esse
dinheiro parado em alguma conta-corrente de algum banco?
Em primeiro lugar, porque alguns bancos, obviamente,
também já passaram a impor "juros negativos" — ou seja, passaram a cobrar
juros de seus correntistas.
Na Alemanha, desde 2016, dois
grandes bancos passaram a praticar taxas de juros negativas sobre depósitos
acima de 100.000 euros. E não só de empresas, mas também de pessoas
físicas. Na Suíça, alguns bancos também já estão
fazendo o mesmo. Nada garante que a prática não irá se disseminar.
Mas isso ainda é o de menos. Ao menos por enquanto,
a grande maioria dos bancos europeus ainda não adotou essa prática. Logo, a
pergunta permanece: por que então os grandes investidores e fundos de
investimento simplesmente não deixam esse dinheiro parado em alguma conta-corrente
de algum banco?
É aí que a encrenca se revela. A julgar pelas
atitudes destes investidores, tudo indica que, no mínimo, eles não estão
seguros nem quanto à solidez dos bancos europeus e nem quanto à situação da
economia europeia.
Falando mais claramente, este fenômeno que está
ocorrendo na Europa indica que:
1. Estes grandes
investidores acreditam que uma crise econômica se aproxima, o que tende a
afetar os bancos.
2-a. Como
consequência, há uma grande desconfiança em relação ao sistema bancário
europeu. Assim como
ocorreu no Chipre, caso os bancos europeus quebrem não mais haverá pacotes
de socorro com dinheiro público; os próprios correntistas é que terão de
socorrer seus respectivos bancos.
2-b.
As regras da União Europeia, desde janeiro de 2016, proíbem resgates bancários
com dinheiro de impostos ("bail-outs"), permitindo somente os
"bail-ins", que é quando o dinheiro dos correntistas do próprio banco
é utilizado para recapitalizar o banco insolvente.
Em termos práticos, o dinheiro que está nas
contas-correntes, nas contas-poupança ou em CDBs é confiscado e incorporado ao
patrimônio líquido do banco, aumentando seu capital. O dinheiro que até
então era contabilizado como um passivo para o banco torna-se um patrimônio
líquido do banco.
3. E dado que
os títulos públicos alemães, suíços, dinamarqueses, holandeses e austríacos são
vistos como mais seguros que quase todos os outros, é para eles que vai a maior
fatia do dinheiro.
Em um cenário de grandes incertezas econômicas e de
desconfiança em relação à solidez do sistema bancário, investidores racionais fazem
exatamente o que já estão fazendo agora: eles direcionam seu capital para
aqueles ativos mais seguros e mais líquidos que existem, mesmo que para isso
tenham de pagar uma taxa (os juros negativos).
E eles pagam alegremente essa taxa, desde que ela lhes
garanta proteção.
Mais ainda: caso os juros caiam ainda mais — o que
significa que o preço dos títulos está subindo — é possível auferir grandes
lucros. E tudo indica que os juros seguirão caindo.
Logo, é uma situação ótima do ponto de vista racional: você está em um porto
seguro e ainda tem boas chances de lucrar.
Os grandes investidores já perceberam que os Bancos
Centrais, principalmente
o europeu, não só não deixarão as taxas de juros de longo prazo subir, como
ainda estão trabalhando para reduzi-las. Os BCs estão recorrendo a todos
os tipos de heterodoxias monetárias — desde a compra de títulos
governamentais de longo prazo até a compra de todos os tipos de debêntures
emitidos por empresas — para tentar manter baixas todas as taxas de
juros de longo prazo.
O Japão foi o primeiro a fazer isso. Começou
ainda no início da década de 2000. Após 2008, o Fed fez o mesmo (mas interrompeu essa política
em 2014). O Banco Central Europeu entrou na onda em 2010. O Banco
Central da Suíça fez coro a partir do final de 2011.
E, dado que as taxas de longo prazo tendem a se
manter em queda, faz total sentido para os grandes investidores europeus
continuar comprando títulos públicos.
Logo, eles estão fazendo exatamente o que qualquer
investidor racional faria em épocas de grande incerteza: estão tentando manter
seu principal.
Eles querem receber de volta o máximo possível do
valor total de que eles inicialmente abriram mão. Para isso, aceitam pagar
aos governos uma "taxa de custódia": afinal, é melhor aplicar em
títulos públicos e, na pior das hipóteses, pagar uma taxa por isso do que
aplicar em bancos e ver esses bancos quebrarem em uma nova recessão e eles
serem obrigados a abrir mão do seu dinheiro para socorrer os bancos.
E há também um bônus: caso tudo "dê certo" — isto é,
caso os juros destes títulos públicos continuem caindo —, ainda é possível auferir
um bom lucro com a venda antecipada destes títulos.
Isso não ocorre nos EUA
Nos EUA, há um serviço privado que não existe na
Europa. São as
contas CDARS (Certificate of Deposit Account Registry
Service).
Quando você coloca seu dinheiro em um CDARS,
ele divide esse
dinheiro em várias contas bancárias entre mais de 3 mil bancos
diferentes. Cada conta bancária fica dentro do limite de US$ 250.000
garantido pelo FDIC (o FGC americano) em caso de quebra bancária.
Ou seja, por meio dos CDARS, os milionários e
bilionários americanos podem dividir suas fortunas em mais de 3 mil bancos
distintos, em montantes que não ultrapassam US$ 250.000 por banco, de modo que
o montante total acaba contando com a cobertura da FDIC. Assim, eles têm a
segurança de que serão totalmente restituídos em caso de quebras bancárias, não
perdendo nem um centavo.
Na Europa, tal serviço não existe. Consequentemente,
todos correm para os títulos dos governos, principalmente alemão, suíço e
nórdico, o que os empurra para o negativo. Já nos EUA, não há esta urgência.
E este é um
dos fatores por que os títulos públicos americanos nunca
entraram no negativo (outro fator é o fato de que o Fed nunca embarcou na
bizarrice de impor taxas de juros negativas sobre toda e qualquer quantidade de
dinheiro que os bancos comerciais depositam nele, como faz o Banco Central
Europeu).
Conclusão
As taxas de juros que os grandes investidores
europeus estão pagando aos governos europeus em troca de seus
títulos nada mais são do que um seguro contra uma recessão e contra uma
eventual insolvência bancária durante esta recessão. Tal atitude faz
sentido.
O fato de que milionários e bilionários estão
pagando para emprestar dinheiro aos governos europeus indica que há um
crescente temor de que haverá uma contração na economia européia. E eles
imaginam que esta contração tende a ser aguda.
Títulos públicos de vários países (inclusive
Portugal, Espanha e Itália) com juros negativos podem ser um indicativo de um
amplo temor entre os grandes investidores de que está se avizinhando algo semelhante
à crise de 2008-2009.
"Melhor uma perda pequena e segura do que uma perda
enorme e altamente provável" tornou-se o mantra entre os grandes
investidores europeus.
Trata-se de uma reação perfeitamente sensata a um
cenário pós-2008.
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