Há algumas
décadas, o Brasil vive o dilema da, assim chamada, legalização dos jogos.
Algumas dezenas de projetos de lei já foram apresentados e alguns ainda
encontram-se em discussão no Congresso.
Antes da
abordagem, algumas premissas precisam ser esclarecidas.
1.
O jogo no Brasil não é proibido.
A proibição aos
jogos de azar no país é dirigida apenas à iniciativa privada. A Lei das
Contravenções Penais proíbe os jogos de azar gerenciados pela iniciativa
privada.
Os jogos de
Loteria são permitidos, desde que sob o monopólio tanto do governo federal (via
Caixa
Econômica Federal) e dos governos estaduais (a Loterj é a
mais famosa).
Como diz o velho
bordão liberal, "o estado odeia a concorrência".
A realidade, no
entanto, é que quase todos os jogos lotéricos (mal) explorados pela Caixa
Econômica Federal são jogos de azar,
nos termos em que a Lei das Contravenções define: jogos em que o resultado
depende única ou preponderantemente da sorte.
Ou seja, na
prática, o que se tem não é uma proibição do jogo no Brasil, mas sim um
monopólio estatal do jogo. Talvez aqui tenhamos uma parte da explicação do motivo
de não se abrir a legislação do jogo no país: o estado odeia a concorrência.
2.
A existência das loterias estaduais vem sendo reiteradamente restringida desde
o Decreto
Lei 204/67 até a — juridicamente questionável — Súmula
Vinculante 2 do Supremo Tribunal Federal.
Na prática,
portanto, também no setor de jogos, o modelo federativo previsto na
Constituição Federal não se aplica. Somente a União legisla sobre "consórcios e
sorteios" — o que, para o STF, são sinônimos de jogos e loterias.
Hoje, há apenas quatro
loterias estaduais em funcionamento: LOTERJ, LEMG, LOTEP e LOTECE. As outras
loterias estaduais abolidas foram ocupadas por títulos de capitalização,
pecúlio ou seguros premiados com sorteios lastreados na Loteria Federal
Ou seja, nosso
sistema "federativo" entende lícito um jogo de azar federal e ilícito o mesmo
jogo explorado pelas loterias dos Estados. Nossa federação definitivamente é de
"fachada".
3.
Por uma definição da legislação dos anos 1930 do século passado (Decreto
nº 21.143, de 10 de Março de 1932), a atividade lotérica é um "serviço
público" (artigo 20).
Embora a
pesquisa aos cânones da teoria do serviço público não nos dê nenhum socorro a
esta definição, o fato é que assim está definido. No entanto, trata-se de uma atividade
econômica típica e deveria estar submetida aos princípios constitucionais da
economia de mercado, da livre concorrência, da liberdade de iniciativa e da propriedade
privada. Sendo repetitivo, o governo odeia concorrência.
O
que pode ser feito
Dito isto, retornemos
às tentativas de ampliação do direito à exploração do jogo no Brasil.
Já caracterizado
o monopólio federal dos jogos e loterias, alguns muitos desencontros no seio
das agências governamentais (aqui usado o termo em sentido amplo) têm sido
permanentes. A lição do sociólogo Max Weber é útil: os estamentos burocráticos
tendem a estabelecer suas pautas, independentemente do estado e dos governos.
A burocracia
estável tende a tornar-se
autônoma do estado que a criou e das demais agências "concorrentes". Elas
assumem interesses próprios, dirigidos à sua sobrevivência como casta estatal.
Aqui merecem menção a Caixa (banco estatal monopolista), a Receita Federal, o
Ministério da Fazenda, o Ministério Público, e outros órgãos que existem e que
já existiram (veja um exemplo aqui).
Neste cipoal
institucional, não é de se admirar que os projetos de "legalização" do jogo
sejam contaminados por esses males de origem: o dirigismo estatal e o confronto
entre agências públicas pelo protagonismo regulatório.
Eis como ocorre.
As discussões em
relação a detalhes que dizem respeito à lógica do mercado são levadas para o
Congresso Nacional. Lá, busca-se uma legislação extremamente detalhista para
ordenar o jogo privado, em um país continental com uma estrutura formal
federativa. Para dar um exemplo: discute-se a regulamentação de um modelo de
cassino-resort a ser adotado em todo o
Brasil, com a especificação do mínimo de quartos e de locais para
entretenimento e lazer.
Como isso tem
chance de dar certo neste país imenso? Razoável seria que cada estado da
federação optasse por sua fórmula de regulação — genérica, bastante genérica.
A velha e boa
lógica de mercado deve ser aplicada a uma indústria que possui naturalmente
concorrência e que não vai — e nem deveria poder — ter acesso a financiamento
com dinheiro público. Falamos de dinheiro privado gerido e operado por
entidades privadas.
Assim sendo, uma
proposta de "regulação" para o jogo privado no Brasil deve ser minimalista:
impor o mínimo e deixar que os agentes privados se ocupem de gerar renda,
emprego e impostos. Afinal, como seria possível aplicar um "choque de
capitalismo" neste mercado regulado, monopolista e estatal?
Uma regulação
que visasse a liberar as forças produtivas para trabalhar precisaria de apenas quatro
normas:
a) a revogação
do Decreto-Lei
nº 9.215 de 30 de abril de 1946 que supôs abolir o jogo no Brasil por ser
"degradante" para o ser humano;
b) a revogação
dos artigos 50 a 58 do Decreto-Lei
nº3.688 de 3 de outubro de 1941 ( Lei de Contravenções Penais);
c)
reconhecimento do status de atividade econômica à atividade de jogo, superando
a extravagante classificação de "serviço público"; e
d) delegação aos
estados para que, no âmbito de seus territórios, regulamentem a atividade. Isso
é o genuíno federalismo.
Essa fórmula
poderá superar o excesso de preciosismo de que padecem os projetos de lei até
aqui apresentados e certamente começará a dar frutos imediatos em termos de
criação de renda e empregos (não é isso que o governo quer?), permitindo que as
empresas, submetidas aos princípios da atividade econômica, se adaptem muito
mais agilmente às especificidades sócio-culturais de cada região do país.
Conclusão
Jogos são uma
atividade econômica como qualquer outra: envolvem riscos e há tanto chances de
ganho quanto de perda. Não são mais arriscados do que abrir uma padaria, um salão
de beleza (há alguma garantia de sucesso nesses empreendimentos?) ou aplicar
dinheiro a curto prazo na bolsa de valores.
Acima de tudo:
absolutamente ninguém é obrigado a participar. Só joga quem quer. Proibir
pessoas de jogar (o que significa proibi-las da possibilidade de ganhar
dinheiro), além de ser um paternalismo rasteiro, representa um atentado à
liberdade mais básica do indivíduo.