segunda-feira, 9 jul 2018
Eis um cenário:
Estou precisando de dinheiro. Algo em torno de R$
800. Você me oferece esse valor emprestado com a condição de que eu lhe devolva
R$ 1.000 daqui a dois anos.
Aceito a proposta.
Passam-se dois anos e, como combinado, eu lhe
devolvo R$ 1.000.
Pois bem.
Primeira pergunta: qual foi o valor monetário que
paguei de juros para você? Correto, R$ 200.
Segunda pergunta: qual seria a sua reação se, no
momento da quitação do empréstimo, eu reclamasse dizendo que você está me
gerando uma despesa de R$ 1.000?
Em outras palavras, como você reagiria se eu
reclamasse dizendo que a quitação deste empréstimo gerou uma redução de R$
1.000 em minha renda disponível?
Faz sentido eu dizer que o meu gasto total com essa
dívida foi de R$ 1.000?
O
que é seu e o que é meu
Repare: você me emprestou R$ 800 e eu, depois de 2
anos, devolvi R$ 1.000. Destes R$ 1.000, R$ 800 eram seus. Esses R$ 800 são um valor que eu nem sequer teria se você
não os tivesse me emprestado. Eles são a quantia que você me emprestou e que
eu, agora, estou devolvendo.
Logo, o que eu realmente estou pagando a mais, e que
não eram originalmente seus, são os R$ 200 de juros.
Portanto, não faz sentido eu dizer que a minha
despesa com a dívida foi de R$ 1.000.
De novo: dos R$ 1.000 que devolvi para você, R$ 800
eram originalmente seus. Eu não teria
estes R$ 800 se não fosse pelo seu empréstimo. Eu não teria como gastar R$ 800 se não fosse por você. Logo, devolver
os R$ 800 que eram seus e que nunca foram meus não pode ser considerado uma
despesa que irá consumir parte da minha renda. Esse dinheiro nunca foi meu. Não
faz sentido computar como gasto o simples retorno de algo que não é meu.
Portanto, dos R$ 1.000 que paguei para você, apenas
R$ 200 são realmente um gasto que irá afetar a minha renda.
Logo, minha verdadeira despesa com o serviço da
dívida — no caso, a amortização total do empréstimo — é de R$ 200, e não de
R$ 1.000.
O
mesmo vale para uma amortização prematura
Continuemos com este mesmo cenário.
Se você me empresta R$ 800 e eu prometo devolver R$
1.000 daqui a dois anos, então temos que a taxa de juros total durantes estes
dois anos é de 25%.
E 25% de juros durante dois anos equivalem a 11,80%
ao ano.
Pois bem.
Imagine que, depois de um ano, eu lhe ofereça R$ 900
para quitar todo o empréstimo. Ou seja, você me emprestou R$ 800 e eu, após um
ano, ofereço devolver R$ 900 para encerrar a dívida.
R$ 900 sobre R$ 800 representam um ganho de 12,5% ao
ano, que é mais que a taxa de juros original (que era de 11,80% ao ano). Sendo
assim, você aceita a proposta.
Nova pergunta: qual foi a minha despesa com a
dívida? Exato, apenas R$ 100. E não R$ 900.
Dos R$ 900 que paguei para você, R$ 800 eram seus e
estou apenas devolvendo. Eu não teria como gastar esses R$ 800 se não fosse por
você. Já os outros R$ 100 eu realmente tive de arranjar, e eles, de fato,
representam uma despesa que afeta minha renda disponível.
Vamos agora ao último exemplo.
Refinanciamento
Suponha agora que, no dia de quitar a dívida, eu não
tenha em mãos os R$ 1.000 para dar para você.
Porém, como tenho vários amigos, recorro a outro
amigo e peço R$ 1.000 emprestados.
Ato contínuo, corro até você e lhe dou os R$ 1.000 e
você fica satisfeito.
Observe que, neste cenário, duas coisas ocorreram:
1) Minha dívida não se alterou. Não houve
amortização porque minha dívida total permaneceu a mesma. Eu apenas troquei de
credor. Quitei meu empréstimo com você, mas agora terei de me virar com outro
credor.
2) Ao contrário do que ocorre na amortização, não
tive nenhuma despesa aqui.
Simplesmente peguei dinheiro emprestado para saldar uma dívida que estava vencendo.
Nada saiu do meu orçamento. Minha capacidade de gasto presente não foi afetada.
Isso se chama refinanciar a dívida.
Entendido tudo isso, vamos agora à prática.
Demagogia
e má fé
Populistas
e demagogos que dizem que o governo federal brasileiro gasta
metade do seu orçamento com a dívida pública estão incorrendo no erro —
extremamente amador — ilustrado acima. Eles misturam no mesmo balaio gasto com
juros, amortização e refinanciamento.
Isso é ou ignorância ou má fé.
Vamos aos dados.
O quadro a seguir, retirado do site
do Tesouro e com dados do SIAFI (Sistema Integrado de
Administração Financeira do Governo Federal) (link
aqui),
resume todas as despesas do governo federal no ano de 2017.

Comecemos pelo básico.
As rubricas que mais interessam são "Juros e
Encargos da Dívida", "Amortização da Dívida" e "Amortização da Dívida —
Refinanciamento".
A rubrica "Juros
e Encargos da Dívida" se refere, como o próprio nome diz, aos juros que o
governo paga sobre determinados títulos. Quem opera Tesouro
Direto sabe que há títulos que pagam juros a cada 6 meses
e há títulos que não pagam esses juros semestrais, pois pagam tudo (principal
mais juros) na data de vencimento. Essa rubrica "juros e encargos da dívida" se
refere exclusivamente aos títulos que pagam juros semestralmente.
Já a rubrica "Amortização
da Dívida" se refere exatamente à prática ilustrada no exemplo do início
deste artigo. É quando o governo quita parte da sua dívida, recomprando títulos
em posse de investidores (pode ser na exata data do vencimento ou pode ser uma
amortização prematura). Como descrito no exemplo, ao fazer isso, o governo paga
principal mais juros. Pagar o principal é apenas retornar ao proprietário
aquilo que não é dele (do governo). O governo não teria como gastar não fosse o
empréstimo desse principal. Já os juros, de fato, podem ser considerados "uma
despesa que afeta o orçamento".
Por fim, a rubrica "Amortização da Dívida — Refinanciamento" se refere também àquilo
que foi descrito no exemplo acima. É quando o governo "rola a dívida", ou seja,
quando ele se endivida para quitar outra dívida. Neste caso, a dívida total não
se altera. Tampouco se pode dizer que foi uma despesa que afetou o orçamento do
governo, pois ele pegou emprestado um dinheiro que não estava em seu orçamento
para quitar essa dívida. Ele não usou nenhum dinheiro de imposto para fazer
essa rolagem.
Tendo entendido isso, a lógica nos permite concluir
que a real despesa do governo com o serviço da dívida envolve apenas aqueles
gastos com juros, e não com principal ou com rolagem. Dado que o governo nem
sequer teria como gastar se não houvesse pegado emprestado o principal, a
simples devolução deste principal não pode ser considerada uma despesa
adicional. E dado que a rolagem da dívida é feita com mais empréstimos, e não com
dinheiro do orçamento, não se pode dizer que tal prática representa um gasto do
orçamento do governo.
Portanto, a real despesa do governo com o serviço da
dívida seria a rubrica "Juros e Encargos
da Dívida" mais uma parte (apenas
os juros) da rubrica "Amortização da
Dívida".
Porém, dado que a rubrica amortização envolve o
pagamento tanto de principal quanto de juros, é impossível separar ali o que é
principal e o que é juros.
Por isso, pelo bem do debate, vamos fazer uma
estimativa completamente exagerada e
supor que, daquele valor amortizado (R$ 320,4 bilhões), 50% são juros. De novo,
isso é extremamente exagerado, mas vamos supor assim pelo bem do debate.
Temos, portanto, que, em 2017, as reais despesas do
governo com a dívida foram de R$ 203,11 bilhões (rubrica "Juros e Encargos da Dívida") + R$ 160,20 bilhões (metade da rubrica
"Amortização da Dívida") = R$ 363,31 bilhões.
Dado que as despesas totais do governo (excluindo
refinanciamento) foram de R$ 2 trilhões,
temos que os gastos com o serviço da dívida, em uma estimativa bastante
exagerada, representaram 18% dos gastos
totais do governo.
É muito? Sim, é muito, mas bem menos do que gritam
os demagogos, que afirmam
que os gastos com a dívida representam metade do orçamento do governo.
E, ainda que você cometesse o erro técnico de somar a
totalidade das amortizações, isso daria um total de R$ 523 bilhões. Logo, ainda assim você
teria uma despesa com a dívida que seria de 26%
do orçamento.
Alta? Bastante. Mas ainda muito longe dos 50%
gritado pelos populistas.
E como então eles chegaram a esse valor de 50%?
Simples: eles somaram tudo (juros e encargos mais amortizações e mais
refinanciamento) e dividiram por R$ 2 trilhões (que é uma despesa que exclui o refinanciamento, o que deixa o
denominador menor).
Aí dá 49% do orçamento do governo. Uma total
impostura intelectual.
Conclusão
Vale ressaltar quatro obviedades:
1) Devolver o principal é devolver algo que nunca
foi seu. Mais ainda: é devolver um valor que você nem sequer teria gasto caso
não tivesse conseguido emprestado.
Mas isso ainda é o de menos.
2) A despesa do governo com os juros da dívida é de
18% do orçamento. É muito? Bastante. De cada 5 reais, aproximadamente um real vai para os juros.
Mas isso é muito menor do que os 50% dito pelos
demagogos.
3) Mesmo que
você cometa o erro de considerar a totalidade das amortizações como
"despesa com a dívida", essa despesa equivalerá a 26% do orçamento. Isso
significa que, de cada R$ 5, R$ 1,30 vai para juros e amortização.
Mas agora vem o que realmente importa.
4) O governo gasta muito com os juros da dívida
porque se endividou muito. E ele se endividou muito porque gastou mais do que
arrecadou. E ele gastou mais do que arrecadou exatamente porque adotou as
políticas populistas defendidas por esses mesmos demagogos que criticam os
gastos com juros.
A dívida não surgiu do nada. Ela é a simples e
inevitável consequência dos gastos. Foi exatamente para gastar mais que o
governo se endividou.
Defender mais gastos públicos por meio de um estado
intervencionista e onipresente — como fazem os demagogos e
populistas —, mas xingar as consequências desses gastos (aumento da dívida e das despesas com juros) é sintoma de dissonância cognitiva.
É atitude de quem não compreende nem mesmo o
princípio mais elementar da matemática contábil.