Imagine que um novo presidente tome posse sob a
promessa de que irá colocar os interesses de seu país em primeiro lugar. A
última coisa que você poderia esperar é que esse próprio governo fosse executar
um impiedoso ataque frontal a uma das mais icônicas empresas do país.
É exatamente isso o que está acontecendo entre o
presidente americano Donald Trump — que adotou o slogan America First — e a mais icônica fabricante de motocicletas dos
EUA, a Harley-Davidson.
Eis o que houve.
No início de junho, como já era esperado, entraram
em vigor as tarifas aplicadas pelos EUA à importação de aço e alumínio oriundos
da União Europeia. O aço importado passou a ser tarifado em 25% e o alumínio, em 10%.
Além de ser uma medida que não faz nenhum sentido
econômico, o próprio Pentágono
veio a público se manifestar contra as tarifas afirmando que elas não
apenas nada fariam pela segurança nacional, como ainda prejudicariam as
próprias empresas americanas produtoras de equipamentos bélicos para a defesa
nacional.
Ato contínuo, a União Europeia, também como
esperado, decidiu revidar: no dia 22 de junho, anunciou o aumento das alíquotas
sobre a importação de vários produtos americanos, dentre eles as motocicletas
Harley-Davidson, cujas tarifas de importação subiram
de 6% para 31%.
E aí a Harley anunciou
que irá fechar uma parte da sua produção nos EUA e se mudar para a Tailândia,
de onde poderá produzir para exportar para a União Europeia sem estar submetida
a esta nova tarifa de 31%. Essa mudança será completada em um prazo de 18
meses.
Em um comunicado aos acionistas, a direção da
empresa afirmou
que as motocicletas exportadas à União Europeia desde os EUA teriam, a partir
de agora, um custo médio de US$ 2,2 mil a mais, motivo pelo qual decidiu que é
mais efetivo fabricá-las fora do país. Disse ela:
Aumentar a produção internacional para aliviar
a carga tarifária da UE não é a preferência da companhia, mas representa a
única opção sustentada para fazer com que as suas motocicletas sejam acessíveis
para os clientes na UE e para manter um negócio viável na Europa. [...]
O tremendo aumento de custos, se for transferido às
concessionárias e aos clientes no varejo, teria um impacto prejudicial imediato
e durável para o negócio, reduzindo o acesso aos nossos produtos e afetando
negativamente a sustentabilidade das concessionárias.
Essa decisão de mudar a fábrica para manter os
preços baixos e preservar a lucratividade da empresa não apenas faz total
sentido econômico, como também é uma questão de respeito à propriedade privada:
é o direito de qualquer empresas privada (em uma sociedade livre) escolher sua
localização e, principalmente, qual a melhor estratégia de produção.
Mas Trump, obviamente, não gostou. E foi para o
Twitter. De início, usou um tom até relativamente brando:

"Surpreso
que a Harley-Davidon, logo ela, tenha sido a primeira a se render e a balançar
a bandeira branca. Lutei duro por eles e, no final, não irão pagar tarifas
vendendo para a União Europeia, a qual nos prejudica bastante no comércio, com
quem temos um déficit comercial de US$ 151 bilhões. Impostos soa apenas uma
desculpa da Harley — sejam pacientes! #MAGA (Make America Great Again)"
Depois, o tom subiu, e ele ameaçou tributar a
empresa "como nunca antes".

"Uma
Harley-Davidson jamais deveria ser construída em outro país — nunca! Seus
empregados e consumidores já estão muito zangados com eles. Se eles se mudarem,
observem, será o começo do fim — eles se renderam, eles se entregaram! A Aura
irá acabar e eles serão tributados como nunca antes!"
Os investidores e acionistas, é claro, não gostaram
nada desse ataque. Os preços das ações caíram. À primeira vista, parece um
comportamento estranho para um presidente que dizia colocar a América em
Primeiro Lugar, mas o fato é que já estamos ficando acostumados a esperar o
inesperado das intervenções governamentais feitas pela Casa Branca no comércio
exterior.
Por ora, as maiores vítimas dessa beligerância
comercial estão sendo os exportadores americanos de bens de consumo, os
importadores americanos de matérias-primas, e os próprios consumidores
americanos e europeus, que são quem, em última instância, irão pagar esses
impostos rotulados de tarifas.
No entanto, para quem é fã de Trump, eis a seguir
alguns argumentos em sua defesa. E contra a Harley.
Uma
história de intervenção
Não, a Harley-Davidson não é inocente. Ela possui um
histórico de envolvimento com o governo.
Trump não é o primeiro presidente a intervir, mas pode ser o primeiro a
direcionar o poder do governo contra
a empresa, e não a favor.
No dia 2 de abril de 1983, o presidente Ronald
Reagan ordenou
que a tarifa de importação para motocicletas com cilindrada acima de 700 cm3
[as famosas "700 cilindradas"], nicho em que apenas a Harley-Davidson atuava,
fosse elevada de 4,4% para 49,4%, um aumento de mais de dez vezes, equivalente
a 45 pontos percentuais. O objetivo óbvio era proteger a Harley da concorrência
estrangeira, majoritariamente japonesa.
As tarifas foram criadas já com uma programação
pré-definida: seriam reduzidas para 39,4% em 1984; 24,4% em 1985; 19,4% em
1986; 14,4% em 1987; e finalmente voltariam aos 4,4% originais em 1988.
Em defesa da Harley, pode-se apenas dizer que, em
1987, quando a tarifa deveria ser de 14,4%, ela própria veio a público e espontaneamente
pediu
para o governo abolir essa ajuda tarifária, voltando para os 4,4%
originais.
Já em 2008, no auge da crise financeira americana,
a Harley voltou a passar dificuldades. Documentos posteriormente liberados pelo
Federal Reserve (o Banco Central americano) revelaram quem se beneficiou de um programa
de empréstimos feitos pelo Fed durante a crise (o Fed comprava títulos das
empresas e elas tinham até abril de 2010 para quitar).
Os dados mostram quem pediu e quem recebeu. A
Harley-Davidson recorreu
ao programa em nada menos que 33 ocasiões entre 2008 e 2009. Quanto ela recebeu? Ao todo, incríveis US$ 2,3
bilhões.
Após todos esses esforços, benefícios e protecionismos,
nada poderia preparar a empresa para lidar com uma perda substantiva do seu mercado
estrangeiro. Por isso a empresa anunciou que irá transferir parte da sua
produção para outro país em decorrência do aumento de custos trazido pelas
tarifas retaliatórias impostas pela UE em resposta às tarifas do governo
americano sobre o aço e o alumínio.
A Harley possui fábricas no Brasil, na Índia, na
Austrália e na Tailândia. Isso traz duas vantagens à empresa: de um lado,
permite que ela evite as altas tarifas de importação impostas por esses países,
podendo agora vender para estes mercados sem ser taxada; de outro, essas mesmas
tarifas de importação garantem à empresa uma grande reserva de mercado nestes
países, pois a população local não pode importar motos de seus concorrentes
estrangeiros. Um ótimo arranjo para a empresa.
A empresa também anunciou que pretenda aumentar em
50% sua participação internacional até 2027.
Atirando
no próprio pé
No final, eis uma previsão que não tem como errar:
toda e qualquer ação governamental sempre irá gerar consequências que são
opostas ao declarado objetivo da intervenção. Se você duvida, apenas olhe a
intervenção do governo americano na área da saúde. Ainda não foi encontrado
ninguém que realmente
acredite que o Obamacare resultou em um arranjo melhor.
O mesmo é válido para as tarifas de importação. A
intenção declarada é facilitar a vida das empresas, mas o resultado é um
completo desarranjo na cadeia global de fornecedores. As indústrias domésticas
têm de pagar mais por insumos, matérias-primas e maquinários. Consequentemente,
elas têm de alterar sua estrutura de produção em decorrência destes custos
maiores. Sua margem de lucro cai. Para piorar, elas ainda perdem uma fatia do mercado,
pois os outros países, em retaliação, também adotam tarifas.
Tudo isso já havia acontecido com as tarifas
de Bush e de Obama. Ambos, ao menos, reconheceram seus erros e as aboliram.
Trump, por sua vez, é um espécime totalmente diferente. Ele é muito menos
previsível. Embora ele sempre diga que quer "chegar a um acordo", suas
declarações fazem com que "chegar a um acordo" seja algo impossível, pois ele
vive alterando o conteúdo e a essência dos termos.
No entanto, não se pode dizer que essa postura de
Trump seja uma surpresa. Ele passou toda a sua campanha fazendo do nacionalismo
o tema central de sua agenda. Uma guerra comercial era exatamente o que ele
sempre quis. Ele abertamente declarou que "guerras
comerciais são boas e fáceis de ganhar". O problema é que a realidade
econômica, além de nunca aceitar desaforos, não pode ser alterada por meras
frases de efeito.
E eis a realidade econômica: empresas americanas que
querem continuar operando de maneira viável, mesmo que isso agora exija uma
realocação de fábricas para outros países, estão sendo ameaçadas de violência
pelo mesmo presidente que disse que iria tornar a América grande novamente. A
Harley é apenas o exemplo mais recente. Desde que Trump assumiu a presidência, a
Amazon sempre foi um dos principais alvos de suas críticas. Antes da Amazon
foi a Apple, contra quem Trump, durante a campanha presidencial, demandou
um boicote por parte dos consumidores.
Desnecessário ressaltar que estas são grandes
empresas americanas, de modo que um ataque direto a elas contradiz seu
principal lema de campanha.
No entanto, quem é fã de Trump certamente irá ver
apenas bons motivos nestas suas ações, enxergando nelas algum tipo de
estratégia superior.
Conclusão
No final, sejamos perfeitamente claros quanto a um
ponto: a função de uma empresa é satisfazer seus consumidores e seus acionistas
de uma maneira que seja consistente com sua lucratividade.
Não é função de uma empresa sacrificar seus
resultados operacionais apenas para satisfazer as prioridades e os caprichos de
um político. De qualquer político.
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