Nos
EUA, desde o surgimento da internet até o ano de 2015, nunca houve uma queda de
investimentos no setor. A cada ano, os investimentos aumentavam em relação ao
ano anterior.
O
acesso à internet tornava-se cada vez mais amplo e universal, e a velocidade e
a qualidade do tráfego de dados melhoravam anualmente.
Em
2015, no entanto, os investimentos em banda larga caíram
6% em relação ao ano anterior. Foi a primeira vez que isso aconteceu. O que
houve?
Em
uma frase: imposição de regulação governamental voltada a proteger as empresas
estabelecidas. E tudo em nome de se estar "protegendo o consumidor".
Foi
em fevereiro de 2015 que a FCC (Federal Communications Commission,
agência do governo americano que regulamenta a área de telecomunicações e
radiodifusão) implantou
a neutralidade de rede no país. O então governo Obama decidiu que deveria "consertar"
um problema que sequer existia.
A
ideia da neutralidade
de rede soava bonita aos ouvidos dos leigos: o governo passaria a regular os
provedores
de serviços de internet (os ISPs) para que eles não impedissem o livre acesso
das pessoas à rede. Isso, inevitavelmente, gerou a pergunta: quem estava tendo
seu acesso à rede negado? Ninguém.
A
ideia vendida ao público era a de que os provedores estariam proibidos de
discriminar e restringir o conteúdo que trafegava nos cabos, e não podiam
cobrar preços diferenciados para cada conteúdo. Assim, uma pessoa que usa a
internet apenas para checar emails deveria pagar o mesmo tanto pelos serviços do
que aquela que usa a internet para ver filmes, ouvir musica e baixar volumosos
dados.
Na
prática, os provedores de serviços de internet ficaram proibidos de oferecer planos
de acesso específicos, ao gosto do consumidor. E ficaram também proibidos de cobrar
das empresas geradoras de tráfego (como Netflix, Skype, Youtube, Facebook,
Twitter, Amazon etc.) por esse serviço, o qual exige uma grande largura de
banda.
A
neutralidade de rede, portanto, determinou que os próprios provedores de
serviços de internet (ISPs) deveriam arcar com os altos custos desse serviço.
Fazendo
uma analogia, imagine que uma mobiliária pudesse obrigar as transportadoras a
arcar com todos os custos do envio de seus móveis. Por meio de um decreto
governamental, as transportadoras não poderiam cobrar preços distintos não
importa se elas estivessem transportando apenas uma simples cadeira ou todos os
móveis de uma mansão. As mobiliárias seriam a favor de tal
arranjo? Com toda a certeza. Elas até poderiam chamar isso de
"neutralidade de móveis" e ludibriar o público incitando-o a apoiar
essa lei, dizendo que, sem essa lei, as transportadoras passariam a controlar o
mercado de moveis.
Por
isso, a medida contou com o entusiasmado
e irrestrito apoio de todos os principais nomes do ramo de disponibilização
de conteúdo: Amazon, eBay, Facebook, Google, Microsoft, Netflix, Twitter e
Yahoo.
E
contou também com o apoio — embora mais silencioso — dos grandes provedores
de serviços de internet (ISPs), como Comcast e Verizon (mais sobre isso
abaixo).
A
oposição, por outro lado, foi representada por pessoas sem grande peso na
indústria, por provedores de hardware como a Cisco,
por institutos pró-livre mercado, por alguns intelectuais desengajados, e por
um pequeno grupo de articulistas e comentaristas que entendem um pouco sobre
liberdade e economia de livre mercado.
Em benefício dos grandes
O
efeito da neutralidade de rede, como ocorre em todas as regulamentações
governamentais, foi o de cartelizar a indústria e transformar um terreno até
então genuinamente livre e voluntário em um sistema gerenciado pelo governo.
O
exemplo mais explícito disso foi o ataque da FCC, ainda sob o governo Obama, à empresa
de telefonia celular T-Mobile. Por meio de seu programa Binge On, a
operadora estava oferecendo dados gratuitos para determinados serviços de transmissão
contínua de dados (streaming). A operadora
não cobrava pelos dados usados na transmissão de Netflix, Spotify, Hulu e de vários
outros serviços. Mas cobrava para YouTube. O governo disse que isso violava as
regras de neutralidade de rede e atentava contra o consumidor (o qual, vale
lembrar, voluntariamente optou por adquirir esse pacote).
Ou
seja, o governo, na prática, determinou que consumidores que querem receber
dados gratuitos de empresas que se dispõem a ofertá-los é algo ilegal. Mas, ué,
a lei não era para beneficiar o consumidor? Obviamente, a proibição à T-Mobile
de ofertar esse serviço era do interesse das grandes ISPs.
Eis o que realmente ocorreu: os grandes líderes da
mais emocionante e empolgante tecnologia do mundo se juntaram e decidiram fechar
o mercado em suas condições até então vigentes para se proteger de todos os
concorrentes — e potenciais concorrentes — que surgiam quase que diariamente
neste vibrante mercado. A imposição de uma regra contra a utilização do sistema
de preços de mercado como forma de alocar recursos de largura de banda foi uma
medida para proteger as empresas estabelecidas contra possíveis inovações que
iriam abalar seu domínio.
Aquilo que foi vendido como igualdade econômica e
um maravilhoso favor aos consumidores era na realidade um procedimento
operacional padrão por meio do qual as gigantes do setor estavam tentando acabar
com ameaças da concorrência ao seu poder de mercado.
A posição das grandes empresas geradoras de tráfego
é fácil de entender. Como já dito, Netflix, Amazon e todas as outras grandes
não queriam que os provedores de serviço de internet (ISPs) cobrassem nem delas
nem de seus consumidores pelo conteúdo que elas transmitem, o qual exige uma
grande largura de banda. Elas queriam que os próprios ISPs arcassem com os
altos custos desse serviço. Neste caso, o benefício é óbvio: pedir ao governo
para tornar ilegal a discriminação de preços era do interesse dessas
empresas. Significa que não haveria ameaças ao seu modelo de negócios.
Mas isso ainda não responde a questão de por que as
ISPs não se opuseram severamente à neutralidade de rede. Nesse ponto, as
coisas ficam mais complexas. Após vários anos de experimentos na oferta de
serviços de internet — saímos da internet discada para a de linha fixa, depois
para as conexões T1 e hoje já estamos na 4G e 5G —, o vencedor no mercado (por
enquanto) tem sido as empresas de TV a cabo. Os consumidores estão demonstrando
preferir a velocidade e a largura de banda em detrimento de todas as
alternativas.
Mas, e quanto ao futuro? Que tipo de serviços
irá substituir os serviços de TV a cabo, os quais são oligopólios protegidos
pelo estado? É difícil saber com exatidão, mas já há algumas ideias interessantes
sendo ventiladas. Os custos estão caindo para todos os tipos de serviços
wireless e até mesmo para sistemas
distribuídos.
Sendo assim, se você é um agente dominante no mercado — nos EUA, Comcast (TV a cabo)
e Verizon (telecomunicações); no Brasil, Claro e Vivo —, você lida com
duas ameaças ao seu modelo de negócios. Você tem de manter sua atual base
de clientes e você tem de se proteger contra novos entrantes que querem
capturar uma fatia de sua clientela. Neste cenário, a imposição da
neutralidade de rede pode até elevar seus custos, mas há um esplêndido efeito
positivo: seus potenciais concorrentes futuros também terão de lidar com esses
mesmos custos.
Você, sendo um agente já estabelecido no mercado e
usufruindo uma grande clientela cativa, está em uma posição muito mais
privilegiada para absorver esses custos. Já seus potenciais concorrentes,
ao contrário, não terão capital para absorver esses custos. Isso significa
que você pode até reduzir seus planos de desenvolvimento, esfriar seus planos
de investimentos em fibras óticas, e se dar ao luxo de descansar sobre seus
louros. Sua fatia de
mercado está protegida.
E foi exatamente isso o que ocorreu nos EUA, com os
investimentos em banda larga caindo
6% em relação ao ano anterior pela primeira vez na história.
Mas como seria possível você vender a ideia desse
plano nefasto? Fazendo conluio com os reguladores. Você defende a ideia
como um todo, educadamente expressando algumas reservas, ao mesmo tempo em que
distorce a legislação ao seu favor. Você sabe perfeitamente bem que isso
elevará os custos para seus futuros concorrentes. Quando a legislação for
aprovada, você a classifica como sendo um voto "pela internet livre",
o qual irá "preservar o direito de se comunicar livremente online".
A neutralidade era uma enganação
Ao se analisar mais detidamente os efeitos, a
realidade se revela exatamente oposta: o mercado foi fechado para a
concorrência em geral, e o governo e seus aliados corporativos passaram a decidir
quem podia e quem não podia atuar no mercado. A legislação erigiu enormes
barreiras à entrada de novas empresas ao mesmo tempo em que vastamente subsidiava
as maiores e mais prósperas empresas fornecedoras de conteúdo.
E quais foram os custos para nós mortais? Não houve
nenhuma redução nos preços dos serviços de internet. Ao contrário: alguns preços
aumentaram e a concorrência diminuiu. Houve também a supracitada redução
no ritmo do desenvolvimento tecnológico devido à redução na concorrência. Em
outras palavras, tudo ocorreu como sempre ocorre com todas as outras
regulamentações governamentais: a maioria dos custos não foi percebida, e os
benefícios ficaram concentrados nas mãos das classes governantes e de seus
amigos corporativos.
E houve uma ameaça adicional: o governo reclassificou
a internet como um serviço de utilidade pública. Isso significou um cheque em
branco para o governo controlar o serviço completamente. Pense nos serviços
aéreos, que são regulados pelo governo e controlados por um cartel de empresas
ligadas ao governo, as quais não sofrem risco de concorrência externa para vôos
domésticos. Esse era o futuro da internet a sob a neutralidade de rede.
Conclusão
A neutralidade
de rede será abolida no dia 14 de dezembro de 2017. Que vá em paz. Nada mais de governo controlando a indústria. Nada mais
de controle de preços. Nada mais de grandes corporações usando
o poder do governo para proteger suas estruturas monopolistas.
É claro que o fim da neutralidade de rede não significará
um imediato surgimento de um mercado livre para serviços de internet. Mas é um
passo na direção certa. Se esse experimento durar, sem incertezas jurídicas, a tendência
é que haja uma entrada maciça de concorrência no setor. Haverá mais liberdade
de escolha para o consumidor, que poderá escolher entre uma variedade de
pacotes, dos minimalistas aos maximalistas, dependendo de como você usa o serviço.
Ou então você poderá escolher um plano que cobre apenas o que você consome, em
vez de ter de subsidiar aqueles que usam muito mais que você.
Com a abolição dos controles de preços, haverá
novos entrantes no mercado porque agora fará sentido investir para inovar. Os consumidores
terão mais poder em vez de ter de rastejar e implorar por serviços, sendo
obrigados a pagar aquilo que o fornecedor exige.
O fim da neutralidade de rede é, até então, a
melhor iniciativa de desregulamentação já tomada pelo governo Trump. Devemos sempre
aproveitar toda e qualquer desregulamentação que eventualmente ocorra. É algo
raro.
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