quarta-feira, 26 jul 2017
O método
da eleição pelo voto da maioria inevitavelmente aliena grandes fatias da
população. Sendo eu um cidadão suíço, estou perfeitamente ciente deste fato,
uma vez que nós suíços vamos às urnas seis vezes ao ano, em média, para votar
em referendos.
Este
talvez seja o preço necessário a se pagar por essa nossa forma mais direta de
democracia representativa. Porém, mesmo na Suíça, tal arranjo também levou a um
grau de turbulência emocional: sempre há, entre os eleitores, visões
conflituosas para a sociedade.
Obviamente,
quanto maior e mais diversificado o país, pior se torna este problema. Em
países de dimensões continentais — como EUA e Brasil — é extremamente comum
eleitores de um estado terem votado maciçamente em um candidato a presidente,
mas acabarem sendo contrariamente governados pelo outro candidato no qual não
votaram e rejeitam abertamente.
Isso
gera animosidades entre a população, a qual passa a se classificar (e a se
agredir) mutuamente em termos políticos. A animosidade gera ressentimentos, o
que leva a incivilidades e à restrição do progresso. As pessoas passam a se
preocupar demasiadamente com a política, o que afeta até mesmo seu bem-estar e
sua disposição para o trabalho. O próprio desenvolvimento econômico passa a ser
afetado.
Em termos mais específicos, alguém
realmente acredita que um estado social-democrata, multicultural e fisicamente
vasto, com mais de 200 milhões de pessoas, com interesses econômicos, sociais e
culturais bastante diversos, pode realmente ser gerenciado para sempre por
burocratas localizados em uma cidade isolada, sem que isso gere conflitos
sociais e disputas econômicas?
Nos EUA,
a recente eleição de Donald Trump suscitou discussões sobre uma possível
separação da Califórnia em relação ao resto do país.
Dado que uma considerável maioria de 61,5% dos californianos votou em Hillary
Clinton, muitos deles passaram a considerar a secessão uma resposta necessária
à presidência de Trump. Tal transferência de poder é, com efeito, totalmente
digna de apoio.
A melhor
maneira de se analisar a secessão é ver qual medida é a que melhor protege os
direitos mais básicos do indivíduo. E viver sob um governo de sua própria
escolha deve ser considerado um direito básico e inalienável.
As
pessoas não falam muito sobre isso, mas trata-se de um assunto extremamente
importante. Se você vive em um país ocidental, seu governo confisca algo entre
40 e 60% de sua renda, submete-lhe a milhares de regras e leis arbitrárias cuja
infração involuntária (com milhares de leis, você inevitavelmente descumprirá
algumas delas) fará de você um criminoso digno de ser encarcerado, e regula
absolutamente tudo — desde suas íntimas relações familiares até seus contratos
voluntários firmados no mercado.
Consequentemente,
sua relação com o governo será — goste você ou não — o mais significativo
relacionamento da sua vida: ninguém mais terá tanto poder e tanta autoridade
legal sobre você, ao ponto de inclusive colocá-lo na cadeia.
Sendo
assim, por que sua relação com seu governo não pode ser a mais consensual
possível?
Partindo-se
desta premissa, nada mais justo do que permitir às pessoas viverem sob um
governo que aprovem. Daí o direito à secessão em relação a um governo
centralizado.
Subsidiariedade e o direito à secessão
Por
séculos, juristas e estudiosos do assunto sempre reconheceram a importância do
direito à secessão tomando por base o direito natural. O calvinista alemão Johannes Althusius argumentou em sua obra Politica
(1603) que os cidadãos tinham o direito de abjurar obediência ao rei em caso de
abuso de poder. Para Althusius, a secessão representava uma restrição vertical
ao poder dos antigos estados absolutistas europeus. Mas também era um recurso
que não deveria ser utilizado de maneira afobada.
A
secessão, para Althusius e outros, deveria ser ultima ratio, isto é, um recurso apenas de última instância. Antes
disso, e acima de tudo, o estado deveria ser organizado de baixo para cima, de
acordo com o abrangente "princípio da subsidiariedade", do qual a secessão é
apenas uma parte.
Subsidiariedade
é um princípio de organização social, política e econômica. Advém do latim subsidium e significa "suporte",
"apoio", "reserva" ou "preservação". A subsidiariedade afirma que a sociedade é
primordialmente baseada na auto-determinação e na responsabilidade individual
de cada pessoa, de sua família, e das associações privadas de indivíduos
(cooperativas).
De
acordo com este princípio, o governo local deveria se envolver na solução de
problemas apenas e tão-somente se as organizações privadas forem incapazes de
resolvê-los por conta própria. Ademais, se o governo local for incapaz de fazer
isso, o governo regional assume a tarefa, ou apenas auxilia o governo local. E,
finalmente, o governo central — ou o monarca — intervém caso os estados
federados não consigam resolver a pendenga sozinhos.
Qualquer
nível mais alto de organização da sociedade deve estar subordinado a qualquer
nível mais abaixo. A principal vantagem de uma ordem de vários níveis é que,
neste arranjo, os indivíduos tomam decisões que afetam mais diretamente suas
vidas. Decisões delegadas a terceiros são tomadas o mais próximo possível dos
indivíduos, de modo que estes podem supervisionar todo o processo mais
facilmente.
A
subsidiariedade facilita enormemente um processo de "tentativa e erro", no qual
a regulação e a governança "concorrem" entre si dentro de um arcabouço liberal.
Como disse Friedrich Hayek em seu livro A Constituição da Liberdade:
É esta flexibilidade de regras voluntárias que,
no campo da moral, torna possíveis a evolução gradual e o crescimento
espontâneo. E estes, por sua vez, geram uma maior experiência, o que leva a
modificações e aprimoramentos contínuos.
Ou seja,
medidas e decisões que se comprovarem exitosas em um território poderão ser
adotadas por qualquer outra entidade ou autoridade territorial.
Apenas
este tipo de "fragmentação política" pode preservar a diversidade cultural no
longo prazo e, principalmente, levar à criação de instituições — como a
competição de idéias — que servem à liberdade individual.
A
principal constatação de Althusius foi a de que os níveis governamentais mais
elevados deveriam ser obrigados a depender do consentimento dos níveis mais
locais, bem como das associações voluntárias. Dado que os poderes dos níveis
mais altos são derivados do consentimento do povo, então o povo deve ter a
capacidade de revogar tal poder sempre que necessário.
As
idéias de Althusius sobre subsidiariedade política eram bastante radicais para
a sua época. Residindo em Emden, uma cidade alemã que era o centro das
atividades políticas e religiosas da época, as idéias de Althusius devem ser
interpretadas à luz da Revolta Calvinista holandesa contra o rei católico Filipe II de Espanha.
A Revolta efetivamente terminou em 1609 e resultou no "Milagre Holandês", um
período de forte crescimento econômico, científico e cultural, o qual durou um
século e ajudou a solidificar as bases para a ascensão do liberalismo
clássico.
Dois
séculos mais tarde, estas idéias encontraram solo fértil no continente
norte-americano com a revolta das treze colônias contra a Coroa Britânica. Em
1848, a Suíça estabeleceu
uma nova constituição que também incorporava o princípio da
subsidiariedade, a qual permanece em vigor até hoje.
O localismo é a solução inicial, mas o
separatismo é a solução suprema
As interações
e relações humanas deveriam ser de foro inteiramente privado. Se o governo for
se envolver, a autonomia dos níveis local e estadual deve ser a maior possível,
o que significa que todas as funções — exceto, talvez, defesa militar — devem
ser feitas por representantes locais ou estaduais.
Para
começar, o sistema tributário deve ser total e exclusivamente devolvido aos
níveis locais e estaduais. Consequentemente, cada estado deveria ser o
responsável único por suas receitas e gastos. Somente assim os cidadãos teriam
a dimensão exata da qualidade dos serviços estatais, e somente então eles
seriam sistematicamente capazes de monitorar os políticos de maneira sensata.
Assim,
sempre que um indivíduo discordar da política ou dos valores políticos do
estado em que ele vive, ele poderá "votar com seus pés", saindo daquele estado
e indo para o mais próximo. A concorrência entre os estados dar-se-ia por meio
dos incentivos tributários e regulatórios, com cada governo se esforçando para
criar um ambiente atraente para indivíduos produtivos.
Mas esse
federalismo pleno seria apenas o início. O
direito de se separar de um estado e criar outro deve ser o objetivo supremo.
Se você não gosta do governo sob o qual
vive, deve ter o direito de se separar e criar um outro.
Sendo
assim, a solução prática para a questão da autonomia não reside na abolição imediata de todos os estados (até mesmo
porque nunca houve consenso quanto à maneira de se fazer isso), mas sim na fragmentação dos atuais estados em estados
cada vez menores.
Isto pode ser feito de
forma de jure — como, por exemplo, mediante movimentos
formais de secessão — ou pode ser feito por meio de uma secessão de
facto, como a nulificação (deslegitimação da autoridade do governo federal
sobre você) e a insistência na autonomia localizada.
Esta criação de novos
estados teria um efeito duplamente benéfico: além de satisfazer os desejos dos
indivíduos que o criaram, tal fenômeno necessariamente irá ocorrer à
custa de algum estado existente.
Assim, a criação de um
novo estado — por exemplo, na Sardenha —
seria feita à custa do atual estado conhecido como "Itália". Por
causa da secessão, o governo italiano seria privado de receitas dos impostos
dos sardos e das vantagens militares do território. Consequentemente, o
estado que perde território torna-se necessariamente enfraquecido.
Logo, a secessão, em vez
de ser erroneamente vista como apenas "um ato que cria um novo
estado", deve ser vista como um ato que enfraquece um estado existente.
Além de enfraquecer
estados, a vantagem, pela perspectiva do indivíduo, é que ele agora tem à sua
disposição dois estados para escolher, onde antes havia somente um. Agora, o
indivíduo tem mais opções: ele pode, mais facilmente, escolher um lugar para
viver que seja mais adequado ao seu estilo de vida pessoal, ideologia,
religião, grupo étnico e assim por diante.
A cada ato de secessão
bem-sucedido, as escolhas disponíveis para cada pessoa aumentam continuamente.
Consequências
A razão mais óbvia para
se preferir uma multiplicidade de estados é a competição. Ao passo que
empresas concorrem entre si por meio de preços e da qualidade de seus produtos,
estados concorrem entre si por meio de coisas como política econômica, sistemas
políticos, e instituições jurídicas.
Se os impostos forem muito
altos em um estado, é desejável haver várias opções para onde emigrar. Se
um estado não permite que os pais eduquem os filhos em casa, há mais opções
para se emigrar para um estado que permita. Se um estado é excessivamente
burocrático, haverá outros que serão bem menos. Se um estado proíbe seus
cidadãos de praticar livre comércio com outros países, haverá outros que
permitirão. Se um estado possui um governo avesso ao empreendedorismo,
haverá outros mais amigáveis.
Esse maior leque de
escolhas obriga, até certo ponto, os governos a se curvarem à vontade da
população. Caso contrário, o estado corre o risco de perder uma grande
fatia de sua população, que irá então "votar com os pés" e
emigrar. Quanto menor a extensão espacial de um estado, mais fácil seria
emigrar e, consequentemente, menos intrusivo e coercivo teria de ser o
estado. Afinal, seria de seu total interesse fazer de tudo para que as
pessoas produtivas se sentissem estimuladas a permanecer dentro de seu
território.
Estados pequenos possuem
vários concorrentes geograficamente próximos. Se um governo passar a
tributar e a regulamentar mais do que seus concorrentes, a população emigrará,
e o país sofrerá uma fuga de capital e mão-de-obra. O governo ficará sem
recursos e será forçado a revogar suas políticas confiscatórias.
Estados também concorrem
entre si em termos de idioma, religião, cultura, belezas naturais e, é claro,
turismo. Todas essas coisas tendem a resultar em locais que não apenas são
melhores para se viver, mas que também permitem às pessoas se congregarem mais
facilmente com aquelas que possuem uma visão de mundo similar — inclusive, e
principalmente, em termos de visões políticas e econômicas.
Um arranjo de vários estados
pequenos permite que cada pessoa viva naquele estado que está mais de acordo
com suas preferências políticas, econômicas e redistributivistas. Pessoas
que gostam de viver em um estado de alta carga tributária, e que defendem a
redistribuição de renda, não mais teriam de impor essa visão de mundo sobre
pessoas que não querem ter políticos colocando a mão em uma grande fatia do seu
salário.
É claro que a competição
está longe de ser o único beneficio de um aumento no número de estados. Áreas
territoriais menores são mais simples de ser governadas. E
"governadas" não significa mais fácil de ser controladas,
mas sim que as decisões são tomadas em um nível mais local e por pessoas mais
familiarizadas com as circunstâncias e com as vidas das pessoas que serão
diretamente afetadas por essas decisões.
Por exemplo, em um país
de dimensões continentais, uma decisão governamental de se aumentar os repasses
de verbas da uma região em um extremo do país para outra região no outro
extremo do país (por exemplo, utilizar os impostos gerados por uma região mais
rica para financiar obras em uma região mais pobre do país) é totalmente
impessoal, pois beneficiados e espoliados não são especificados. Por outro
lado, em países menores, sabe-se exatamente quem serão os ganhadores e os
perdedores, o que faz com que tal decisão tenda a sofrer muito mais resistência
dos espoliados que não serão beneficiados pela obra.
Isso força uma utilização
mais racional, mais controlada e mais fiscalizada dos recursos. As chances
de desvio de verbas, de superfaturamento, de corrupção e de estouro no orçamento
diminuem sensivelmente, pois as pessoas tendem a estar mais vigilantes com que
o está sendo feito com seu dinheiro.
Em um arranjo de vários
estados pequenos e autônomos, tal fenômeno seria levado ao extremo.
Por último, mas não menos
importante, há a questão do livre comércio. Estados pequenos têm necessariamente
de comercializar. Não há alternativas, pois seu mercado interno não é
grande e nem suficientemente diversificado para que a população possa viver de
maneira autônoma e independente. Se eles não praticarem um livre comércio,
morrerão de fome em uma semana. É exatamente o mesmo fenômeno que ocorre
com uma cidade pequena dentro de um país grande. Se ela se fechar
completamente e não comercializar com as outras cidades, seus habitantes
morrerão.
Quanto menor o estado,
maior será a pressão para que ele adote um genuíno livre comércio e maior será
a oposição a medidas protecionistas. Toda e qualquer interferência
governamental sobre o comércio exterior levará a um empobrecimento imediato. Quanto
menor um território e seu mercado interno, mais dramático será esse
efeito.
A título de exemplo, se
os EUA adotarem um protecionismo mais forte, o padrão de vida médio dos
americanos cairá, mas ninguém passará fome. Já se uma pequena cidade, como
Mônaco, fizesse o mesmo, haveria uma quase que imediata inanição generalizada.
Conclusão
Este arranjo de vários estados
pequenos nada mais é do que o federalismo levado às últimas consequências, algo
que tende a gerar pessoas mais satisfeitas e mais capazes de solucionar seus
próprios problemas em nível local. E o principal: sem nenhuma quebra de laços
culturais.
O Principado de Liechtenstein
é, até onde se sabe, o único país do mundo que reconhece o direito à secessão
em sua constituição
(artigo 4, inciso II). O príncipe Alois de Liechtenstein leva
a sério o princípio da subsidiariedade. Diz ele:
O fato de termos o direito à secessão garantido em nossa
constituição representa um forte sinal de que o governo não pode simplesmente
sair fazendo tudo o que quer.
A efetiva aplicação do
princípio da subsidiariedade é uma importante salvaguarda para a liberdade.
Qualquer governo minimamente funcional deve se fundamentar em um real consenso
sobre os valores da comunidade em que ele opera. Se houver uma mudança de
valores culturais ou econômicos, indivíduos insatisfeitos devem ser livres para
se separarem e criar seu próprio estado. Neste mundo de rápidas mudanças
econômicas e culturais, nunca foi tão importante permitir às pessoas serem as
mais livres possíveis para escolher as pessoas que as governam.
Por
tudo isso, movimentos secessionistas representam a derradeira esperança para
recuperarmos a grande tradição liberal-clássica e toda a civilização que ela
possibilitou. Em um mundo que se tornou esclerosado pelo poderio estatal, a
secessão oferece a esperança de que sociedades genuinamente livres — organizadas
em torno de mercados e de interações voluntárias em vez de coerção e governos
centralizados — ainda possam existir.