quarta-feira, 19 jul 2017
No Brasil atual, a livre iniciativa e o trabalho não
são livres. São totalmente regulamentados. E quem resolve empreender ou tirar
um sonho do papel é visto como louco — ou como desempregado e desesperado.
Isso é reflexo das leis e normas existentes no país
e não da nossa "cultura da dependência". Muito se fala sobre isso, com muitas
pessoas dizendo que o Brasil sempre foi avesso à livre iniciativa. Falso. O
brasileiro sempre foi um povo empreendedor e construtor de riquezas. Quem acaba
com a liberdade de trabalhar e empreender é o estado.
Nossas leis e constituições simplesmente não
reconhecem esse valor inerente ao povo brasileiro. Quer ver uma prova?
O Brasil livre, de jura e de fato, nasceu junto com
a independência do país. Nossa primeira constituição foi escrita em 1824,
inspirada na Constituição dos Estados Unidos, criada 35 anos antes. Ela impunha
limites ao estado, e não ao cidadão empreendedor. Além de segurar o apetite do estado
em tornar-se cada vez maior, essa constituição garantia que as pessoas nunca
teriam sua livre iniciativa censurada pelo poder público.
Porém, após a constituição de 1824 (clique
para ler na integra), nossos políticos conscientemente foram transformando
o Brasil em um estado tirânico que age à revelia do indivíduo. Com efeito, houve
uma verdadeira involução jurídica desde então nesse aspecto.
Para tornar a demonstração do que eu quero dizer
mais clara, e também para que não fique a impressão que estou fazendo uma livre
interpretação dos fatos, vou transcrever literalmente, inclusive com o
português da época, as cláusulas de liberdade individual que regulamentavam o
trabalho com o passar das constituições.
Teço breves comentários abaixo de cada uma das
alterações, somente para ilustrar o que foi alterado.
Constituição
de 1824
"Nenhum gênero de trabalho, de cultura, indústria ou
comércio pode ser proibido, uma vez que não se oponha aos costumes públicos, à
segurança, e saúde dos cidadãos".
Comentário: em duas linhas a constituição brasileira
de 1824 reduz ao máximo o que o governo pode regular em nossos trabalhos ou
empresas. Nada é proibido, exceto aquilo que ofenda o bom senso. Sensatez igual
não se viu mais. Vejamos.
Constituição
de 1891
"É garantido o livre exercício de qualquer profissão
moral, intellectual e industrial".
Comentário: a primeira carta magna da república. Atenção
para o termo "garantido". Fica claro desde o começo que o estado é quem garante as coisas no Brasil, mesmo
aquilo que é um direito natural. Com esta constituição, a liberdade deixa de
ser sua e não mais pode ser garantida diretamente por você, mas sim pelo
estado. A liberdade é do estado, e ele a concede aos cidadãos, em uma espécie
de cessão de direitos. Percebam a inversão de valores.
Constituição
de 1934
"É livre o exercício de qualquer profissão, observadas
as condições de capacidade technica e outras que a lei estabelecer, ditadas
pelo interesse público".
Comentário: a primeira constituição de Getúlio
Vargas determinou que só pode ser feito o que for de interesse público, e o
responsável por interpretar o que é de interesse público tem, de fato, o poder
para interpretar o que o brasileiro pode ou não fazer.
Constituição
de 1937
"A liberdade de escolha de profissão ou do gênero de
trabalho, indústria ou commercio, observadas as condições de capacidade e as
restricções impostas pelo bem publico, nos termos da lei".
Comentário: Getúlio Vargas decretou o chamado Estado
Novo no mesmo dia em que promulgou uma nova constituição. A partir de então,
até a escolha do tipo de empreendimento deveria ser analisada para ver se
estava de acordo com a lei.
Constituição
de 1946
"É livre o exercício de qualquer profissão,
observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer".
Comentário: se, por um lado, a mudança foi boa, pois
aquela "liberdade de escolha" foi removida do artigo, por outro, a liberdade de
exercício é que passou a ser regulada, o que torna o efeito ainda mais
perverso, já que a partir de então até a forma como um trabalho era exercido
passava a ser controlada pelo governo.
Constituição
de 1967
"É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou
profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer".
Comentário: com a nova mudança, acrescentou-se o
"trabalho" e o "ofício" sob o poder regulatório da constituição, já que o
trabalho regulado cria o trabalho não-regulado. Foi uma tentativa de extensão
de controle malfeita.
Constituição
de 1988
"É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou
profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer".
Comentário: a partir de 1988, não somente as
escolhas das pessoas foram limitadas por sua capacitação, mas o órgão
responsável por julgar se você pode ou não realizar tal tarefa não é mais você,
nem seu empregador ou cliente, mas um burocrata do estado. A partir de 1988 a
liberdade de poder trabalhar deixou de existir por completo.
Liberdade
para trabalhar: acabando aos poucos
Quando pensamos em leis e constituições antigas
pensamos em retrocesso. Ledo engano. Essa é a versão criada pelas escolas
durante o século XX para validar a república presidencialista e a lógica de
avanços do poder do estado contra uma sociedade livre.
Fica documentado, portanto, que, desde a primeira
constituição da república, a capacidade de escolher e exercer qualquer trabalho
foi sendo continuamente limitada até chegarmos ao atual ponto de estagnação.
A idéia de que a liberdade de trabalho é um direito
natural e que não deve ser condicionada a qualquer regulamentação deve preceder
a elaboração de qualquer constituição. Toda constituição deve, no mínimo,
reconhecer isso.
Porém, basta ler as constituições do Brasil do
século XX para perceber que esse conceito desapareceu. O Brasil do século XXI
terá de resgatar princípios atemporais para não ficar no eterno atraso.
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Leia também:
A questão da regulamentação de profissões
Quem quer pagar por um Conselho Profissional?
A obrigatoriedade do diploma — ou, por que a liberdade assusta tanto?