Nota do editor
O artigo abaixo foi originalmente publicado em março de 2017. À época, o país saía de dois anos seguidos de profunda recessão e alta inflação de preços: o IPCA fora de 10,67% em 2015 e de 6,29% em 2016.
Como consequência deste arranjo "atípico" (recessão com inflação), teorias bizarras começaram a surgir, como "dominância fiscal" e "Selic alta é a causa da inflação" (ambas discutidas abaixo).
Como no Brasil tudo gira em círculos, voltamos a viver a mesma situação. E, consequentemente, o artigo abaixo ficou ainda mais atual.
O artigo é republicado aqui sem a alteração de nenhuma frase, mas apenas com atualizações de dados e gráficos.
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O leitor mais bem dotado de memória há de se lembrar como eram os preços das coisas
assim que o real surgiu, em julho de 1994. Os que não viveram a época podem
facilmente recorrer
à internet para pesquisar.
Pessoalmente,
lembro-me de, ali por volta de 1995, almoçar em um restaurante self-service e pagar algo em torno de R$
2,50. O preço do quilo era de R$ 6,50.
Também
àquela época, você podia ir a um restaurante, comer picanha importada para duas
pessoas, tomar cinco cervejas, pedir sobremesa, e pagar uma conta final de não
mais que R$ 15,90.
Eis
algumas
informações encontradas sobre os preços daquela
época:
a)
O arroz custava R$ 0,64 o quilo. O pão francês, R$ 0,09 a unidade. O filé
mignon, R$ 6,80 o quilo.
b)
Uma ida a uma churrascaria rodízio variava de R$ 13 a não mais que R$ 24.
c) Um filé à parmegiana para duas pessoas saía por
R$ 8,90, e a caipirinha para acompanhar, R$ 0,55.
d)
Fartos pratos de coração de frango a R$ 1,90, costela de porco a R$ 2,60, e
filé com fritas a R$ 8,90 eram a regra.
e)
Para os não-carnívoros, o filé de peixe custava R$ 9,45, o camarão ao molho
saía por R$ 16,90, e a mais refinada lagosta não passava de R$ 19,70.
f) Uma dose de uísque 12 anos custava R$ 3,25
e uma caipiroska com vodka, R$ 0,70.
g)
Para completar, biscoito cream cracker custava R$ 0,75 e o açúcar, R$ 0,39.
Deixemos
de lado o setor gastronômico e vamos para o resto da economia.
h)
Um bom amaciante custava R$ 0,69.
i)
Um ingresso de cinema, R$ 5.
j)
As tarifas de ônibus variavam de R$ 0,29 a R$ 0,54. Já a gasolina custava R$
0,55 o litro.
k)
Um carro Gol 1.0 custava R$ 7.243.
l)
Um apartamento de três dormitórios? R$ 94 mil.
Ano 2000
Avancemos
agora para o ano 2000. Naquele
ano, uma cerveja Brahma, lata de
350 ml, custava R$ 0,57.
A Kaiser Long Neck, 355 ml, R$ 0,45. Guaraná Antarctica, R$ 0,54.
Picanha bovina, R$ 8,90 o quilo. Alcatra, R$ 5,90 o
quilo. Pneu da marca Pirelli 175/13, R$ 56,90 a unidade
Confira os anúncios:








Investigando as causas
Desnecessário
dizer que os preços de absolutamente todos esses produtos estão hoje muito
maiores. Alguns produtos encareceram com mais intensidade (como os alimentos) e
outros, com menos (como as roupas e os itens domésticos).
Mas,
em comum, todos encareceram.
Hoje,
você não mais encontra nenhum restaurante self-service cujo preço do quilo seja
R$ 6,50, como era em 1995. Tampouco
consegue comer com apenas R$ 2,50 (meu prato hoje não sai por menos de R$ 30).
E muito menos encontrará um carro zero a menos de R$ 8.000.
Igualmente,
você não mais encontra — como encontrava no ano 2000 — sabonete de marca a R$
0,32, escova de dente a R$ 1,65, toalha de rosto a R$ 1,90, creme de barbear a
R$ 2,20, xampu a R$ 2,25, desodorante, camisa regata e toalha de banho a R$
3,90, calça jeans a R$ 8,90, tênis a R$ 12,90, calça social a R$ 14,90
Segundo
o IBGE, a inflação de preços (IPCA) acumulada de julho de 1994 a outubro de
2021 foi
de 602%. Isso significa que os preços de todos os bens e serviços, na
média, septuplicaram.
Igualmente,
de janeiro de 2000 a outubro de 2021, o IPCA acumulado foi
de 278%, o que significa que os preços mais do que triplicaram nesse período.
Mas
agora vêm algumas constatações lógicas e cruciais:
1)
Os preços de todos os bens e serviços aumentaram 7 vezes desde 1994;
no entanto, tamanho encarecimento não gerou redução da demanda. Ao contrário,
aliás: a demanda por bens e serviços é crescente desde 1994;
2)
Os preços aumentaram mesmo tendo havido um grande aumento da oferta de bens e serviços; hoje, há
muito mais restaurantes a quilo, e há muito mais variedade e quantidade de
roupas, carros e de itens domésticos à venda. Em tese, tamanho aumento da
oferta deveria para ter gerado redução de preços. No entanto, os preços
subiram;
3)
Se houve tamanho aumento de preços mesmo com um grande aumento da oferta, e se
tal aumento de preços não reduziu a demanda (ao contrário, a demanda aumentou),
então a única conclusão lógica possível é que a demanda da população aumentou ainda mais que o aumento dos preços.
4)
Agora, então, a questão passa a ser: o que permitiu esse aumento da demanda das
pessoas?
5)
Se o aumento de preços não foi o suficiente para diminuir a demanda, então, por
definição, o aumento de preços foi acompanhado de um aumento da renda. Mais ainda: a renda aumentou mais que o aumento dos preços.
Temos,
então, a primeira resposta: o aumento da renda da população — que levou a um
aumento da demanda — foi maior que o aumento dos preços.
Afinal,
dado que o aumento dos preços não foi suficiente para reduzir a demanda, e dado
que os preços aumentaram mesmo tendo havido um aumento da oferta, então a
conclusão lógica é que a renda aumentou muito mais que o aumento dos preços.
E
os preços só aumentaram menos que a renda porque houve aumento da oferta, o que
restringiu um pouco o aumento dos preços.
Feito
esse básico exercício de lógica, façamos então a pergunta suprema, cuja
resposta a tudo irá solucionar: o que realmente gerou esse aumento da
demanda/renda da população, que fez também aumentar os preços?
Aquela variável presente em todas
as transações
Para
responder a essa pergunta, é necessário analisar o que houve com aquela
variável que está presente em toda e qualquer transação econômica: o dinheiro.
Para
isso, façamos um silogismo.
Primeira
premissa: o dinheiro está presente em todas
as transações econômicas (inclusive nas compras a crédito, que também envolvem
a promessa de pagar dinheiro em uma data futura).
Segunda
premissa: quanto mais dinheiro há na economia, mais as pessoas podem demandar
bens e serviços com este dinheiro.
Terceira
premissa: dado que o dinheiro está presente em todas as transações econômicas, e dado que quanto mais dinheiro há
na economia mais as pessoas podem demandar, então, por definição, qualquer aumento
na quantidade de dinheiro irá inevitavelmente provocar alterações naquele número
mágico que baliza todas as transações e que tende a equilibrar oferta e demanda:
os preços.
Logo,
a conclusão é que qualquer investigação que aborde a questão da variação dos
preços tem obrigatoriamente de levar
em conta a variável dinheiro.
E
tal conclusão é perfeitamente lógica: os preços de todos os bens e serviços de
uma economia só podem aumentar de maneira continuada, sem que isso afete o
consumo, se a quantidade de dinheiro em posse das pessoas também aumentar de
maneira continuada.
Se
o preço de um prato de comida em um restaurante a quilo saltou de R$ 6,50 para
R$ 30 ao longo de duas décadas, ou se o preço de uma ida ao supermercado saltou
de R$ 80 para R$ 400 e ainda assim o consumo não declinou (ao contrário,
aumentou), então tal fenômeno só foi possível porque a quantidade de dinheiro
em posse das pessoas (consumidores) aumentou.
Apenas
imagine se todas as pessoas do país tivessem hoje a mesma quantidade de
dinheiro que tinham em julho de 1994. (Lembra-se de quão raras eram as cédulas
de 50 reais? As de 100 reais, então, eram praticamente peças de ficção). Apenas
imagine que a quantidade de dinheiro que existia em julho de 1994 houvesse sido
congelada e mantida imutável até hoje (março de 2017). Pergunta: haveria como
ter essa cavalgada de preços? Haveria como os preços subirem mais de 5 vezes?
Se
os preços quintuplicassem, mas a quantidade de dinheiro em posse das pessoas
não se alterasse, então, por definição lógica, não haveria como ter consumo em
massa. As pessoas gastariam tudo comprando alimentos para sobreviver e só. Não
sobraria dinheiro para mais nada. Ninguém venderia roupas, carros, toalhas,
sabonetes, televisores, computadores, notebooks, smartphones etc.
Logo,
não haveria como os preços de todos estes itens também subirem. Ao contrário,
aliás: estes preços teriam de cair para
ao menos conseguir atrair algum consumidor. Para cada aumento nos preços dos
alimentos teria de haver uma redução nos preços de todos os outros itens de
consumo.
Vale
enfatizar: se a quantidade de dinheiro na economia fosse fixa e imutável, seria
impossível haver aumentos de preços generalizados. Se um setor aumentasse os
preços, os outros teriam de diminuir. Caso contrário, ficariam sem
consumidores.
Ou
seja, com a quantidade de dinheiro fixa, não há como haver aumentos contínuos e
generalizados de preços.
Consequentemente,
o fato de que todos os preços subiram por um fator de 7, e ainda assim o
consumo se manteve crescente, permite apenas uma conclusão: a quantidade de
dinheiro em posse das pessoas aumentou. E muito.
E
os preços só subiram tanto porque essa quantidade de dinheiro em posse das
pessoas (demanda) aumentou.
O aumento da oferta monetária
Tendo
entendido a lógica por trás da teoria, passemos à empiria.
Comecemos
pela forma mais simples de dinheiro. O gráfico a seguir mostra a evolução da quantidade
de cédulas de papel e de moedinhas
metálicas na economia brasileira desde julho de 1994, com a criação do
real. Todos os dados são do Banco Central.

Gráfico 1: evolução da quantidade
de papel-moeda em poder de pessoas e empresas (Fonte: Banco Central)
Observe
que, em julho de 1994, havia R$ 5 bilhões em papel-moeda na economia. Em setembro de 2021, havia R$ 280 bilhões. Isso representa um aumento de 56 vezes,
o que dá, em termos percentuais, um aumento médio de mais de 26% ao ano.
Passemos
agora à segunda forma mais simples de dinheiro: os depósitos em conta-corrente, os quais podem ser sacados em dinheiro
em caixas automáticos ou podem ser utilizados como meio de pagamento por meio
de cheques e cartão de débito.

Gráfico 2:
evolução dos depósitos em conta-corrente
(Fonte: Banco Central)
Observe
que, em julho de 1994, havia aproximadamente R$ 10 bilhões em dinheiro
depositado nas contas-correntes. Em setembro de 2021, havia aproximadamente R$ 335 bilhões. Isso representa um aumento de 33,5 vezes, o que dá, em termos
percentuais, um aumento médio de 23% ao ano. (Mais abaixo comentarei sobre
aquela brutal queda ocorrida a partir de 2015).
Podemos
também analisar a evolução dos depósitos em caderneta da poupança.

Gráfico 3:
evolução dos depósitos em caderneta de
poupança (Fonte: Banco Central)
Observe
que, em julho de 1994, havia aproximadamente R$ 40 bilhões em dinheiro
depositado nas cadernetas de poupança. Em setembro de 2021, havia
aproximadamente R$ 1,04 trilhão. Isso representa um aumento de 26 vezes, o que
dá, em termos percentuais, um aumento médio de 21% ao ano.
Para
não aborrecer o leitor, irei poupá-lo da repetição deste mesmo processo para os
depósitos a prazo e para todos os depósitos em fundos DI, fundos de renda fixa,
fundos multimercado, fundos cambiais, fundos de ações etc. O raciocínio é
idêntico. A taxa de crescimento é semelhante.
O
que é realmente importante aqui é notar como a quantidade de dinheiro na
economia aumentou vigorosamente nestes quase 23 anos de real. Ao passo que os
preços (IPCA) praticamente se multiplicaram por 7, a quantidade de dinheiro na
economia foi multiplicada por 33 (depósitos em conta-corrente), 26 (depósitos
em caderneta da poupança) e 56 (papel-moeda em poder das pessoas e das
empresas).
Este
vigoroso aumento da quantidade de dinheiro na economia explica não só todo o
contínuo aumento de preços ocorrido, como também o fato de que o consumo seguiu
crescente mesmo com todo este aumento de preços. Com as pessoas tendo cada vez
mais dinheiro em sua posse, e com essa quantidade de dinheiro aumentando mais
rapidamente do que os preços, a demanda não se retraiu em decorrência do
aumento de preços.
E
por que os preços aumentaram menos que o aumento da quantidade de dinheiro? Por
causa da oferta crescente de bens e serviços. Felizmente houve crescimento
econômico durante este período, o que significa que empreendedores investiram e
produziram cada vez mais, e assim aumentaram a oferta de bens e serviços
disponíveis.
Fazendo
uma matemática meio grosseira, mas ainda assim válida, podemos dizer que, se
não tivesse havido nenhum crescimento econômico — ou seja, se a economia de
hoje fosse exatamente a mesma de 1994 —, mas a quantidade de dinheiro houvesse
crescido exatamente como visto acima, então os preços hoje seriam muito
maiores. Provavelmente, o IPCA teria aumentado entre 26 e 56 vezes.
Quem aumenta a quantidade de
dinheiro na economia?
Está
completamente fora do escopo deste artigo explicar em detalhes como o dinheiro
é criado e jogado na economia. Este Instituto possui vários artigos específicos
sobre isso (recomendo este,
este e este).
Em
nome da brevidade, podemos apenas dizer que todo o processo está sob o direto
controle do Banco Central. É o Banco Central quem tem o monopólio de criar
dinheiro, de repassar esse dinheiro ao sistema bancário, e de estimular os
bancos a fazerem empréstimos para pessoas, empresas e governo.
Os
bancos, por sua vez, literalmente multiplicam esse dinheiro recebido do Banco
Central e o jogam na economia na forma de empréstimos para pessoas, empresas e
governo. Mais especificamente, por meio de um processo complexo chamado de
"reservas
fracionadas", o Banco Central possibilita que os bancos criem dinheiro
eletrônico em cima do dinheiro (físico e eletrônico) que receberam do Banco
Central e o emprestem para pessoas, empresas e governo. Os bancos, portanto,
multiplicam o dinheiro recebido do Banco Central e jogam esse dinheiro na
economia na forma de empréstimos.
Esse
novo dinheiro criado pelo Banco Central e pelo sistema bancário será repassado a
pessoas, empresas e governo na forma de empréstimos e, em seguida, será gasto por
estas entidades, entrando permanentemente na corrente de gastos da economia,
aumentando preços.
Assim,
o Banco Central e o sistema bancário que ele controla acabam, na prática,
"imprimindo" dinheiro e jogando esse dinheiro na economia na forma de
empréstimos. É assim que o dinheiro entra na economia, e majoritariamente na
forma de dígitos eletrônicos. São esses dígitos que estão nas nossas contas
bancárias, seja na conta-corrente, seja na conta-poupança, seja nos depósitos a
prazo ou nos fundos de investimento.
Todo
o processo de expansão de crédito, portanto, nada mais é do que um mecanismo
que aumenta a quantidade de dinheiro na economia. Quando os bancos
emprestam para pessoas, empresas ou governo, a quantidade de dinheiro na
economia aumenta. Se a concessão de empréstimos ocorrer a um ritmo maior que a
quitação destes empréstimos, a quantidade de dinheiro na economia aumentará
continuamente. Caso as quitações sejam maiores que as concessões, a quantidade
de dinheiro na economia irá diminuir.
Portanto,
respondendo à pergunta do título desta seção, quem aumenta a quantidade de
dinheiro na economia é o sistema bancário
em conjunto com o Banco Central. Porém, e essa é a conclusão mais
importante, quem dá toda a sustentação ao processo — quem literalmente cria
dinheiro do nada e repassa esse dinheiro aos bancos, permitindo que eles então
expandam o crédito continuamente — é o
Banco Central.
Não
houvesse um Banco Central com o poder de imprimir dinheiro infinitamente — e o
Banco Central realmente pode imprimir dinheiro o quanto quiser —, os bancos
não poderiam emprestar continuamente a pessoas, empresas e governo.
Consequentemente, a quantidade de dinheiro na economia teria um crescimento
extremamente limitado.
Para
finalizar esta seção, eis o gráfico da evolução da base monetária, que representa todo o dinheiro criado pelo Banco
Central e entregue ao sistema bancário. Trata-se de uma variável que está
totalmente sob o controle do Banco Central. É sobre a base monetária que todo o
sistema bancário, coordenado e protegido pelo Banco Central, irá criar mais
dinheiro eletrônico (via expansão do crédito), expandindo a quantidade total de
dinheiro na economia. É a criação da base monetária o que dá sustento a todo o
aumento da quantidade de dinheiro na economia.

Gráfico
4:
evolução da base monetária (Fonte: Banco
Central)
Observe
que, em julho de 1994, a base monetária era de aproximadamente R$ 10 bilhões.
Em setembro de 2021, a base monetária já estava em R$ 410 bilhões. Isso
representa um aumento de 41 vezes, o que dá, em termos percentuais, um aumento
médio de 24% ao ano.
Eis
aí, portanto, a verdadeira raiz de toda a inflação de preços.
A definição correta de inflação
A definição correta de inflação é "aumento da oferta
monetária" ou "aumento da quantidade de dinheiro na economia".
O próprio termo 'inflação' denota que a quantidade
de dinheiro na economia foi 'inflada'. Quando a quantidade de dinheiro na economia
aumenta, isso, por si só, já é uma 'inflação'.
É essa inflação da oferta monetária o que pressiona
os preços para cima. Quando a quantidade de dinheiro na economia aumenta, o
valor de cada unidade monetária diminui. A moeda perde poder de compra. Se a
moeda perde poder de compra, então, por definição, você precisará de mais moeda
para comprar o mesmo tanto de antes.
Portanto, eis a conclusão crucial: o aumento de
preços é uma consequência da inflação
monetária. Inflação não é sinônimo de aumento de preços. O aumento de preços é
uma consequência da inflação.
E isso não é uma mera pendenga semântica. É algo
muito sério. Se você não define exatamente qual é o problema, você não tem a
menor chance de resolvê-lo corretamente. Se inflação é "aumento de
preços", então a solução para este problema não tem nada a ver com a
quantidade de dinheiro na economia, mas sim com coibir o comportamento
"maldoso" de empresários, que insistem em elevar seus preços sem
nenhum motivo, levados apenas pela ganância. Se inflação é "aumento de
preços", então a solução para este problema pode perfeitamente ser o congelamento de preços ou a
imposição de um teto para os preços de qualquer bem.
Saber a diferença entre inflação e aumento de preços é tão importante quanto
compreender corretamente as causas de uma doença. É a diferença entre saber o
que causa todos os sintomas desta doença (e o que deve ser feito para eliminar
a fonte dos sintomas) versus tentar atacar apenas os sintomas.
Definir inflação como aumento de preços é o mesmo que pensar que 'doença'
significa um aumento da temperatura do corpo apontada pelo termômetro, o que
implicaria que a solução seria simplesmente colocar o termômetro na geladeira.
O
vácuo do debate
É apenas quando se entende tudo isso, que você finalmente
percebe como são vazios e desnecessários alguns debates que, com frequência,
invadem a mídia e o mundo acadêmico. Na ânsia de querer explicar um fenômeno pontual e passageiro,
teses esquisitas — algumas bizarras — são criadas e propagadas aos montes.
No início de 2016, com a economia em recessão, juros altos e o IPCA em 10%, ganhou força uma tese de que o Brasil estaria vivenciando uma "dominância fiscal". Segundo essa teoria, a carestia continuaria alta enquanto o governo continuasse apresentando déficits orçamentários e endividamento crescente. Enquanto os déficits não fossem zerados e a dívida não começasse a cair, o IPCA não só jamais cairia como subiria cada vez mais aceleradamente.
Pois bem. O tempo passou, os déficits e o endividamento do governo só pioraram e, no entanto, o IPCA caiu de 10,71% para 2,7% ao fim de 2017, o menor nível desde a adoção do câmbio flutuante, em 1999. Pela tese da "dominância fiscal", isso jamais poderia ocorrer.
Atualmente (novembro de 2021), com a nova disparada do IPCA, esta tese ressurgiu das cinzas. Mas, ora, basta visualizar os gráficos 1, 2 e 3 para entender que a causa da disparada atual do IPCA é simplesmente o fato de a oferta monetária ter aumentado impressionantes 50% em um período de 12 meses — consequência do Orçamento de Guerra adotado em resposta à Covid-19).
Essa explosão na oferta monetária pressionou os preços de todos os bens e serviços, inclusive e principalmente o câmbio (o dólar é um bem como qualquer outro).
Realmente, não há nada de atípico na atual carestia. É apenas a consequência da expansão monetária, como a teoria sempre explicitou.
Logo, como diria Paulo Francis, a tese da dominância
fiscal é mais uma que "despontou para o anonimato".
Outra tese esdrúxula também surgiu recentemente [2017] e foi aventada por André Lara Resende, um dos criadores do real. Segundo ele, a inflação estaria alta porque a SELIC está muito alta. Apenas se a SELIC fosse diminuída para algo próximo de zero — sim, ele falou isso — é que o IPCA começaria a cair.
Esta, sinceramente, dispensa comentários. Desde a publicação do artigo de Lara Resende (em janeiro de 2017), o IPCA alcançou sua menor taxa (2,7%) quando a SELIC estava em 9,25%. Desde então, a SELIC caiu para 2% e o IPCA voltou a subir (na verdade, disparar).
O gráfico abaixo desenha a relação direta entre SELIC e IPCA. A linha azul é a SELIC e linha vermelha é o IPCA. O gráfico está em média móvel de 12 meses.

Gráfico 5: evolução mensal da SELIC (linha azul) versus evolução mensal do IPCA (linha vermelha). Fonte: Banco Central
Sempre que a SELIC (linha azul) está subindo e alcança um ápice, a linha azul (IPCA) passa a cair. E vice-versa.
Dado que a SELIC afeta a quantidade de dinheiro na economia, então é óbvio que alterações na SELIC irão alterar o comportamento do IPCA.
Por fim, quem também surpreendentemente entrou no clima foi a
competente dupla Marcos Lisboa e Samuel Pessoa. Em
artigo para o Valor, a dupla comprou a tese de que empresários podem gerar
aumentos contínuos de preços: basta que suas expectativas sejam a de que a inflação
de preços irá se acelerar no futuro. Ato contínuo, os empresários saem
remarcando preços e, voilà!, a economia entra em uma espiral de aumento
acelerado de preços e nada mais segura.
Qual o erro em comum destas três teorias? Elas aparentemente
foram criadas ad hoc para tentar explicar
um fenômeno — preços em forte ascensão em um cenário de juros altos e de forte recessão — que era pontual, passageiro e de causas bem definidas.
Para entender por que todos esses economistas estão errados
e onde erraram, basta voltar ao gráfico 2:

Gráfico 2:
evolução dos depósitos em conta-corrente
(Fonte: Banco Central)
O gráfico mostra a evolução da quantidade de
dinheiro nas contas-correntes dos bancos. Essa modalidade é importante
porque mostra a quantidade de dinheiro prontamente disponível para empresas e
pessoas consumirem e investirem. Como se trata de uma aplicação que não paga
juros, o dinheiro em conta-corrente representa aquele dinheiro que está sendo
continuamente transacionado na economia.
Quando
essa quantidade de dinheiro está crescendo, isso significa que as empresas
estão com mais capital de giro e com mais dinheiro disponível para investir e ampliar
sua capacidade produtiva, e as pessoas estão com mais dinheiro pronto para ser
gasto em consumo. Já quando a quantidade de dinheiro está diminuindo, isso
significa que as pessoas e empresas estão retirando dinheiro da conta-corrente
e aplicando em outras modalidades, como CDB, LCI, LCA, fundos de investimento e
títulos do Tesouro, para se aproveitar dos juros. Ou seja, as empresas não
estão dispostas a investir na economia e as pessoas não estão dispostas a
gastar.
Repare
que, quando a SELIC aumenta (2003, 2005, 2008, 2011, 2014 e 2015), a quantidade
de dinheiro em conta-corrente pára de crescer. Isso porque as pessoas e empresas
retiram o dinheiro dali e aplicam em papéis que rendem juros. E também porque empréstimos
passam a ser quitados a um volume maior do que concedidos. E quando a SELIC cai
(2004, 2006, 2007, 2009, 2012 e de 2017 a 2020) as empresas e pessoas voltam a pedir empréstimos
e a consumir.
Repare
também que, em 2014, a quantidade de dinheiro em conta-corrente pára de crescer
e, em 2015, entra em queda livre. Em 2016, a queda continuou. Como a
SELIC estava subindo desde abril de 2013, deixar dinheiro na conta-corrente
representava um crescente custo de oportunidade. Igualmente, pedir empréstimos a
juros crescentes também não era sensato. Essa combinação gerou uma forte contração
monetária. A magnitude desta contração foi inédita na história do real.
E é ela quem explica a forte desaceleração do IPCA em 2017 e em 2018.
Ou seja, no fim, é a oferta monetária quem comanda. Coisas
como "dominância fiscal" (Monica de Bolle), "SELIC a 1%" (André Lara Resende), "expectativas
inflacionárias que aumentam preços continuamente" (Marcos Lisboa e Samuel
Pessoa) simplesmente perdem qualquer relevância quando a economia vivencia uma contração monetária.
Havendo
contração monetária, não há como preços subirem aceleradamente e
indefinidamente. Se empresários continuamente aumentarem preços em um cenário
de contração monetária — como o atual — simplesmente não haverá ninguém com
dinheiro para consumir seus produtos (daí as seguidas quedas
nas vendas no varejo).
Sim,
é verdade que pode haver remarcações de preços durante uma contração monetária
(e foi isso o que ocorreu no Brasil em 2015 e 2016). Mas o ponto é que tal
prática simplesmente não tem como perdurar caso a contração monetária se
mantenha. E foi por ignorar isso que os economistas supracitados cometeram os
erros, criando teorias ad hoc.
Meu
colega de trabalho Fernando Ulrich foi quem resumiu
perfeitamente a sequência: as expectativas de inflação sobem por causa da dominância
fiscal; empresários aumentam seus preços; mas está havendo contração monetária.
Consequentemente, empresários não conseguem vender; os estoques se avolumam;
eles são obrigados a baixar os preços (ou a parar de aumentá-los). Os índices
de preços entram em queda (ou ficam estáveis). Fim do processo de aumento
acelerado de preços.
De
novo: não há expectativa de inflação e não há dominância fiscal que perdurem
caso a oferta monetária não esteja crescendo (e menos ainda se ela estiver se
contraindo).
Conclusão (e uma previsão)
Preços
aumentam continuamente porque a oferta monetária aumenta. Ponto.
A
intensidade do aumento dos preços varia de ano para ano. Há anos em que eles
sobem com mais intensidade e há anos que eles sobem pouco. Isso vai depender de
condições pontuais, como câmbio e
gastos do governo. No longo prazo, porém, preços (inclusive salários) são determinados
pela evolução da quantidade de dinheiro na economia.
Uma das causas do prolongamento da atual recessão [2015-2016] é que está havendo uma combinação entre menos dinheiro na economia e um forte aumento de preços (inclusive do salário mínimo) ocorrido entre 2014 e 2016, majoritariamente causado pela liberação dos preços que estavam represados pelo governo e pela desvalorização cambial daquele período. Isso gerou, além da explosão do desemprego, toda essa queda na renda real que a população está sentindo.
Em termos práticos, há hoje [março de 2017] nas contas-correntes a mesma quantidade de dinheiro que havia no início de 2010. Só que todos os preços estão muito maiores. Daí a sensação (real) de queda na qualidade de vida das pessoas, principalmente dos mais pobres (que são os que mais guardam dinheiro em espécie em casa ou deixam parado na conta-corrente). Há menos dinheiro tendo de lidar com preços mais altos.
Mas
a atual [2017] contração monetária garante que, no curto prazo [2017 e 2018], não há espaço para
surtos de carestia — a menos, é claro, que mais dinheiro volte a ser bombeado
para a economia.
[Acréscimo em 2021: com a queda da Selic a partir de 2017, a quantidade de dinheiro voltou a subir. A com a intensificação da queda da Selic a partir de 2020, a quantidade de dinheiro disparou, levando à atual carestia.
De novo: não se trata de "dominância fiscal" ou demais heterodoxias. É simplesmente a oferta monetária.
Se houver uma contração da quantidade de dinheiro em 2022, que é o que o gráfico aponta, a tendência seria de arrefecimento do IPCA. Entretanto, considerando que a quantidade de dinheiro subiu muito e em pouco tempo, ainda há espaço para o IPCA seguir crescendo.]
Para finalizar: volte àqueles preços de 1994 e compare com os de hoje. O que causou todo
este aumento: dominância fiscal? SELIC alta? Expectativas? Ou um aumento de 6.000%
na oferta monetária?
Sim,
é a inflação monetária o que gera um aumento prolongado de preços. Sempre.