quarta-feira, 15 mar 2017
O relato a seguir foi divulgado
pela Associated Press:
O caminhão de lixo freia e Rebeca corre até o
contêiner para revirar os sacos. É a sua luta diária contra a fome, que leva
muitos venezuelanos a viverem de restos de comida.
Antes que os resíduos sejam triturados, vasculha
avidamente e encontra um pouco de macarrão. Rebeca León tem 18 anos, está
terminando o ensino médio e vive no bairro popular de Petare, em uma casa que,
apesar da miséria, conta com os serviços básicos.
Um filho de dois anos desnutrido, uma mãe com
deficiência e semanas "à base de água" a levaram, há seis meses, a percorrer as
ruas de zonas ricas para buscar comida no lixo.
"Minha mãe não aceitava, mas o que mais se pode
fazer com a situação ruim do país? Ia morrer de fome, dava para ver os ossos
dela", conta à AFP.
Sua rotina é angustiante. Estuda à tarde e, depois
do colégio, vai direto caçar caminhões coletores de lixo e revirar sobras em
restaurantes, de onde tira restos de frango, pão, peixe ou queijo.
Dorme na rua e volta à casa de manhã para limpar o
que recolheu e descansar, para depois continuar fazendo a roda girar.
Esta jovem deixou a vergonha de lado para sobreviver
a uma crise na qual a escassez atinge 68% dos produtos básicos no país e a inflação
cresce descontroladamente — segundo o FMI, chegará a 1.660% em 2017.
"Chorava, porque me sentia humilhada. Já não me
importa, porque se você não procura algo no lixo, você não come", disse,
enquanto aguardava um caminhão que nunca chegou.
Cerca de 70 pessoas, entre elas várias crianças,
esperam com Rebeca os caminhões coletores, e compartilham o controle das
lixeiras de restaurantes. Rebeca revira as sobras de um restaurante em Altamira,
bairro de Caracas.
Perto dali, em um estabelecimento de fast food, um
homem foi esfaqueado recentemente em uma briga por um saco de lixo, conta um
funcionário. Neste lugar, José Godoy, pedreiro desempregado de 53 anos, lambe
ansioso um prato descartável. Suas duas filhas, de seis e nove anos, bebem suco
retirado de um pote. Estão anêmicas, e comem apenas bananas ou iúca uma vez por
dia.
"Uma noite fomos dormir sem comer. Não desejo isso a
ninguém. As crianças choravam e diziam: 'tenho fome'. Vendi as ferramentas,
tudo, e por último saí às ruas. Milhares de nós vivemos de lixo", relata José.
Cerca de 9,6 milhões de venezuelanos — quase um
terço da população — comem duas ou menos vezes por dia. A pobreza aumentou
quase nove pontos percentuais entre 2015 e 2016, atingindo 81,8% dos lares,
enquanto 51,51% estão em situação de pobreza extrema, segundo a Pesquisa sobre
Condições de Vida.
O estudo, realizado por um grupo de universidades,
revelou também que 93,3% das famílias não têm renda suficiente para comprar
alimentos, enquanto sete em cada dez pessoas perdeu em média 8,7 kg de peso no
último ano.
"Eu era gordo, e olhe só agora, estou magrinho. Tive
que tirá-la do colégio porque não podia dar comida para ela levar", disse
Godoy, apontando para uma das filhas.[...]
Abatida pela noite mal dormida, pela fome e pela
preocupação por não ter encontrado nada, Rebeca retorna ao seu bairro — o mais
perigoso de Caracas. De lá, deve caminhar uma hora até a escola, onde alguns
colegas chegam a "desmaiar de fome", conta.
"Não quero ficar assim", diz a jovem, que pretende
estudar turismo após concluir o ensino médio. Por enquanto, se prepara para
outra jornada desta luta, cujo fim está distante demais para ser vislumbrado.
Socialismo
em condições de laboratório
Infelizmente, a Venezuela segue fornecendo exemplos práticos
e clássicos de todas as inevitáveis consequências geradas pela aplicação de políticas
socialistas.
Tudo começou sob o governo de Hugo Chávez e agora
continua sob a regência de seu sucessor, Nicolás Maduro. Por piores,
corruptas e despóticas que fossem suas intenções, não é crível imaginar que
ambos quisessem criar propositalmente o atual cenário de inanição que se vê no
país. Ao contrário, a dupla prometeu implantar todas aquelas promessas de
sempre do socialismo: justiça, igualdade, liberdade, e o fim da
exploração.
No entanto, se você analisar o que está ocorrendo na
Venezuela, verá a exata abolição de tudo aquilo que podemos chamar de
'civilização'.
O roteiro é trágico: com a queda das receitas do petróleo,
o governo venezuelano recorreu à solução simples, fácil e totalmente
equivocada: saiu literalmente imprimindo dinheiro para pagar todas as suas
despesas.
O gráfico abaixo mostra a evolução da quantidade de
cédulas de papel e de depósitos em conta-corrente na economia venezuelana
(agregado M1) de acordo com as estatísticas do próprio Banco Central
venezuelano.

Evolução
da quantidade de cédulas de papel e de depósitos em conta-corrente na Venezuela
Observe que, do início de 2015 até hoje (meros dois
anos), a quantidade de dinheiro na economia quintuplicou. E, apenas no ano
passado, ela mais que dobrou.
A consequência inevitável desta hiperinflação monetária
foi uma acentuada desvalorização do bolívar venezuelano, que desabou feito uma
pedra no mercado de câmbio.
O gráfico a seguir, elaborado pelo professor
Steve Hanke, da Johns Hopkins University, mostra a evolução da taxa de
câmbio do bolívar em relação ao dólar americano. A linha vermelha é a taxa
de câmbio oficial declarada pelo governo; a linha azul é a taxa de câmbio no
mercado paralelo.

Taxa
de câmbio bolívar/dólar no mercado paralelo (linha azul) versus taxa de câmbio
oficial declarada pelo governo (linha vermelha)
Vale ressaltar que, como mostra o gráfico, a desvalorização
do bolívar começou ainda no início de 2014. De lá para cá, a moeda já perdeu
mais de 99% do seu valor.
E não há refresco à vista. Em agosto do ano passado,
um dólar custava 1.000 bolívares no mercado paralelo. Em março desse ano,
um dólar já está valendo 4.250 bolívares.
Isso implica uma desvalorização adicional de 76% em
apenas sete meses.
O fato é que, com toda essa súbita e profunda desvalorização
da moeda que vem ocorrendo desde 2014, o governo venezuelano recorreu ao clássico
manual socialista: decretou controle de preços e estatizações de fábricas e
lojas. Nos últimos anos, nada
menos que 1.168 empresas nacionais e estrangeiras foram expropriadas na
Venezuela.
Essa mistura de hiperinflação (gerada pela
impressão desmedida de dinheiro pelo governo), controle de preços e estatizações
de fábricas e lojas gerou desabastecimento generalizado: as prateleiras
das lojas e dos supermercados estão vazias e as pessoas de classe média que
antes tinham emprego estão hoje esfomeadas, tendo de literalmente revirar latas
de lixo e matar gatos e pombos nas ruas para ter o que comer. (Veja relatos
completos e apavorantes aqui e aqui).
Ainda no início de 2015, toda a distribuição de
alimentos na Venezuela foi colocada sob
supervisão militar. Em seguida, o governo impôs um sistema de checagem
de digitais para se certificar de que a mesma pessoa não esteja
comprando itens básicos mais de uma vez na mesma semana. Com isso,
filas nos supermercados se tornaram rotinas. Os venezuelanos passaram a ter de
pedir permissão para faltar ao trabalho e assim poder ficar o dia inteiro em
longas filas nas portas dos poucos supermercados que ainda tinham
produtos à venda.
Com uma moeda inconversível e que ninguém quer
portar — nenhum estrangeiro está disposto a trocar sua moeda pelo bolívar,
pois não há investimentos atrativos na Venezuela —, nenhum empreendedor
na Venezuela está tendo acesso a dólares. E, sem acesso a dólares, todas as
importações, mesmo a de produtos básicos e essenciais, como remédios, estão
praticamente paralisadas, acentuando ainda mais a escassez.
O experimento socialista venezuelano vem quebrando
paradigmas e alcançando façanhas: já conseguiu gerar escassez e racionamento de papel
higiênico, comida,
cerveja, eletricidade, água
e remédios. Sem remédios,
a população recorreu ao uso de remédios para cachorro.
O governo destruiu de maneira tão completa o pouco
que restava de capitalismo, que até mesmo os hospitais ficaram sem
papel higiênico e sem remédios. A
taxa de mortalidade de recém-nascidos disparou.
A criminalidade explodiu e hoje
é a pior do mundo. (Chegou-se a uma situação em que as pessoas são queimadas vivas nas
ruas).
Para acentuar o pastelão, recentemente foi noticiado
que o governo venezuelano ficou sem dinheiro para
fabricar mais dinheiro.
Dieta
forçada
O salário mínimo atual é de 40.000
bolívares mensais. Pelo câmbio oficial — ou seja, aquele determinado pelo
governo —, isso equivale a US$ 60 por mês. Já pelo câmbio do mercado paralelo
— que representa o genuíno valor da moeda —, isso equivale a US$ 10.
Sim, o salário mínimo mensal de um venezuelano é de
US$ 10. Dado que o salário mensal médio em Cuba é
de US$ 20, temos que a dupla Chávez/Maduro conseguiu a façanha de deixar a população
da rica Venezuela mais pobre que a miserável população cubana.
Isso sim é concorrência socialista.
Tudo isso gerou, como era de se esperar, inevitáveis
consequências sobre a saúde dos venezuelanos. Há algumas semanas, as principais
universidades venezuelanas publicaram
a Encuesta de Condiciones de Vida
(Encovi) — Pesquisa de Condições de Vida —, um documento anual que analisa a evolução
dos principais indicadores de bem-estar da população.
E os resultados foram desoladores: nada menos que 82%
das famílias venezuelanas vivem na pobreza, a porcentagem mais elevada da
história do país, o que transforma esta região na mais miserável da América
Latina. A maior parte destas famílias se encontra em uma desesperadora situação
de extrema pobreza, o que dificulta enormemente sua capacidade ter acesso a uma
alimentação de mínima qualidade.
Ainda segundo
a pesquisa, 72,7% das mais de 6.500 pessoas sondadas afirmaram ter perdido
peso involuntariamente. A média da perda de peso em apenas um ano é
assustadora: 8,7 kg.
Vale repetir e enfatizar: 82% das famílias venezuelanas
estão hoje vivendo na pobreza (em 2015, esse percentual era de 73%). Enquanto
isso, 72,7% da população perdeu uma média de 8,7 quilogramas. E 9,6 milhões de
venezuelanos (um terço da população) comem menos de duas vezes por dia.

Conclusão
A moeda foi destruída, os alimentos escassearam e os
venezuelanos passam fome. E hoje, rivalizam em pobreza com os cubanos.
Eis as façanhas do "socialismo do século XXI" — ou,
como dizem seus defensores, 'bolivarianismo'.
Jamais menospreze a capacidade destruidora do
socialismo: a Venezuela, ainda na década de 1970, estava entre os 20 países mais ricos do mundo. Bastou
pouco mais de uma década de bolivarianismo para jogar a população do país na
mais completa mendicância.