A Black Friday, que é a sexta-feira após a quarta
quinta-feira do mês de novembro, é a data que inaugura oficialmente a
temporada de compras natalinas nos EUA. Por tradição, trata-se de um evento em
que o comércio varejista concede grandes descontos de preços aos consumidores.
Como tantas outras tradições norte-americanas, esta também
acabou se expandindo pelo mundo e se tornou também um costume em vários países da
Europa e da América Latina, motivo pelo qual vários estabelecimentos comerciais
estão hoje, ao redor do mundo, oferecendo bons descontos na maioria de seus
produtos.
Para muitos — especialmente na esquerda — esta
nova "moda" é condenável por dois motivos. Primeiro, porque se trata de uma
conquista do "imperialismo cultural ianque"; segundo, porque seria uma manifestação
que acentua as manifestações mais exacerbadas do espírito capitalista, isto é,
o consumismo desenfreado feito à base de um endividamento desnecessário e
perigoso.
A primeira crítica é fraca e descabida. Toda e qualquer cultura é fruto de uma evolução
histórica, a qual foi afetada por inúmeras influências e miscigenações oriundas
do exterior. Sendo assim, a importação de novas influências culturais que adicionem
novas características à nossa cultura herdada não tem por que ser algo
necessariamente negativo. Se somos produtos de uma evolução, não faz sentido querer
que toda essa evolução histórica seja interrompida exatamente em nossa geração.
Já a segunda crítica consegue ser ainda pior, pois não apenas não há nenhum fundamento nela, como ainda inverte totalmente a
realidade.
Capitalismo
é o oposto de consumismo
Embora muitas pessoas acreditem que a força-motriz
do capitalismo é o consumo (ou, mais ainda, o consumismo), tal ideia está
fundamentalmente incorreta.
Sim, não há dúvidas de que o consumo é o propósito
supremo de toda atividade humana de caráter produtivo, tanto em sociedades capitalistas quanto em sociedades não-capitalistas:
as pessoas produzem para poder consumir; ninguém quer dedicar esforços e
recursos para fabricar algo que não será utilizado no futuro.
Por isso, dado que tal prática ocorre em toda e
qualquer sociedade, desde a tribal até as metropolitanas, não faz sentido dizer
que a característica distintiva do capitalismo seja o consumo. Muito pelo
contrário, a característica distintiva do capitalismo é direcionar a poupança dos
cidadãos para investimentos produtivos. Em outras palavras, transformar poupança
em capital.
Aqueles que crêem que o capitalismo se sustenta
sobre o consumismo desconhecem a própria raiz da palavra "capitalismo". Capitalismo
advém de capital. Capitalismo é acumulação
de capital. E capital é aquela fatia do nosso patrimônio que aumenta a
nossa riqueza futura. Capital é toda a riqueza acumulada — que pertence a
empresas ou a indivíduos — e que é utilizada para o propósito de se auferir
receitas e lucros futuros.
Capital, em suma, é aquilo que cria riqueza futura para
nós mesmos e para o resto da sociedade.
Para acumular capital é necessário poupar. E para poupar é necessário restringir o consumo.
Sendo assim, qual o sentido de dizer que um sistema
— o capitalismo — cuja própria existência depende da virtude da poupança e do
não-consumo só pode sobreviver e prosperar quando se consome maciçamente?
O capitalismo não depende do consumo, mas sim da poupança.
Uma sociedade que consome 100% da sua renda será uma sociedade nada
capitalista. Não haveria um único bem de capital existente: não haveria
moradias, não haveria fábricas, não haveria infraestruturas, não haveria meios
de transporte, não haveria maquinários, não haveria escritórios e imóveis comerciais,
não haveria laboratórios, não haveria cientistas, não haveria arquitetos, não haveria
universidades, não haveria nada.
Simplesmente, todos os indivíduos estariam
permanentemente ocupados produzindo bens de consumo básicos — comidas e vestes
— e não dedicariam nem um segundo para a produção de bens de capital, que são investimentos
de longo prazo que geram bens futuros. Por definição, se uma sociedade consome
100% da sua renda, ela não produz nenhum outro bem que não seja de consumo
imediato.
É a poupança, é o não desejo de consumir tudo o que
se pode, o que nos permite direcionar nossos esforços para satisfazer não os
nossos desejos mais imediatos, mas sim nossas necessidades futuras: com a poupança,
produzimos bens de capital que irão, por sua vez, fabricar os bens de consumo de
que podemos necessitar no futuro.
A lição de Crusoé
A diferença entre o Robinson Crusoé pobre e o
Robinson Crusoé rico é que o rico dispõe de bens de capital. E para ter esses bens de capital, ele
teve de poupar e investir.
Os bens de capital do Robinson Crusoé rico (por
exemplo, uma rede e uma vara de pescar, construídas com bens que ele demorou,
digamos, 5 dias para produzir) foram obtidos porque ele poupou (absteve-se do
consumo) e, por meio de seu trabalho, transformou os recursos que ele não havia
consumido em bens de capital. Estes bens de capital permitiram ao
Robinson Crusoé rico produzir bens de consumo (pescar peixes e
colher frutas) e com isso seguir vivendo cada vez melhor.
Já o Robinson Crusoé pobre é aquele que não poupa. Consequentemente,
ele não dispõe de bens de capital. Logo, todo o seu trabalho é feito à
mão. Por isso, ele é menos produtivo. E, por produzir menos e ter menos
bens à sua disposição, ele é mais pobre e seu padrão de vida é mais baixo.
O Robinson Crusoé rico é mais produtivo. E,
por ser mais produtivo, não apenas ele pode descansar mais, como também pode
poupar mais, o que irá lhe permitir acumular ainda mais bens de capital e
consequentemente aumentar ainda mais a sua produtividade no futuro.
Já o Robinson Crusoé pobre consome tudo o que
produz. Ele não tem outra opção. Como ele não é produtivo, ele não pode
se dar ao luxo de descansar e poupar. Essa ausência de poupança compromete
suas chances de aumentar seu padrão de vida no futuro.
Por tudo isso, sociedades ultra-consumistas são necessariamente
sociedades de subsistência. Uma tribo africana consome 100% de sua produção
(renda). Como não consegue poupar, não consegue acumular capital. Sem capital
acumulado, não consegue aumentar sua produtividade. Sem aumento de
produtividade, não sai da pobreza. Nada é mais anti-capitalista que uma sociedade ultra-consumista.
O
que fazer na Black Friday
O poupador-rentista da sociedade vitoriana é um
personagem muito mais tipicamente capitalista do que o consumista impulsivo e
desenfreado da Black Friday. Quem enriquece é aquele que poupa e financia o
consumo dos outros (em troca de juros) e não aquele que consome e se endivida.
Por isso, quem critica esta data por ser um
monumento ao "capitalismo selvagem" está, na realidade, batendo em um
espantalho. Que o capitalismo respeite estratégias comerciais e comportamentos
consumistas individuais — isto é, que respeite que cada loja escolha quando
oferecer descontos e que cada indivíduo escolha livremente quanto quer consumir
hoje e quanto quer consumir amanhã — não implica que isso seja a característica precípua do capitalismo.
Com efeito, muito mais capitalista seria você capitalizar o eventual gasto que estivesse
planejando fazer na Black Friday: ou seja, não consumir este dinheiro
(poupá-lo) e aplicá-lo em investimentos que irão aumentar sua riqueza futura.
Por exemplo, destiná-lo à compra de ações daquelas empresas
que fabricam e vendem os produtos da Black Friday. Ou de quaisquer outras empresas
que você creia que possam contribuir para melhorar o futuro do país. Ou aplicar
em LCAs para financiar o produtor rural. Ou, caso prefira, você pode também financiar
o consumo alheio. Invista em LCIs para ajudar quem optou pela casa própria.
Ou em LCs (Letras de Câmbio) para financiar as financeiras que emprestam para
consumidores. Ou em CDBs de bancos para ser o credor deles.
Em suma, seja aquele que financia e não aquele que
se endivida. Seja aquele que poupa e capitaliza, e não aquele que consome e se
descapitaliza. Seja, enfim, o capitalista.
Capitalismo é poupança e investimento visando a
melhorar nossa renda — e nossa capacidade de consumo sustentável — no longo
prazo. Capitalismo não é consumismo desbragado, voltado para o curto prazo e financiado
por endividamento. Capitalismo
é austeridade, e não esbanjamento público ou privado.
Conclusão
Para ser bem claro: respeitemos as pessoas que, por livre
e espontânea vontade, optaram por sair comprando desbragadamente produtos de todos
os tipos e variedades. Estão em seu perfeito direito de fazê-lo. Agora, que não
digam que tal comportamento representa a apoteose do capitalismo. Não é:
capitalismo é poupança e investimento. Capitalismo é acumulação de capital, e não
consumo de capital.
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