quarta-feira, 11 nov 2009

Se instados a citar o
principal crítico do marxismo, a maioria dos economistas simpáticos ao livre
mercado iria mencionar Eugen
von Böhm-Bawerk, que em seu tratado Capital
and Interest (Capital e Juro) e em seu folheto Karl
Marx and the Close of His System (Karl Marx e o Fim do Seu Sistema) demoliu
por completo a teoria do valor-trabalho, o sustentáculo da economia marxista.
Mas a teoria do
valor-trabalho é apenas uma parte do marxismo.
E quanto ao resto do sistema? É
aqui que se faz necessário analisar a obra do maior e melhor aluno de
Böhm-Bawerk, Ludwig von Mises, cuja análise devastadora do marxismo é de
inigualável excelência. Sua contribuição
à crítica do marxismo é encontrada principalmente em dois de seus livros: Socialismo e Teoria
e História.
O Manifesto Comunista (1848)
famosamente declara: "A história de
todas as sociedades existentes até hoje é a história da luta de
classes". Cada sistema social, na
visão marxista, é caracterizado por uma diferente variedade de conflitos de
classe. No sistema capitalista,
obviamente, o infindável conflito se dá entre capitalistas e proletários. No decorrer da batalha social entra as
classes, os membros ou amigos de cada classe elaboram teorias de vários tipos
voltadas exclusivamente para a defesa daquela classe. Essas teorias, independente do que digam, não
se originaram da busca pela verdade objetiva.
Como todo o pensamento "ideológico", as teorias econômicas,
sociais e políticas refletem meramente o interesse de classe.
Mises, mais vigorosamente do
que qualquer outro crítico de Marx, transpôs e descortinou a essência dessa
visão falaciosa. Se todo o pensamento
sobre questões sociais e econômicas se baseia na questão social, o que dizer
sobre o próprio sistema marxista? Se,
como Marx orgulhosamente proclamava, sua intenção era explicar para a classe
operária sua condição de espoliada, por que então qualquer uma de suas visões
deveria ser aceita como verdadeira?
Mises corretamente apontou que a visão de Marx era autorefutável: se
todo pensamento social é ideológico, então a proposição marxista é em si
ideológica, o que faz com que seus fundamentos já nasçam naturalmente
solapados. Em sua obra Teorias Sobre a
Mais-Valia, Marx não consegue conter seu escárnio em relação à
"apologética" de vários economistas burgueses. Ele não percebeu que, ao escarnecer
constantemente a tendenciosidade de seus economistas contemporâneos, ele estava
cavando a sepultura de seu enorme trabalho de propaganda em favor do
proletariado.
Mises nunca se cansou de
enfatizar um tema que ele expressou sucintamente em seu livro Liberalismo: "O
homem tem apenas uma ferramenta com a qual lutar contra o erro: a
razão". Por "razão", ele
se referia a um procedimento lógico de validade universal. Aquele que nega o poder da razão cai em
contradição — logo, está se refutando a si próprio. Se a razão for subordinada a alguma outra
faculdade, seja o interesse de classe, o conhecimento hermenêutico ou qualquer
outra idiossincrasia não-racional que seja atraente, o resultado não será outro
que não uma estultice. Se não há lógica,
qual razão pode haver em qualquer postulado?
O ataque de Mises ao marxismo
não se limitou à essencial porém hermética área da epistemologia. Ele também analisou em detalhes os principais
temas da interpretação marxista da história.
De acordo com Marx, o segredo da história está nas forças da produção.
(Grosso modo, as forças de produção de uma sociedade consistem na tecnologia
dessa sociedade). Essas forças, ao longo
da história, apresentam uma constante tendência ao desenvolvimento. À medida que o fazem, elas exigem mudanças nas
relações de produção, isto é, no sistema econômico e social que existe em uma
determinada sociedade. Em um momento,
por exemplo, o feudalismo era o sistema que melhor estava adaptado para
desenvolver as forças de produção. A
partir do momento em que ele deixou de ser o sistema mais eficiente, o
capitalismo o substituiu, quebrando aquilo que Marx chamou de
"grilhões" que a economia senhorial do feudalismo impunha à
produção. Por sua vez, por imposição das
forças de produção, o capitalismo será substituído pelo socialismo, um sistema
que, como Marx antecipou, seria imensamente mais produtivo que seu antecessor.
Em seu livro Teoria
e História, Mises apresentou uma simples indagação que se comprovou letal à
alegada "ciência do materialismo histórico". Como foi explicado, o crescimento das forças
de produção supostamente é a causa-mor das revoluções. É ele quem impele a sociedade a realizar
mudanças drásticas em sua estrutura. Mas
o que exatamente determina esse crescimento das forças de produção? Como Mises vivia dizendo, apenas indivíduos
agem. As classes, as "forças de
produção", "as relações de produção" etc., são em si apenas
abstrações. Separadas da ação dos seres
humanos, elas são nulas e impotentes.
Assim como o Geist (Espírito) hegeliano, as forças de produção de Marx
são um fenômeno que se desenvolve autonomamente e que governa a vontade
humana. Marx jamais se preocupou em
explicar como tais forças, elas próprias os efeitos da ação humana, podem
exclusivamente determinar toda a importante ação humana.
Uma vez que se tenha
entendido que são os indivíduos que agem — e não as forças de produção —, todo o
esquema marxista sobre a evolução histórica cai por terra. Se são os seres humanos que criam por seus
próprios atos as forças de produção, ao invés de serem as forças de produção
que determinam esses atos, então a transição de um sistema econômico para outro
não é uma inevitabilidade, como Marx dizia ser.
Tais mudanças irão ocorrer apenas se as pessoas agirem para criá-las — e
somente assim. Se alguém contestar
dizendo que existem leis que determinam a ação humana, esse contestador terá de
ter a bondade de produzir essas leis para que possamos examiná-las. Agora, que os resultados daquilo que as
pessoas criam podem não ser aqueles esperados, isso já é outra discussão.
O marxismo, como o
"filósofo" stalinista M.B. Mitin gostava de afirmar pomposamente, é
"um chamado à ação". E a ação
que os marxistas têm em mente é obviamente a substituição do capitalismo pelo
socialismo. Em uma famosa passagem no
volume III do Capital, Marx antevê um futuro auspicioso sob as bênçãos do
socialismo, no qual as pessoas poderão dedicar a maior parte do seu tempo ao
lazer. Trabalhar pelo mero sustento se
tornará simples memórias de um passado longínquo.
Tal é a promessa
marxista. Porém a realidade, como Mises
demonstrou, era algo bem diferente. Em
seu argumento, Mises não se baseou empiricamente nos resultados do experimento
socialista na Rússia soviética. Ao invés
disso, como aqueles familiarizados com seu método praxeológico já
imaginam, Mises ofereceu a prova de que o socialismo era em sua natureza
impossível.
Ele apresentou seu argumento
em um famoso
artigo publicado em 1920 que, com maior elaboração, foi incorporado a sua
grande obra Socialismo
(1922). Como é característico de Mises,
seu argumento em essência é um só (o grande economista austríaco tinha um
infalível instinto para analisar o âmago de qualquer teoria por ele
considerada): dada uma lista de bens a serem produzidos — sejam aqueles
desejados pelos membros da sociedade (os consumidores) ou aqueles planejados
por um ditador — qualquer economia desenvolvida precisa ter uma maneira de
decidir como empregar seus recursos da melhor maneira possível para produzir os
bens desejados.
Sob o capitalismo, esse
desafio é respondido totalmente à altura das dificuldades apresentadas. Os recursos que existem — a terra, o capital
ou o trabalho — são propriedade de indivíduos. Essas pessoas irão comercializar
suas propriedades no mercado. Ao fazerem
isso, elas poderão precificar os bens de produção de acordo com a eficiência
com que estes podem ser utilizados para atender os desejos dos consumidores.
Os detalhes desse complexo e
fenomenal processo não podem ser aqui elaborados. Porém, em todo caso, ninguém pode seriamente
negar que o livre mercado é capaz de realizar a tarefa do cálculo econômico
acima descrita. O ponto principal da
acusação de Mises ao socialismo, e o aspecto mais controverso de seu argumento,
é sua afirmação de que somente o capitalismo pode resolver o problema do
cálculo econômico. O socialismo, em
particular, não pode.
Novamente sem entrar em detalhes,
o ponto principal do raciocínio de Mises pode ser rapidamente entendido. O socialismo por definição consiste no
gerenciamento centralizado da economia, sendo que seus principais meios de
produção são de propriedade "pública", ou seja, do governo. Como pode um sistema centralizado, onde não há
mercados, decidir qual é a maneira mais eficiente de se utilizar os recursos
necessários para a produção de um determinado bem? Pois se não há um livre sistema de preços
para balizar a produção, a utilização de recursos passa a ser feita às
cegas. Qualquer "preço" que o
planejador da economia imponha para qualquer bem será arbitrário e não terá
qualquer valor para um cálculo genuíno.
(Um detalhe técnico deve ser mencionado para que o argumento não seja
mal entendido: Mises afirma que um sistema socialista não tem os meios para
calcular os preços dos bens de produção, o mesmo não sendo necessariamente
válido para os preços dos bens de consumo ou bens de primeira ordem).
Ou seja, a explicação de
Mises pode ser sucintamente resumida da seguinte forma: se os meios de produção
pertencem exclusivamente ao estado, não há um genuíno mercado entre eles. Se não há um mercado entre eles, é impossível
haver a formação de preços legítimos. Se
não há preços, é impossível fazer qualquer cálculo de preços. E sem esse cálculo de preços, é impossível
haver qualquer racionalidade econômica — o que significa que uma economia
planejada é, paradoxalmente, impossível de ser planejada.
Podemos imediatamente ver
como o argumento de Mises desfere o golpe de misericórdia no marxismo. Este sistema alega que o socialismo é uma
inevitabilidade porque o desenvolvimento das forças de produção irá
inevitavelmente levar à sua implementação.
Mesmo que desconsiderássemos o argumento de Mises, de que o crescimento
das forças de produção não é algo inevitável, poderíamos perceber que a visão
de Marx é comicamente absurda: o capitalismo não apenas é o mais eficiente
sistema econômico como também é o único sistema econômico eficiente. Se — por mais impossível que isso seja — as
forças de produção de fato crescessem por conta própria, não seria o socialismo
o sistema que elas iriam estabelecer.
Seria o capitalismo.
Continuando seu ataque ao
marxismo, Mises explorou o porquê de Marx não levar em conta o problema da
eficiência. E nesse quesito a resposta
de Mises não admite contestações. Marx
não disse nada sobre o problema do cálculo simplesmente porque ele não dedicou
atenção alguma às instituições econômicas do socialismo. Fazer isso, pensava Marx, seria o equivalente
a estabelecer "modelos" para o futuro, no mesmo estilo dos
socialistas utópicos, os quais ele sempre escarnecera. Com uma completa irresponsabilidade
intelectual, ele pregava a derrubada da intricada economia capitalista — que
ele próprio havia admitido ser a mais produtiva da história — para poder
estabelecer um sistema cujas instituições ele sequer havia se dado ao trabalho
de analisar.
Entretanto, quando se
considera as respostas dadas a Mises por seus críticos socialistas, pode-se
pensar que talvez a política de Marx — a de desconsiderar os problemas do
socialismo — acabou sendo mais sabia do que ele poderia imaginar. Mises não teve dificuldades em refutar todas
as soluções socialistas que foram tentadas em resposta ao seu problema do
cálculo econômico. Alguns correram para
a matemática: um sistema de equações simultâneas permitiria que os preços
necessários fossem descobertos. Como, em
um regime em constante mudança, essas equações funcionariam, é algo que os
proponentes dessa idéia preferiram não responder.
A mais famosa resposta dada a
Mises, entretanto, está em outra área. O
economista polonês Oskar Lange, que residiu nos EUA por um bom tempo até que,
após a Segunda Guerra Mundial, a bajulação e o charme da Polônia comunista
acabaram com sua resistência e imunidade ao regime, alegou que a economia
socialista não precisava necessariamente abandonar o mercado. Era possível que ambos coexistissem, embora
para alguns a expressão "socialismo de mercado" tenha tanto sentido
quanto um "círculo quadrado" — Lange, obviamente, não estava dentre
os que pensavam assim. Mas sua proposta,
conquanto original, não teve melhor sucesso que as outras. Mises submeteu-a a impiedosos ataques, os detalhes
dos quais deixo para o leitor interessado explorar nos trabalhos de Mises. Em particular, sua iluminadora discussão
sobre seus críticos em Ação Humana deve ser consultada.
Mises expôs inúmeros,
cruciais e irremediáveis erros do marxismo.
Uma leitura de suas críticas inevitavelmente fará com que se aplique ao
marxismo o famoso trecho do poema "Ozymandias":
"Nada mais resta: em
redor a decadência
Daquele destroço colossal,
sem limite e vazio
As areias solitárias e planas
espalham-se para longe."