A esquerda mundial está inconsolada. Em decorrência do impeachment da presidente
do Brasil Dilma Rousseff, toda a esquerda se uniu para declarar, em uníssono,
que o impeachment de Dilma foi um "golpe anti-democrático".
Eis um típico
exemplo fornecido por um think tank
de esquerda chamado Council on
Hemispheric Affairs:
O
impeachment de Rousseff representa um ataque devastador à democracia do Brasil,
constituindo um golpe de estado não-militar — um processo não-democrático de mudança
de regime caracterizado pela malevolência política, por uma justiça seletiva, e
por uma transferência de poder não-eleitoral, tudo cuidadosamente disfarçado sob
o manto do estado de direito.
O curioso é que, pela lógica desse raciocínio, as ações
feitas por membros eleitos do poder executivo (Dilma) representam ações democraticamente
aprovadas. Já as ações feitas por
membros eleitos dos poderes legislativos (deputados e senadores), por alguma
estranha razão, não representam em
absoluto ações democraticamente aprovadas.
Logo, ainda segundo essa lógica, quando Richard Nixon foi ameaçado
com um impeachment e renunciou à presidência americana, em 1974, isso
certamente constituiu um "golpe de estado não-militar", no qual um "processo não-democrático
de mudança de regime" representou um ataque devastador à democracia
americana. Levando este raciocínio à sua
conclusão lógica, somos forçados a concluir que, embora Nixon tenha sido eleito
democraticamente — e obtendo
uma maioria avassaladora dos votos, convém lembrar —, o Congresso eleito
que o atormentou até ele renunciar estava, de alguma maneira, agindo contra os
ideais democráticos.
Ou, para ficarmos com o Brasil, quando o então presidente
Fernando Collor vivenciou processo idêntico ao de Nixon, em 1992, os deputados
e senadores brasileiros — todos também democraticamente eleitos — que votaram
a favor do seu impedimento também praticaram um "golpe de estado não-militar", fazendo
um "processo não-democrático de mudança de regime", tendo sido esse um "ataque devastador
à democracia do Brasil".
Ser
eleito com 51% dos votos válidos significa que um presidente pode fazer o que
quiser?
Os argumentos proferidos pelos defensores da tese de
que houve um "golpe de estado não-militar" são tão contraditórios e sem
sentido, que levam a uma dúvida insanável: em que situação um corpo político
eleito democraticamente é realmente democrático? E em que situação ele não é?
No Brasil, todos os deputados e senadores — tanto
os que votaram a favor quanto os que votaram contra o impeachment de Dilma —
foram eleitos democraticamente com a função de representar cada um dos 26
estados do Brasil e mais o Distrito Federal.
Adicionalmente, 367
deputados de um total de 513 votaram a favor do impeachment, o que
representa incríveis 71%. Entre os
senadores, 61 de um total de 81 votaram a favor do impedimento, o que
representa acachapantes 75% dos votos.
Se a democracia — como a própria esquerda diz —
significa a voz do povo, e se a voz do povo se manifesta — também como a própria
esquerda diz — por meio de seus representantes democraticamente eleitos, então
a tese de que os deputados e senadores (portadores dos desejos e ansiedades do
povo) que votaram (em nome do povo) pelo impedimento de Dilma são golpistas é
contraditória. E também insustentável.
Mais ainda: tanto no caso de Nixon e Collor quanto
no caso de Dilma, é difícil ver por que o executivo representaria um órgão mais democrático do que o legislativo
que o removeu — ou que ameaçou removê-lo, como no caso de Nixon.
De novo, tanto o chefe do executivo quanto os
representantes do legislativo foram escolhidos por meio de eleições majoritárias
e democráticas. Cada um deles, segundo
defende a própria esquerda, representa a voz e os clamores do povo. Sendo assim, qual a lógica em afirmar que o
executivo é mais democraticamente legítimo que o legislativo?
Adicionalmente, para complicar ainda mais a argumentação
da esquerda, vale lembrar que o Senado nem sequer pode votar para impedir um
presidente caso não tenha sido previamente autorizado a fazê-lo pela Câmara dos
Deputados, um órgão também eleito pelo povo e de maneira inteiramente democrática.
E tudo fica ainda mais complicado para a esquerda
quando nos concentramos em questões mais específicas. Por exemplo, Dilma foi eleita com 54,5 milhões de votos
dentre um total de 112,7 milhões de pessoas que compareceram às urnas para
votar. Os outros 58,2 milhões de votos
foram distribuídos entre seu rival, votos brancos e votos nulos. (E estamos aqui desconsiderando os 30 milhões
de indivíduos que nem sequer foram votar).
Isso significa que Dilma foi eleita com 48,3% dos votos totais.
Logo, dado que ela claramente não obteve o voto da maioria votante (e nem muito menos da maioria
absoluta de pessoas habilitadas a votar; quando se considera este universo, ela
obteve apenas 38% dos votos totais), como é possível dizer que seu impedimento
foi um ato contra a vontade da maioria do povo?
Mais ainda: só porque um número maior de votantes apoiou
um determinado candidato no dia da eleição, isso não significa que todas essas
mesmas pessoas continuam apoiando integralmente esse mesmo político no dia em
que ele foi removido. No caso específico
de Dilma, se meros 6%
das pessoas que votaram nela estiverem arrependidas — e mesmo considerando que
nenhuma dessas fosse votar em seu rival —, Dilma já não mais teria hoje a maioria
que obteve em 2014.
Logo, será que uma eleição em outubro de 2014 deve
ser vista por um período de tempo indefinido como sendo uma imutável e mística vontade
da maioria? E se o Congresso (Câmara e
Senado) contiver uma maioria de representantes do povo que se opõe à agenda do
líder do executivo? Esta não seria uma ainda
melhor representação da vontade da maioria?
Quando Dilma foi eleita com 48,3% dos votos totais (e
51,6% dos votos válidos), a economia brasileira ainda estava aparentemente
bem. Não obstante, praticamente metade
das pessoas que se dispuseram a ir às urnas votou contra ela. Logo, por que toda a população deveria ser
forçada a ficar presa nessa escolha dois anos após a eleição ter ocorrido,
ainda mais após o líder do executivo ter feito todos os tipos de lambança com
a economia?
Hipoteticamente: se uma maioria de eleitores pedisse
aos seus representantes na Câmara e no Senado para remover Dilma, e se estes o
fizessem, isso por acaso seria um "ataque devastador" à democracia?
É claro que o que exatamente os eleitores queriam do
Senado quando este impediu a presidente é uma pergunta empírica cuja resposta
exata jamais saberemos. No entanto, e ao
mesmo tempo, seria absurdo afirmar que o impeachment é necessariamente "anti-democrático"
simplesmente porque o líder do executivo conseguiu obter pouco mais do que a metade
do votos válidos dois anos atrás.
O
Reino Unido tem hoje uma primeira-ministra que não foi eleita pelo povo
No outro extremo, pode-se também dizer que o Senado
brasileiro elegeu o novo presidente Michel Temer, uma vez que o Senado tomou
medidas as quais ele sabia que levariam Temer à presidência da república.
Sendo assim, há algo de anti-democrático em uma
legislatura eleita pelo povo selecionar um líder do executivo?
Aliás, há um caso extremamente recente de uma
legislatura escolher um chefe do executivo.
E ninguém gritou ser golpe (a esquerda mundial, inclusive, aprovou). Trata-se do Reino Unido, que atualmente
possui uma primeira-ministra que não foi eleita pelo povo — e que, ao
contrário de Michel Temer (que foi democraticamente eleito vice-presidente),
nem sequer teve seu nome escrutinado pelas urnas.
Theresa May, a atual primeira-ministra do Reino
Unido, foi escolhida exclusivamente pelo seu partido político para ser
primeira-ministra. Nenhum cidadão britânico
votou nela em nenhuma eleição para ser primeira-ministra. Igualmente, nenhum cidadão britânico jamais
votou diretamente em Tony Blair, John Major ou Margaret Thatcher para ser
primeiro-ministro. Os únicos eleitores
que realmente votaram nesses primeiros-ministros foram aqueles que, em seus
distritos locais, votaram nessa pessoa para ser seu representante no Parlamento
britânico (o equivalente a um deputado).
O cargo de primeiro-ministro, em si, foi preenchido
depois, pelos membros do partido que possui a maioria no Parlamento britânico. Ou então pela maioria que forma uma coalizão. São estes representantes que decidem quem
será o primeiro-ministro.
Isso é chamado de "democracia parlamentarista". Vários outros países utilizam sistemas
similares.
Agora que os britânicos estão sujeitos a uma
primeira-ministra na qual não votaram, e que foi escolhida exclusivamente pelo
partido que detém a maioria no Parlamento, seria correto dizer que o Reino
Unido sofreu um golpe de estado? A democracia
britânica sofreu um ataque devastador?
Vale lembrar que esse modelo britânico sempre foi considerado
um dos maiores modelos de democracia
para todo o mundo.
Conclusão
Desnecessário dizer que a esquerda afirma que o
impeachment de Dilma é anti-democrático simplesmente porque ela, a esquerda, não
gostou. Se o impeachment fosse a seu favor,
ela aprovaria. É por isso que ninguém jamais
ouviu um esquerdista reclamar que o Partido Democrata desferiu um "golpe
devastador" contra a democracia americana quando forçou Richard Nixon a
renunciar à presidência. Igualmente, ninguém
jamais ouviu um esquerdista reclamar que a democracia brasileira foi
assassinada quando Fernando Collor vivenciou um processo de impeachment idêntico
ao de Dilma (e com a decisiva ajuda do PT), o que o levou a renunciar.
Pode até ser que alguém tenha algum argumento razoável
contra o impeachment de Dilma; porém, dizer que ele foi um "golpe
anti-democrático" requer uma genuinamente bizarra e seletiva noção sobre o que
é uma democracia.
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