segunda-feira, 29 ago 2016
Ao escrever seu tratado
Socialism,
em 1922, Ludwig von Mises expressou apoio à democracia, mas recorrendo a uma visão
muito limitada.
Especificamente, ele sugeriu que o único propósito
da democracia é "conseguir a paz e evitar revoluções violentas". Ou seja, a democracia seria meramente um meio
para se alcançar um fim, e seu valor está em fornecer uma maneira de retirar determinadas
pessoas do aparato estatal sem a necessidade de recorrer a instrumentos
militares: "A essência da democracia é ... que legisladores e governantes
... possam ser pacificamente substituídos caso ocorra algum conflito".
Mises era ele próprio um democrata resignado, no
sentido de que, como muitos outros liberais de seu tempo, ele via algum valor
no uso de instituições democráticas, as quais poderiam fornecer um meio para se
abordar conflitos políticos que poderiam afetar a vida econômica de uma sociedade.
Para Mises, a prevenção de situações como guerras, distúrbios,
revoluções e outras insurgências violentas eram essenciais para fazer com que o
mercado — isto é, a livre interação entre pessoas que empreendem, investem,
produzem e consomem, praticando trocas voluntárias — continuasse funcionando
normalmente:
O
liberalismo, ao reconhecer que a realização dos objetivos econômicos do homem
pressupõe a paz, e buscando, portanto, eliminar todas as causas de conflitos na
política doméstica ou externa, deseja a democracia.
Mises, no entanto, não era um crente ingênuo na democracia. Em nenhum trecho de toda a sua obra ele assume
que a democracia é uma condição suficiente
para a paz, ou que a democracia pode superar os problemas criados em um sistema
político por uma ideologia danosa.
Com efeito, Mises sempre se mostrou ciente do papel
central da ideologia em determinar quão laissez-faire
(ou não) um estado pode ser. Mises
entendia perfeitamente que, se uma parcela considerável da população quiser um
estado totalitário, então nenhuma quantidade de democracia — ou ausência dela —
irá impedir isso.
Afinal, escreveu Mises, "a democracia tenta ...
garantir [que haja] um acordo entre a vontade do estado — expressa por meio
dos órgãos do estado — e a vontade da maioria".
Mas o que ocorrerá se a vontade da maioria estiver
mais propensa ao czarismo, por exemplo? "Bem",
responderia Mises, "então czarismo é provavelmente o que as pessoas teriam":
O
conservador russo está indubitavelmente certo quando observa que o czarismo
russo e a polícia do czar eram aprovados pela grande massa do povo russo, de
modo que até mesmo uma forma de estado democrático não poderia ter dado à
Rússia um sistema de governo diferente.
Mises entendia que, para manter um sistema político
de laissez-faire econômico — seja
democrático ou autocrático —, uma parcela considerável da população deveria
realmente querer um sistema laissez-faire, ou pelo menos algo
semelhante a ele.
Uma
maneira fácil de convencer os eleitores a abandonar o laissez-faire
Porém, mesmo se uma população possui inclinações pró-laissez-faire,
há maneiras de os estados enfraquecerem essas crenças e se aproveitarem de
vícios humanos, como a ganância, a preguiça e o medo, para aumentar o tamanho e
poder do estado.
Em seu livro Burocracia, de 1944, Mises
descreveu o problema que surge quando uma fatia considerável da população
recebe a seu sustento do estado:
O funcionário público não é apenas um empregado do
governo. Ele é, em um arranjo democrático, um eleitor e, ao mesmo tempo — por
fazer parte da estrutura governamental —, o seu próprio empregador.
Ele se encontra em uma posição peculiar: ele é,
concomitantemente, empregador e empregado. E o seu interesse pecuniário como
empregado tenderá a suplantar sua função como empregador, já que ele recebe dos
fundos públicos muito mais do que contribui.
Essa relação ambígua se torna ainda mais crítica à
medida que o número de pessoas na folha de pagamento do governo aumenta.
O funcionário público, na condição de eleitor, tenderá a apoiar políticos que
prometam aumentos ao funcionalismo em detrimento daqueles que defendem um
orçamento equilibrado. Na condição de eleitor, o burocrata está mais
ansioso com seus próprios aumentos salariais do que com um orçamento
equilibrado e austero. A principal
preocupação do burocrata será a de inflar o valor da folha de pagamento.
E esse problema não se restringe aos funcionários
públicos. Mises escreveu:
Nos
anos que imediatamente antecederam a queda de seus regimes democráticos, a
estrutura política da Alemanha e da França foi majoritariamente influenciada
pelo fato de que, para uma fatia considerável do eleitorado, o estado era a sua
fonte de renda. Não apenas havia toda uma horda de funcionários públicos
e de pessoas empregadas nos setores da economia que haviam sido estatizados
(ferrovias, correios, telégrafos e telefônicas), como também havia os
desempregados que recebiam seguro-desemprego e outras pessoas que recebiam
benefícios sociais. Para completar, havia agricultores e grupos
empresariais que, direta ou indiretamente, recebiam subsídios do governo.
Nenhum
arranjo democrático pode existir se uma grande parcela dos eleitores está na
folha de pagamento do governo [funcionários públicos e pessoas que recebem
políticas assistenciais] ou recebe privilégios do governo [empresários
beneficiados por subsídios
ou cartelizados por agências
governamentais ou protegidos por tarifas de importação].
Se
os políticos passam a agir não como empregados dos pagadores de impostos mas
sim como porta-vozes daqueles que recebem salários, subsídios e
assistencialismos pagos com o dinheiro de impostos, então o arranjo democrático
acabou.
Este
é um dos paradoxos inerentes ao arranjo democrático. À medida que as
pessoas que trabalham, produzem e pagam impostos forem se convencendo de que a
atual tendência de mais interferência estatal, mais cargos públicos, mais
ministérios, mais secretarias, mais repartições, mais funcionários públicos,
mais subsídios e mais assistencialismo é inevitável, toda a noção de que o
governo é feito por todos e para todos irá se esfacelar. A ideia que irá
prevalecer é a de que o governo existe para o benefício de alguns e para a
espoliação de outros.
Obviamente, em tal situação, nenhum político eleito
que deseja ser reeleito irá se opor a uma expansão nos programas
assistencialistas, a aumentos ao funcionalismo público, a mais gastos com programas
de saúde, com subsídios e com outros tipos de gastos.
Dentro de um sistema político assim, qualquer apoio
latente que possa haver ao laissez-faire
será gradualmente preterido pela percepção de que votar em troca de mais
benefícios governamentais é — aparentemente — muito mais lucrativa do que
votar pelo laissez-faire.
O
sufrágio limitado proposto por John Stuart Mill
Mises não foi o primeiro democrata a reconhecer o
problema de se expandir o voto para aqueles que recebem mais do estado do que
pagam a ele.
John Stuart Mill, que sempre foi considerado um
democrata radical devido ao seu apoio ao sufrágio quase universal (incluindo
mulheres), ainda assim se opunha ao sufrágio para aqueles que recebiam privilégios
do governo. Em seu livro de 1861, Considerations on Representative
Government (Considerações
Sobre o Governo Representativo), Mill escreveu:
Considero
fundamental que o recebimento de assistência [Mill se referia ao sistema de
auxílio aos pobres implantado pelo governo Inglaterra. As Poor Laws foram precursoras
do estado de bem-estar social] deve implicar uma desqualificação peremptória
para o direito ao voto.
Aquele
que não pode se sustentar por seu próprio trabalho não deve ter o privilégio de
ajudar a si mesmo com o dinheiro dos outros.
Ao
tornar-se dependente dos demais membros da comunidade para sua subsistência,
ele abdica da sua pretensão de ter direitos iguais aos deles em outros aspectos,
como o direito ao voto. Aqueles a quem ele deve a continuidade de sua própria
existência podem legitimamente reivindicar serem os detentores exclusivos
dessas preocupações comuns, para as quais ele nada contribui — ou contribui
com menos do que leva..
Como
condição para o direito ao voto, um prazo deve ser fixado — digamos, cinco
anos anteriores ao registro —, durante o qual o nome do requerente não tenha
constado nas listas de beneficiários de assistência.
Mill tentou resolver esse problema defendendo que
todos os eleitores fossem formados exclusivamente por pagadores líquidos de impostos — ou seja, só pode ser eleitor que
paga mais impostos do que recebe em subsídios:
É
também importante que o legislativo que vota os tributos, nacionais ou locais,
seja eleito exclusivamente por aqueles que pagam ou pagarão o tributo criado. Aqueles que não pagam impostos, e que por meio
de seus votos têm acesso ao dinheiro das outras pessoas, têm todos os motivos
para ser generosos consigo mesmos, esbanjadores e economicamente irracionais.
Qualquer
poder de voto possuído por aqueles que não pagam impostos é uma violação do
princípio fundamental de um governo livre; uma abolição de toda e qualquer capacidade
de controle sobre o tamanho do governo.
Equivale
a permitir que essas pessoas coloquem suas mãos nos bolsos das outras pessoas
para qualquer fim que elas julgarem adequado rotular de "interesse público"...
A
representação deveria se dar de acordo com a tributação. Isso é o que está de acordo com a teoria das
instituições britânicas.
À exceção disso, Mill não queria nenhuma restrição
permanente ao direito de votar, e desejava que qualquer um excluído do sufrágio
em decorrência de eventuais dificuldades econômicas vigentes pudesse votar
futuramente. Ou seja, quaisquer
limitações ao sufrágio deveriam ser abolidas, de modo a "deixar o sufrágio
acessível a todos os que estão na condição normal de um ser humano".
A democracia gera crenças perigosas
O fator-chave por trás disso é a ideologia. Uma população que vê o crescimento generalizado
de empregos públicos, dos subsídios e de programas assistenciais como ilegítimo
não irá tolerar tal situação. A esse
respeito, se o propósito da democracia é — como Mises afirmou — criar
harmonia entre a vontade do estado e a vontade da população, então as social-democracias
ocidentais estão funcionando exatamente como projetado e como esperado.
Ao contrário do que alguns libertários parecem acreditar,
os indivíduos das democracias ocidentais, em sua maioria, não são libertários
"que
ainda não se deram conta disso". Com efeito, a grande maioria das populações das
democracias ocidentais está ideologicamente muito tranquila e conformada em ter
estados intervencionistas agigantados, os quais empregam um grande número de
pessoas e gastam imensas quantidades de dinheiro de impostos com benefícios
sociais, programas e empreendimentos estatais, subsídios a empresas privadas, criação
de mais cargos públicos e aumentos para o funcionalismo.
Seus padrões de voto e suas preferências declaradas
e demonstradas por meio de seus votos deixam isso claro. Como esperado, os
estados democráticos refletem as ideologias de seus cidadãos.
Sem uma mudança nessa realidade ideológica, nenhuma
mudança significativa deve ser esperada.
Não obstante, estender o direito ao voto para
aqueles que recebem mais subsídios do estado do que pagam em impostos irá
acelerar o processo de empobrecimento e de instabilidade econômica.
A primeira medida para reverter esse problema
ideológico está em adotar o laissez-faire
como ideologia política dominante. Isso demanda
debate de idéias e mudanças profundas na mentalidade da população. O segundo passo é retornar à visão de Mises de
que a democracia é meramente um mecanismo empregado para se alcançar determinados
fins. A democracia não é, de acordo com
Mises, uma extensão dos direitos naturais, ou a representação da soberania
pessoal, ou a manifestação de uma mística 'vontade pública'.
Além disso, argumentou Mises, essas idéias levam a
crenças perigosas, como a de que a democracia concede ao estado poderes
ilimitados, ou a de que não há diferença entre a vontade do estado e a vontade
do povo.
Tão logo essas noções preocupantes de democracia passam
a ser aceitas, a encrenca se torna praticamente irreversível. Mises conclui:
Graves
estragos foram infligidos ao conceito de democracia por aqueles que, exagerando
a noção de soberania, concebeu a democracia como uma expressão ilimitada da
vontade geral. Não há realmente nenhuma diferença essencial entre o poder
ilimitado do estado democrático e o poder ilimitado da autocrata. A ideia
defendida por demagogos e seus apoiadores, de que o estado pode fazer tudo o que
desejar e nada deve se opor à vontade do povo soberano, tem gerado consequências
mais nefastas até mesmo, talvez, do que a sede de poder de principezinhos
degenerados.
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