segunda-feira, 15 ago 2016
Já entrou para o rol das "curiosidades históricas" o
fato de que a fórmula original da Coca-Cola
continha
cocaína.
Porém, há uma outra história muito menos conhecida
da Coca-Cola, a qual possui interessantes componentes que envolvem o governo, o
corporativismo e a guerra às drogas.
A primeira lei federal americana anti-drogas foi a Harrison
Narcotics Act, promulgada em 1914, que criminalizou a
venda não-licenciada de cocaína e de produtos contendo ópio. Mas este não foi o motivo pelo qual a cocaína
foi removida da Coca-Cola. O alcalóide
foi removido da fórmula da Coca-Cola em 1903 por causa de uma pressão popular
fomentada pela imprensa, que começou a veicular continuamente uma imagem
negativa do uso da cocaína.
Para não contrariar e alienar sua base consumidora
— a qual agora se opunha ao consumo de cocaína —, a empresa removeu o
componente narcótico do seu produto.
É isso, aliás, que os defensores do livre mercado
chamam de "regulação
feita pelo mercado", contrariando aqueles que acreditam que o governo é
necessário para regular os excessos do livre mercado.
Com efeito, a única acusação criminal já feita
contra a Coca-Cola por sua fórmula ocorreu em 1911, quando o Departamento de
Agricultura [equivalente ao nosso Ministério da Agricultura] pensou que a
empresa estava "comercializando uma bebida adulterada nociva à saúde por conter
um ingrediente deletério: a cafeína", disse o presidente do departamento de química.[1]
Mas essa não é a parte realmente interessante. A Coca-Cola não havia eliminado o uso da
folha de coca em sua fórmula, pois ela era um ingrediente flavorizante necessário. Entretanto, o Harrison Narcotics Act havia tornado
a folha de coca uma substância controlada, e sua importação passou a ser
estritamente regulada pelo governo federal, que também decidia qual uso um
importador licenciado poderia fazer do produto.
Governo
favorecendo as grandes farmacêuticas - os primórdios
Esta regulação resultou em duas grandes empresas — Merck & Co., Inc. e Maywood Chemical Works —
ganhando uma licença monopolística do governo para a importação de folhas de
coca. Ambas só ganharam a permissão de
importar a matéria-prima porque o governo americano não queria que todo o
processo de fabricação fosse deslocado para outros países.
A Merck foi autorizada a importar folhas de coca do
Peru e da ilha de Java (Indonésia) com o propósito de extrair o alcalóide da cocaína
e transformá-lo em analgésico. Já a Maywood
obteve a permissão para importar as folhas e extrair e destruir o alcalóide da cocaína
para então produzir a "Mercadoria #5", que é o ingrediente flavorizante, e não-narcótico,
da folha de coca ainda hoje utilizado na Coca-Cola.
As duas empresas, portanto, obtiveram um monopólio concedido
pelo governo: uma para produzir analgésicos e a outra para ser a única fornecedora
da Coca-Cola.
Esse corporativismo farmacêutico foi turbinado na década
de 1930, quando o governo americano queria estocar grandes quantidades de sedativos
— contendo cocaína e ópio — para suprir os aliados da Segunda Guerra
Mundial. Em 1933, quando Franklin
Roosevelt assinou um decreto ordenando que todos os cidadãos americanos
entregassem ao governo todo o ouro que possuíam, o estoque de ouro americano
foi removido dos cofres do Tesouro e levado para Fort Knox. Com os cofres vazios, o chefe do Federal Bureau
of Narcotics (FBN), Harry Anslinger,
decidiu enchê-los de narcóticos como forma de estocar para o esforço de guerra,
concedendo assim um suculento contrato à Merck & Co. Incidentalmente, isso representava uma violação
da Convenção de Genebra, de 1931, que estipulava cotas nacionais para a
quantidade de estoques de remédios que cada país podia manter. O FBN simplesmente excluiu desse cálculo os
estoques voltados para a segurança nacional.
Já a licença da Maywood para importar folhas de coca
é ainda mais interessante. Na década de
1930, a Coca-Cola já era maciçamente popular, sendo este o motivo de o governo americano
ter se mostrado disposto a conceder à empresa uma exceção para obter um produto
regulado (mesmo sem o elemento narcótico, a folha de coca era, em si, uma
substância fortemente regulada). Ainda naquela
década, outros concorrentes, como a S.B.
Penick Company, tentaram conseguir permissão do governo para comprar folhas
de coca, e seus ingredientes flavorizantes, da Maywood. Porém, todos os pedidos foram negados por Harry
Anslinger, o chefe do Federal Bureau of Narcotics.
O governo federal estava oficialmente trabalhando
para suprimir potenciais concorrentes da Coca-Cola.
Quando os EUA entraram na Segunda Guerra Mundial, a
Coca-Cola estava fazendo lobby para — e conseguindo — obter o privilégio de não
se submeter às regulamentações do governo, exceção essa que seus concorrentes não
usufruíam. Em 1942, um executivo da
Coca-Cola participou da reunião do comitê governamental que estipulava as cotas
do racionamento de açúcar para todo o país (era o auge da escassez gerada pelo
esforço de guerra) e conseguiu obter uma exceção especial a essa restrição, o
que possibilitou à Coca-Cola abrir mais 64 fábricas enquanto outros produtores
de refrigerante não conseguiam obter seus ingredientes por causa das restrições
governamentais ao comércio de açúcar.
Em 1949, os ativos da empresa Maywood foram
confiscados pelo governo porque ela havia sido fundada por um alemão — o
doutor Louis Schaefer — e era de propriedade "do inimigo". Ato contínuo, as ações da Maywood seriam
colocadas a leilão pelo Office
of Alien Property (agência do governo americano utilizada nas duas grandes
guerras para custodiar as propriedades confiscadas dos inimigos do país). O único comprador potencial era exatamente a S.B.
Penick Company, a qual, como já dito, há anos vinha tentando conseguir a autorização
do governo para comprar os ingredientes flavorizantes da folha de coca e há anos
vinha tendo seu pedido negado.
Ato contínuo, Ralph Hayes, o executivo da Coca-Cola,
enviou uma carta para Harry Anslinger exortando uma intervenção do governo para
proteger o monopólio da Coca-Cola.
Uma
intrincada rede de monopólios concedidos pelo governo
Esse corporativismo de fato impediu o confisco da
empresa Maywood. Também ajudou o fato de
que a empresa havia cooperado com o governo durante a guerra (nesse caso, o
corporativismo venceu o confisco estatal).
E o monopólio da Coca-Cola sobre os ingredientes da
folha de coca continuava seguro.
Durante a Guerra Fria, a Coca-Cola foi ajudada pelo
governo americano em sua expansão global, como uma maneira de propagandear a
empresa como um (irônico) exemplo de "capitalismo" americano e sua
superioridade sobre o comunismo. Os governos
de Alemanha e França, por exemplo, tentaram impor restrições legais à expansão da
Coca-Cola em seus países. O burocrata Harry
Anslinger reagiu atuando pessoalmente como o mediador da empresa perante os
governos estrangeiros. Ele até mesmo
recorreu à política global anti-drogas como justificativa para fazer com que a
Divisão de Relações Exteriores do governo americano "desincentivasse países
estrangeiros a importar folhas de coca [para o propósito de fazer refrigerantes]
o máximo possível".[2]
Em 1959, a Maywood Chemical Works foi absorvida pela
Stepan Company, a
qual mantém, até hoje, uma licença monopolística concedida pelo governo para
importar folhas de coca. A empresa hoje
produz o extrato flavorizante e o alcalóide da cocaína para propósitos farmacêuticos,
sendo a única empresa
licenciada pelo governo para importar folhas de coca.
Já a Coca-Cola permanece sendo a única empresa com o
privilégio de poder obter os ingredientes flavorizantes, e não-narcóticos, da
folha de coca.
Conclusão
O curioso é que os primórdios da Coca-Cola
demonstram que a empresa conseguiu prosperar competitivamente no livre mercado
sem ter de recorrer a privilégios governamentais. Adicionalmente, seus primeiros anos
demonstram a capacidade de adaptação de uma empresa privada ao responder
positivamente às pressões dos consumidores, sem qualquer imposição ou supervisão
governamental, removendo o componente narcótico de sua bebida onze anos antes
da proibição legal da cocaína.
Mas o sucesso da Coca-Cola como a mega-empresa que
ela é hoje se deve, ao menos em parte, aos privilégios especiais concedidos
pelo governo americano durante a Segunda Guerra Mundial, e à supressão de
potenciais concorrentes nos primórdios das políticas anti-drogas de Harry Anslinger.
Como resultado, a Coca-Cola é produto de um
corporativismo corrupto, e beneficiária única da Guerra às Drogas. Até hoje.
[1] Michael
M. Cohen, "Jim Crow's Drug War: Race, Coca-Cola and the Southern Origins of
Drug Prohibition," Southern Cultures 12, no. 3 (Fall 2006):
55–79.
[2] H.J. Anslinger, Commissioner
of Narcotics to Mr. Charles B. Dyar, Foreign Relations Division, OMGUS, Office
of Political Affairs, January 10, 1951.